Rogério Fernando Taffarello
Cecília de Souza Santos, José Carlos Abissamra Filho e Matheus Silveira Pupo.
Em 1660 o cientista britânico Robert Boyle formulou a famosa assertiva segundo a qual o som não se propaga no vácuo, mas muito antes disso já se construíam ou se empurravam pessoas para espaços onde os gritos, brados e sussurros não podem ser ouvidos. Esses espaços de exclusão levam o nome de masmorras, cativeiros, cadeias, penitenciárias ou prisões.
Mas, diferentemente do que se imagina, as prisões não são somente espaços cercados por muros e alambrados cortantes, são também todos os locais em que o som que sai das gargantas não tem ressonância, portanto, que não pode ser ouvido.
Da mesma forma que as vozes de todos aqueles que forçadamente (porque a distância não é opção) moram nas periferias não ecoam, as vozes dos encarcerados também não se propagam.
Não por outro motivo, fica cada vez mais evidente que o sistema prisional é apenas uma extensão das periferias, onde preponderantemente os pretos e pobres são retirados de seus lares para serem jogados ao lado de outros de mesma cor e classe social, pela velha e tão nociva seletividade penal.
O silêncio forçado que reina em um espaço impera também no outro. Por essa razão, assim como não se sabe o que realmente acontece nos becos escuros dos bairros que margeiam os grandes centros, a verdade é que não se sabe também o que se passa nos intramuros do sistema penitenciário.
Essa pena em específico não foi determinada por um juiz de direito, mas sim por um sistema econômico, pois muito antes de serem acusados de qualquer crime, já cumpriam a sentença de terem suas vozes caladas pela imensidão do vácuo da desigualdade social e pelas políticas de criminalização da pobreza.
Esse silêncio tem uma razão e principalmente uma função.
Certamente não é coincidência que as notícias que são publicadas sobre os bairros periféricos e sobre o sistema penitenciário, em geral, ocupem apenas os cadernos policiais. Talvez também não seja por mero acaso que seja nesse exato mesmo espaço dos jornais que recentemente têm sido divulgadas informações sobre protestos e seus manifestantes.
Alguém se busca calar ou alguma ideia se pretende dissipar.
Há tempos que se afirma que o direito de manifestação não reflete apenas um direito subjetivo, mas sobretudo um direito coletivo, pois é exatamente da propagação de uma ideia expressada por uma pessoa, que outra (ou outras) podem ouvir, concordar, discordar, enfim, discutir e dialogar. Em outras palavras, o direito individual de uma pessoa se manifestar é intrínseco ao direito de acesso à informação de toda a sociedade.
É nesse sentido que silenciar as vozes que vêm das manifestações, seja pela repressão violenta, seja pelo encarceramento de indivíduos que sabidamente ocupam as ruas com o fim específico de bradar por direitos ou questionar desmandos, fere mortalmente as bases estruturais de uma sociedade que deveria ser calcada nas liberdades individuais.
Fato que passou a chamar a atenção nos últimos tempos é que as mesmas práticas estatais autoritárias que sempre silenciaram e condenaram os pobres e negros das periferias passaram a ter alguma divulgação (e aí causar alguma indignação) ao bater às portas da região central das grandes metrópoles.
É isso que tem acontecido na chamada criminalização das lutas sociais, contexto no qual o aparato repressivo do Estado passou a reproduzir, em espaços ocupados por manifestantes que buscam exatamente se fazer ouvidos, as mesmas e velhas arbitrariedades e truculência que outrora se restringiam aos locais onde – e de onde – o som não se propagava.
Por não estarem acostumados aos conceitos mais básicos de democracia, muitos detentores de cargos eletivos não compreendem que em um diálogo, por vezes, o papel do Estado é ser o ouvinte e não apenas o ditador de regras.
Muito em razão disso, as vozes de indignação e insubmissão que vêm das ruas tanto incomodam, e a única resposta estatal para calar esses clamores sociais que se vê é a propagação de um falso senso de insegurança para justificar o uso de sua pasta de segurança pública e reprimir a priori qualquer sinal de protesto, mesmo que seja a custo da prática de ilegalidades como prisões para averiguação, flagrantes urdidos, investigações com cunho político, forja de provas, intimidações a advogados, etc.
O direito penal é apenas o instrumento manuseado por todos os Poderes para dar respostas políticas, ou para buscar silenciar os protestos, como se esse fosse um meio hábil para resolver conflitos de profunda imbricação humana e social.
O Legislativo, de forma populista, propõe uma gama desmedida de normas – quase todas de constitucionalidade altamente duvidosa – com vistas ao aumento do controle e ao recrudescimento das punições para situações havidas no bojo dos protestos, como a vedação de uso de máscaras no Rio e São Paulo. O Executivo organiza e coordena as polícias para que intimidem e aprisionem, e assim calem, todos os manifestantes. Ao Judiciário cabe ratificar ou desfazer as ilegalidades praticadas pelos outros órgãos, e a impressão que se tem é a de que, ressalvadas exceções honrosas, mais as tem ratificado do que desfeito.
Nesse ínterim, manifestantes têm sido presos, os pretos e pobres condenados, e todos, amordaçados.
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