INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS

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Boletim - 270 - Maio/2015





 

Coordenador chefe:

José Carlos Abissamra Filho

Coordenadores adjuntos:

Arthur Sodré Prado, Fernando Gardinali e Guilherme Suguimori Santos

Conselho Editorial

Editorial

Não à redução da maioridade penal

Após praticamente 25 anos de indiferença quanto à doutrina da proteção integral trazida pelo ECA, como que por ironia, a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados aprovou, por 42 votos a favor e 17 contra, a tramitação da PEC 171/93, que pretende modificar o artigo 228 da Constituição Federal para prever o início da imputabilidade penal aos 16 anos.

A proposta é flagrantemente inconstitucional, além de inútil aos fins a que supostamente se dirige.

A “inimputabilidade penal” representa uma das garantias fundamentais da pessoa humana, uma vez que o artigo 228 do texto constitucional estabelece a idade de 18 anos como limite ao poder punitivo penal. Trata-se de uma escolha político-criminal do constituinte com vistas a garantir a proteção à infância, respeitando-se a condição peculiar de pessoa em desenvolvimento (art. 227, § 3º, V, da CF).

Dessa forma, a simples deliberação de proposta de emenda tendente a abolir ou minorar os direitos e garantias individuais, ou seja, as regras de proteção do indivíduo frente ao Estado, já se revela como afronta à Constituição que, em seu art. 60, § 4º, IV, trata tal matéria como imutável pelo Poder Constituinte Derivado.

Além disso, a normativa internacional de defesa dos direitos humanos encampa o princípio da vedação ao retrocesso, em que a previsão e a efetivação dos direitos deve ser realizada de forma progressiva, cada vez mais abrangente. Nesse sentido, a redução da maioridade penal não poderia ser admitida sequer com o estabelecimento de uma nova Constituinte, sob pena de responsabilização internacional do Estado Brasileiro. A Comissão Interamericana de Direitos Humanos, aliás, já se pronunciou recentemente acerca da PEC 171/93, expressando sua preocupação com o que considerou “grave retrocesso e uma violação dos direitos fundamentais dos adolescentes, pois viola sua garantia de ser tratado por uma justiça juvenil especializada”.

Não bastasse o óbice decorrente da sistemática normativa, a proposta de emenda constitucional é imprestável para a consecução dos fins que supostamente persegue. O projeto fundamenta-se em equivocada noção de ser o Direito Penal capaz de prevenir e impedir delitos, promessa essa que nunca se confirmou empiricamente. Ao contrário, tudo indica que a PEC produzirá efeitos nocivos à sociedade, tendo em vista que a inserção precoce de pessoas no cárcere poderá acarretar sua morte social: ao permanecer segregado da sociedade desde cedo, deixando a prisão com sabe-se lá qual idade, as chances de se obter êxito na profissionalização serão diminutas, por motivos tão óbvios que dispensam argumentação.

Com isso, o Estado não apenas deixará de cumprir a promessa de redução da violência, como a incrementará, uma vez que, ao excluir os jovens justamente no período em que estão a aprender a lidar com a emancipação e a liberdade, criará ambientes mais propícios para o ingresso da juventude nas carreiras criminosas.

Sobre esse aspecto, imprescindível a análise dos índices de reincidência. Embora tais números não sejam absolutamente seguros, nenhuma política sobre o assunto pode ser definida sem apreciá-los (mesmo que seja para aperfeiçoar sua colheita): enquanto entre os adultos a reincidência está na casa dos 70%, para os adolescentes (a depender da fonte) essa taxa varia de 15% (Fundação CASA, 2015) a 54% (CNJ, 2012).

É de se ter em vista, por outro lado, que os atos infracionais praticados por adolescentes não chegam a 10% do total de crimes praticados no Brasil (ILANUD). Apenas 1% dos homicídios ocorridos são cometidos por adolescentes e, incluindo-se nesse montante as tentativas, apenas 0,5% teriam adolescentes envolvidos (Ministério da Justiça). Em contrapartida, mais de 36% das vítimas de homicídios no Brasil são adolescentes, em oposição a 4,8% da população em geral (SDH/PR), justamente por se tratar de parcela da população mais carente de políticas públicas, em escancarada oposição entre o texto constitucional e a nossa crua realidade.

É evidente que há muitos outros argumentos, como aqueles constantes da Nota Técnica produzida pelo Departamento de Estudos e Projetos Legislativos do IBCCRIM a respeito da PEC 171/93, já nas mãos dos parlamentares. Por outro lado, só neste periódico, ao longo de mais de 20 anos, há dezenas de manifestações qualificadas sobre o tema. Entristece ver a atualidade, por exemplo, do editorial do Boletim de março de 2007, no qual se pontuou que “negar os valores do Estatuto da Criança e do Adolescente e enfatizar a redução da maioria penal como solução para a crise de segurança é mais do que escamotear a verdade. É iludir a opinião pública com fantasias e alimentar a hipocrisia. Acima de tudo, é um lamentável equívoco histórico, pois estigmatizar crianças como criminosos, penalizar adolescentes e criminalizar jovens, é negar às novas gerações o direito de forjar seu projeto de sociedade. É impedi-las de construir seu futuro em bases alicerçadas na ideia de inclusão social, no princípio da solidariedade e no respeito aos direitos civis”.

O debate, em todo esse tempo, infelizmente em nada evoluiu. É indispensável repisar que o objetivo de todos deve ser comum: construir uma sociedade com o mínimo de violência possível. A redução da maioridade penal, decerto, não é um dos mecanismos que auxilie nessa consecução.

Não se ignora que o momento político seja dos mais perigosos para os direitos e garantias plasmados na Constituição de 1988 e nos tratados internacionais de que o Brasil é signatário. Não se pode ignorar, também, que é nesses tempos de crise que se forjam uniões potentes entre diversos atores sociais. Que mais essa tentativa de redução da maioridade penal sirva para isso: alertar a todos que não basta se opor ao retrocesso; é preciso forçar o avanço com a mesma intensidade e convicção.

Quem sabe assim, em alguns anos, o IBCCRIM poderá publicar não um editorial para, em coro a tantas outras instituições nacionais e internacionais, se contrapor mais uma proposta de redução da maioridade penal, mas para comemorar que a família, a sociedade e o Estado brasileiros finalmente asseguraram à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão (art. 227, caput, CF).

Enquanto esse tempo não chega, ao menos em relação aos adolescentes – em conflito com a lei ou não –, uma boa ideia é que se comece a cumprir a Constituição Federal, o ECA e a Lei do SINASE; se a delinquência juvenil não baixar – algo praticamente impossível –, ao menos teremos dado aos nossos jovens e à nossa sociedade o direito de sonhar.



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