INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS

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Boletim - 268 - Março/2015





 

Coordenador chefe:

José Carlos Abissamra Filho

Coordenadores adjuntos:

Arthur Sodré Prado, Fernando Gardinali e Guilherme Suguimori Santos

Conselho Editorial

Editorial

Audiência de custódia no Brasil, ainda que tardia

Chegou a hora. Finalmente parece termos coragem, no Brasil, de implantar a audiência de custódia. Trata-se de coragem, diga-se de passagem, manifestada com grande atraso. Em um país no qual a tortura é banalizada até em programas vespertinos de televisão como algo desejável ou necessário, em um país que ostenta índices de violência policial dignos do livro dos recordes e em que os presos sem culpa definitivamente formada chegam a, em cálculo conservador, aproximadamente 50% do total de pessoas jogadas nas nossas superlotadas masmorras medievais, cumprir o compromisso assumido no longínquo ano de 1992 ao assinar o Pacto de San José da Costa Rica deveria constituir tarefa a ser implementada no dia seguinte à sua assunção.

Sem embargo da espera de quase 23 anos para implementar o que diz o art. 7.5 do Pacto (Decreto Legislativo 678/1992), chegou a hora de o Brasil cumprir essa sua obrigação humanitária internacional. É por este motivo que o IBCCRIM apoia a imediata e urgente aprovação do PLS 554/2011, em trâmite no Senado Federal.

É bem verdade que se têm visto algumas manifestações refratárias ao controle que se passará a cobrar (como se isso não fosse obrigação a se esperar dos atores no processo penal) com a audiência de custódia no Brasil. Por má vontade ou interpretação que confunde seu propósito com o da audiência de instrução e julgamento dos feitos criminais, a postura resiliente insiste em tentar deixar tudo como está – como se nossa situação de calamidade do sistema prisional permitisse tal inércia.

Curioso que, passados mais de 22 anos da vigência do Pacto de San José da Costa Rica (art. 7.5), e depois de 3 anos de tramitação do Projeto de Lei sobre a matéria, por conta de um primeiro projeto experimental em São Paulo agora apareçam argumentos que oscilam entre a “reserva do possível” e o que parece ser uma “cegueira deliberada” em tema tão fundamental quanto é o do contato imediato e presencial do preso com o juiz que deve analisar a sua situação (seja para soltá-lo, seja para impor-lhe medida cautelar diversa, seja, quando menos, para verificar pessoalmente questões personalíssimas de saúde ou de abusos cometidos pelo Estado no momento da segregação).

O que está em jogo é o cumprimento de tão inalienável quanto básico direito (o de exercer o controle efetivo sobre a perda da liberdade de alguém) de discutir, de forma ampla e transparente o cabimento e as justificativas da prisão cautelar de qualquer pessoa na maior brevidade possível.

A fiscalização da legalidade do ato de aprisionamento e tudo o que o circunda, de há muito já se sabe, não se basta com a fria afirmativa de que o “flagrante está formalmente em ordem”, sobretudo exarada após a leitura de um monte de papéis, no mais das vezes, meticulosamente formalizados exatamente para acobertar abusos cometidos na ação policial. Sabem todos que o papel e o contato pessoal com o cidadão não são fungíveis entre si. Um conjunto de peças processuais nunca foi e nunca será tão eficaz quanto uma audiência presencial entre juiz e jurisdicionado, particularmente em matéria de prisão.

Não há, neste Editorial, espaço para se comparar o estágio de cidadania ao qual o Brasil ainda não chegou se comparado a países vizinhos como Paraguai, Equador, Chile, Uruguai e outros, que já adotam a audiência de custódia. Mas não custa lembrar da mentira que é, neste ponto, dizer que o Brasil é um Estado de Direito se países com realidades sociais e jurídicas tão próximas às nossas já tomaram medidas suficientes para tratar seus cidadãos com mais dignidade nesse aspecto.

O momento, entretanto, não é só o de defender a urgente aprovação do PLS 554/2011. É de comemorar e de acompanhar de perto – e construtivamente – a implantação do Projeto Piloto previsto no Provimento 03/2015 do Tribunal de Justiça de São Paulo, concretização de iniciativa conjunta daquele Tribunal, do CNJ e do Ministério da Justiça.

De forma construtiva, então, importante destacar que o reconhecido avanço decorrente da pioneira implementação das audiências de custódia em São Paulo não pode ser manchado pela possibilidade abstrata trazida no referido Provimento de não realização do ato a partir do entendimento discricionário da autoridade policial sobre as “condições pessoais” do/a acusado/a, sob pena de um dos objetivos principais da audiência de custódia, qual seja o de inibir e apurar atos de violência e tortura policial, restar esvaziado, correndo-se o risco inadmissível de pessoa torturada se transformar em pessoa cujas “condições pessoais justifiquem a não realização da audiência”.

Também, importante não haver retrocesso no que se refere à garantia processual de realização da oitiva do acusado apenas ao final da instrução, conquistada em período relativamente recente, em observância ao princípio da ampla defesa.

A juntada do áudio da audiência de custódia aos autos principais do processo de conhecimento, na qual acusados inevitavelmente falarão sobre os fatos, violaria duplamente as garantias processuais, aliás: a pessoa acusada voltaria a se manifestar sobre os fatos antes das testemunhas e, pior, em audiência na qual não estará garantido o contraditório e a ampla defesa, vez que o objetivo da audiência não é a comprovação dos fatos – não havendo espaço para inquirições sobre eles –, mas a análise da necessidade de medida cautelar. Essencial, pois, a correção do Provimento, para absorver a Emenda apresentada ao PLS 554/2011, no que se refere à expressa proibição de utilização dos fatos narrados na audiência de custódia como prova em desfavor da pessoa, de modo a manter uma separação física entre os autos do processo de conhecimento e o registro da audiência de custódia, e evitar a contaminação do juiz responsável por decidir o mérito do processo penal.

Ademais, a garantia de independência funcional também deve ser observada, o que não ocorre na Capital paulista, uma vez que os/as juízes/as que integram o Departamento de Inquéritos Policiais e Polícia Judiciária (DIPO) são livremente indicados e destituídos pela cúpula do Tribunal de Justiça.

O tempo, pois, é de, com muito cuidado, somar esforços para que se cumpra a norma do Pacto de San José da Costa Rica (quando menos, pela interpretação atual do STF, lei entre nós), integralmente e sem retrocessos. Enfim: que venha – já após tanta demora – a audiência de custódia, mas que venha para ser cumprida de verdade, e não, como infelizmente é praxe no nosso sistema de justiça, para inglês ver (em tema de prisão cautelar, a Lei 12.403/2011 está aí como triste exemplo disso).



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