INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS

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Boletim - 267 - Fevereiro/2015





 

Coordenador chefe:

José Carlos Abissamra Filho

Coordenadores adjuntos:

Arthur Sodré Prado, Fernando Gardinali e Guilherme Suguimori Santos

Conselho Editorial

Editorial

Revista vexatória: o estupro institucionalizado

Eu não vou mais visitá-lo porque não aguento esse tipo de humilhação. Na revista a gente tira a roupa, abaixa três vezes de frente, três vezes de costas. E ainda ouvimos: ‘Abre, abre que não estou vendo nada’. Perguntei para a agente penitenciária: ‘Mas você quer ver o quê? Meu útero, meu coração?’ Até que pediram para eu abrir minha vagina com as mãos.” (F., 42 anos)

Não é assunto novo dizer que a revista vexatória, eufemisticamente chamada de “revista íntima”, constitui conduta atentatória à dignidade humana em razão da brutal violação ao direito à intimidade, à inviolabilidade corporal e à convivência familiar entre visitante e preso/interno. Também não é desconhecido que tal prática, por ser recorrente também em crianças e adolescentes, viola o dever especial de protegê-las de tratamentos vexatórios ou constrangedores, além de todo fecho de direitos provenientes da doutrina da proteção integral que ilumina a Constituição Federal, a Convenção dos Direitos da Criança e o Estatuto da Criança e do Adolescente. Ainda, com Zaffaroni – que considera pena não só aquela assim formalmente apresentada pelo Estado, mas também as ações às margens da lei praticadas pelas agências executivas de controle – é lugar comum apontar que esse proceder incute pena cruel ao preso/interno, bem como viola o princípio de que a pena não deva ultrapassar a pessoa do condenado, proporcionando tratamento desumano e degradante ao detento e aos seus visitantes.

Em âmbito internacional, diversos órgãos firmaram posição proibindo essa prática, seja na OEA por meio da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (Princípios e Boas Práticas para a Proteção das Pessoas Privadas de Liberdade nas Américas; Relatório Anual 38/96 referente à Argentina) e da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Caso Penal Miguel Castro Castro Vs. Perú), seja na ONU (Regras de Bangkok) e na Corte Europeia de Direitos Humanos (Caso Lorsé e outros Vs. Holanda).

No Brasil, além do próprio IBCCRIM, diversas outras organizações preocupadas com o respeito aos direitos humanos já se manifestaram contrariamente à revista vexatória, tais quais Conectas Direitos Humanos, Rede Justiça Criminal, ITTC, Pastoral Carcerária e Defensorias Públicas. No que diz respeito às regulamentações internas, apesar da existência de algumas leis estaduais proibindo a revista vexatória ou limitando-a, tal prática permanece sendo praxe nas unidades prisionais de quase todos os Estados do país, com exceção de Goiás.

Ao argumento de que tais direitos deveriam sofrer uma ponderação frente à necessidade de garantir a segurança pública ao impedir que objetos ilícitos entrem no estabelecimento prisional/de internação, dados oficiais, fornecidos pela Secretaria de Administração Penitenciária do Estado de São Paulo (SAP), apresentados no relatório produzido pela Ouvidoria e pelo Núcleo Especializado de Situação Carcerária da Defensoria Pública de São Paulo (DPESP) apontam que entre os anos de 2012 e 2013 foram realizadas 3.407.926 visitas nas 159 unidades prisionais do Estado administradas pela SAP, oportunidade em que se deram apenas 493 apreensões de telefones celulares com visitantes e 354 de entorpecentes, o que corresponde a apenas 0,023%, ou seja, duas em cada 10 mil visitas. Por outro lado, em tal período, houve a apreensão de 11.992 aparelhos celulares e de 4.417 entorpecentes nas unidades prisionais, o que implica que apenas 3,66% das apreensões de celulares e 8% de entorpecentes ocorreram com visitantes. Ainda conforme o relatório, durante tal período não foi registrada apreensão de arma em revistas. Ou seja, a esmagadora maioria da entrada de objetos ilícitos nas unidades prisionais se dá por meios outros que não pelos visitantes.

Situação semelhante ocorre nos estabelecimentos de cumprimento de medida socioeducativa de internação para adolescentes no Estado de São Paulo, a exemplo de outros Estados, sendo que consta do documento “Superintendência de Segurança e Disciplina: conceitos, diretrizes e procedimentos”, produzido pela Fundação CASA, inclusive com gravuras, como deve se dar a revista vexatória nas visitas e nos adolescentes. Referido documento aponta a necessidade de tal revista sempre que ocorra movimentação externa (saída ao fórum, hospital etc.), na entrada e na saída, independentemente da existência de fundada suspeita para tanto, sendo que, conforme informações colhidas pela Defensoria Pública de São Paulo, existem relatos de adolescentes que foram submetidos a cerca de 15 revistas por dia, uma para cada troca de ambiente (quarto, refeitório, sala de aula e tv), o que, nas palavras do Defensor Público Marcelo Carneiro Novaes, em publicação sobre o tema, “traduz tortura, tratamento degradante, um verdadeiro estupro institucionalizado, porquanto a exposição forçada da genitália dos adolescentes a agentes estatais, sem justificativa plausível, ofende a dignidade sexual desses jovens, [...] coisifica-os, gerando ódio e revolta”.

Diante de tal cenário, reitera o IBCCRIM sua posição pelo fim da revista vexatória, repudiando essa prática humilhante e nitidamente inconstitucional. Apoiamos projetos de lei em âmbito nacional e estadual que tratem do tema e clamamos à comunidade jurídica e aos demais atores sociais que se mobilizem para a aprovação do PL 480/13 (que pretende alterar a LEP e proibir a revista vexatória em estabelecimentos prisionais), que denunciem tal proceder a órgãos nacionais e internacionais de proteção aos direitos humanos, bem como que produzam e incentivem a produção de trabalhos e pesquisas sobre revista vexatória, a tornar cada vez mais flagrante sua inconstitucionalidade e ineficiência.



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