INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS

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Boletim - 257 - Abril/2014





 

Coordenador chefe:

Rogério Fernando Taffarello

Coordenadores adjuntos:

Cecília de Souza Santos, José Carlos Abissamra Filho e Matheus Silveira Pupo.

Conselho Editorial

Editorial

Caminhando contra o vento

Há cinquenta anos os militares tomavam o poder de João Goulart e instalavam um governo ditatorial no Brasil. Conquanto este cinquentenário não seja uma data digna de comemoração, também não pode deixar de ser lembrado, porque traz consigo lições que precisam ser revistas por um país que pretende consolidar-se como Estado Democrático de Direito.

O golpe, que teve intenso apoio de setores conservadores da sociedade brasileira, ensejou a supressão de liberdades individuais e de garantias processuais e institucionalizou a tortura, o assassinato, o estupro de civis e diversas outras formas bárbaras de lidar com o inimigo interno, tudo quase sempre abafado por um Estado que, de um lado, negava a independência funcional a seus juízes e aparelhava o sistema policial para agir de forma abominável e, de outro, tinha o apoio da grande mídia e calava o jornalismo que ousasse denunciar suas mazelas. Após muitos anos de autoritarismo institucionalizado, os movimentos sociais e a luta popular levaram às eleições diretas, não sem antes se frustrarem com uma anistia costurada para impedir a responsabilização de agentes do Estado e com a não aprovação da Emenda Dante de Oliveira (PEC nº 5/1983). Em fins da década de 1980, a Assembleia Constituinte foi instalada e o processo de democratização político foi formalizado.

Os ventos liberais, portanto, passaram a soprar no governo brasileiro. Surpreende, todavia, observar que, embora a abertura política tenha sido levada a cabo e a Constituição cidadã tenha sido promulgada, resquícios autoritários ainda são encontrados no sistema punitivo brasileiro em enorme medida. A repressão e o recrudescimento da atuação estatal não apenas são constatados, mas são desejados pela população inflamada pela mídia sensacionalista que tenciona legitimar o autoritarismo. A organização de uma nova edição da Marcha da Família vem corroborar essa impressão.

Desde 1990, quando da promulgação da Lei de Crimes Hediondos (Lei 8.072/90), trilha-se o caminho diametralmente oposto ao que parecia ser a tendência no final do regime militar, uma vez que em 1984 a Lei 7.209 introduzira penas restritivas de direito com o escopo de promover o desencarceramento. Agora, observa-se a expansão desmesurada do Direito Penal, com a criação de tipos sem atenção à subsidiariedade da resposta punitiva, às exigências de segurança jurídica que devem consubstanciar, e tampouco à proporcionalidade das penas. Isso sem mencionar a supressão legal e jurisprudencial de direitos e garantias processuais, especialmente no que tange à execução penal.

Inúmeros exemplos demonstram que o sistema penal caminha contra o vento democrático. Em primeiro lugar, as alterações promovidas na Lei de Crimes Hediondos foram, muitas vezes, desnecessárias e mera reação ao clamor popular sobre fatos de repercussão mediática. No Projeto de Novo Código Penal também houve a tentativa de criação de delitos independentemente da necessidade de intervenção criminal, e se mantém e se incrementa o paradigma falido da prisão como pena para todo e qualquer delito. Isso sem falar das inúmeras vezes em que se cogita reduzir a maioridade penal. Ainda, recentemente, foi apresentado Projeto de Lei para definir o crime de terrorismo, o qual propõe um tipo indevidamente aberto com o claro objetivo de conter manifestações políticas na Copa do Mundo que se aproxima e, se aprovado, prestar-se-á a toda sorte de repressão indevida à dissidência política e mesmo a movimentos sociais constitucionalmente legítimos.

Ao lado da inflação de normas punitivas, observa-se o desenvolvimento do processo penal de emergência. Sob a alegação de proteção da sociedade contra a criminalidade complexa e organizada, direitos e garantias individuais sofrem limitações em investigações, processos e execuções de penas em casos especiais. No Brasil, o maior ícone desse processo foi a criação do Regime Disciplinar Diferenciado, no ano de 2003, mas diversos outros diplomas trouxeram inovações com vistas a aumentar a efetividade da persecução penal em face dos inimigos estatais de ocasião, tendo-se como justificativa a necessidade de reprimir grupos criminosos que nasceram e se desenvolveram graças à omissão estatal dentro de suas próprias instituições, como o Comando Vermelho e o Primeiro Comando da Capital. Exemplos recentes são a possibilidade de se instituir um colegiado de juízes para julgamento de organizações criminosas (Lei 12.694/2012) e o ataque à independência judicial no Estado de São Paulo promovido pela Lei Complementar 1.203/12, por meio da afronta à garantia à inamovibilidade dos magistrados.

Pior ainda é pensar na frequência com que se obtêm confissões e delações de cidadãos sob tortura em dependências policiais em todo o país, bem como nas execuções extrajudiciais cotidianas que fazem das polícias de São Paulo e Rio de Janeiro as mais violentas de todo o planeta.

A História é pendular e, após o período ditatorial, foram esculpidos na Constituição Federal direitos e garantias individuais para proteger os cidadãos do arbítrio estatal. A prática não pode ser diferente no que tange à persecução criminal: processo penal eficaz é aquele que produz resultado justo com a devida aplicação das garantias na maior medida possível, de modo que o garantismo integra a eficácia do sistema penal e não pode ser deixado de lado.

O ideal de justiça retributiva que vem sendo defendido pelos meios de comunicação e por parcela da população tem servido de apoio ao autoritarismo estatal no âmbito penal, alastrando-se para outros setores do Estado e da sociedade. Passados 50 anos do malfadado golpe militar e quase 30 de regime formalmente democrático, é imprescindível estarmos atentos não só aos avanços como, também, aos retrocessos ocorridos, de modo a continuarmos a caminhada por uma sociedade mais humana, justa e solidária. Assim, antes que seja tarde, é função do IBCCRIM alertar sobre o inadequado uso dos instrumentos punitivos, em defesa da manutenção do Estado Democrático de Direito que vem sendo conquistado a duras penas.

Nota da Diretoria: o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais manifesta o mais profundo pesar pelo falecimento do Desembargador Adauto Suannes, seu ilustre sócio-fundador e um dos principais inspiradores do trabalho das diferentes gerações de colaboradores e diretores que passaram pelo IBCCRIM em seus 22 anos de história.

Brilhante magistrado e escritor, humanista de rara erudição e sensibilidade, Adauto Suannes é responsável por algumas das mais notáveis decisões da Justiça paulista nas últimas décadas, as quais, ao lado de seus escritos, conferências e outras tantas lições, seguem a motivar-nos na incessante luta por um direito penal e processual penal democrático e garantidor das liberdades públicas consagradas pela Constituição Cidadã.



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