INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS

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Boletim - 269 - Abril/2015





 

Coordenador chefe:

José Carlos Abissamra Filho

Coordenadores adjuntos:

Arthur Sodré Prado, Fernando Gardinali e Guilherme Suguimori Santos

Conselho Editorial

Editorial

Guerra às drogas e guerra aos jovens: o papel do Judiciário

A tese de que a Guerra às Drogas tem sido um enorme fracasso encontra cada vez mais evidências. A repressão do Estado não fez diminuir o consumo de drogas, nem o tráfico. O mundo livre de drogas prometido pela ilusória propaganda proibicionista criou, na vida real, o incremento dos riscos associados ao uso de drogas, sistemáticas violações de direitos humanos e discriminação de grupos vulneráveis, como de mulheres e de jovens, em especial os afrodescendentes, hipertrofiando um mercado que enriquece as organizações mafiosas e faz crescer os índices de criminalidade, além de sabotar o desenvolvimento de uma cultura de segurança cidadã. Em resumo, a guerra às drogas estimula os conflitos e debilita o Estado de Direito.

Entre os nefastos danos produzidos pela guerra, destacam-se, no Brasil, a violência e o superencarceramento. A opção pelo enfrentamento bélico moldou uma força de segurança que ostenta índices de letalidade sem precedentes em comparação com outros países e a principal vítima é a camada mais jovem da população que vive nas periferias das grandes cidades. Não para de crescer o número de pessoas que ingressam no tráfico e acabam por engrossar as estatísticas do sistema prisional. A realidade é ainda mais perversa quando voltamos o olhar para os adolescentes que se iniciam no varejo do tráfico e para o tratamento que o Judiciário dispensa a eles por meio das Varas da Infância e Juventude.

Associada à falta de outras oportunidades, o tráfico de drogas tornou-se uma opção atraente para os jovens de baixa renda no Brasil. A “carreira criminal”, a despeito de seus riscos inerentes (“cadeia ou caixão”), é compreendida em muitos casos como a única alternativa para a ascensão social. A “Biqueira SA” é um negócio em expansão e sempre que a repressão tira de circulação os varejistas que atuam nas franjas do negócio, a reposição é imediata, graças à abundante mão de obra excedente.

No âmbito do Direito, os teóricos do labelling approach apontam que a pecha de criminoso é responsável em grande medida pela reincidência criminosa. Aquele que carrega o estigma tem dificuldade de reinserção no mercado de trabalho e recebe tratamento diferenciado tanto nas esferas policiais e quanto no Judiciário, visto que um acusado com “passagens” pelo sistema prisional recebe um número maior de condenações.

Este cenário se agrava quando nos referimos a adolescentes, por ocorrer nesta fase da vida o desenvolvimento da personalidade e a construção das noções de identidade e pertencimento. A segregação de um adolescente em unidades de internação promove a imersão em uma cultura institucionalizada, com linguagem e símbolos próprios, onde se encontram outros jovens em iguais situações (na maioria dos casos, pobres envolvidos em roubo ou tráfico). Como demonstrou Mallart,(1) a organização e o clima da Fundação Casa, em São Paulo, emulam o sistema prisional dos adultos, inclusive nas conexões com as facções criminosas. Quando deixam a unidade, acabam por ser alvo de preconceitos por parte da família, dos vizinhos, dos educadores, de tal sorte que a medida socioeducativa acaba, no mais das vezes, a empurrá-lo decisivamente para uma carreira criminosa. Assim, o sistema descumpre seu objetivo declarado, a formação socioeducativa, não sendo exagero afirmar que, na perspectiva das carreiras criminosas, a institucionalização precoce em uma unidade de internação cumpre a função de “pré-escola do crime”.

Especificamente quanto ao tráfico de drogas, as respostas oferecidas pelo Estado ao adolescente e ao adulto são diametralmente opostas: enquanto ao adulto a pena aplicada se inicia no patamar de 5 anos de reclusão, ao adolescente sequer seria possível a aplicação de medida socioeducativa de internação, prevista pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). A internação estaria restrita aos casos em que o adolescente tenha cometido violência ou grave ameaça à pessoa (art. 122, I) e nos quais se verifique reiteração em atos infracionais graves (art. 122, II); tal garantia advém dos princípios constitucionais da brevidade, excepcionalidade e respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento, quando da aplicação de qualquer medida privativa de liberdade (art. 227, § 3.º, V).

Ocorre que, conforme dados apresentados pela Fundação CASA, no Estado de São Paulo o ato infracional equiparado ao tráfico de drogas responde por mais de um terço dos adolescentes internados, sendo ultrapassado, por pouca diferença, apenas pelo roubo. Além disso, não é raro encontrar na prática judiciária da infância e juventude fundamentações que buscam aproximar a gravidade abstrata do tráfico e sua natureza hedionda àquela referida no art. 122, I, do ECA e, assim, abrir caminho para o encarceramento de adolescentes.

O advento da súmula 492 do STJ consolidou entendimento que relativiza a regra do art. 122 do ECA (inclusive como já vinha acenando o STJ, entre outros, no julgamento do EDcl no HC 180924-RJ), ao apontar que “o ato infracional análogo ao tráfico de drogas, por si só, não conduz obrigatoriamente à imposição de medida socioeducativa de internação do adolescente”, abrindo margem para a aplicação da medida extrema, desde que se gastem algumas linhas indicando alguma  razão para que a institucionalização do adolescente seja vista como necessária. Ou seja, a interpretação da súmula tem sido contrária ao seu objetivo original, que é o de reafirmar a natureza excepcional da internação por conta do ato infracional de tráfico de drogas.

Em 2015, o ECA completa 25 anos e, em que pesem vozes crescentes, inclusive no Legislativo, apontando para seu fracasso e clamando por uma reforma radical do Estatuto, o fato é que sua efetiva aplicação nunca foi totalmente concretizada. O ímpeto punitivista somado à ingenuidade de se estar “fazendo o bem” ao encaminhar adolescentes às unidades de internação têm se mostrado recorrente desde os Códigos de Menores de 1927 e 1979. Longe de se tratar de um problema exclusivamente legislativo, de ausência de defesa ou de quaisquer outras justificativas, a questão da internação de adolescentes está mais atrelada à vontade do julgador, embebida, por sua vez, no discurso moral inerente à Guerra às Drogas. De nada vale uma boa legislação, um bom discurso oficial, se o magistrado da Comarca, respaldado pelo respectivo Tribunal de Justiça e pelo Superior Tribunal de Justiça, persistir na aplicação de internações provisórias e definitivas de adolescentes que incorrerem em atos infracionais praticados sem violência ou ameaça à pessoa. Ao contrário, ao insistir na internação de jovens que estejam envolvidos com o varejo miúdo de drogas, o Judiciário termina por promover carreiras criminosas associadas à violência.

Nota

(1) Mallart, Fábio. Cadeias dominadas: a Fundação Casa, suas dinâmicas e as trajetórias de jovens internos. São Paulo: Editora Terceiro Nome, 2014.



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