INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS

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Boletim - 252 - novembro/2013





 

Coordenador chefe:

Rogério Fernando Taffarello

Coordenadores adjuntos:

Cecília de Souza Santos, José Carlos Abissamra Filho e Matheus Silveira Pupo.

Conselho Editorial

Editorial

Editorial - O esforço de Sísifo e a audiência de custódia

Eramos mais felizes quando supúnhamos que um sistema de justiça criminal injusto e arbitrário era privilégio de regimes autoritários. Pior que um sistema de justiça criminal manipulado pelo arbítrio de um tirano é aquele que já não é injusto por vontade ou capricho de um único homem, mas injusto por iniquidade sistemática, anônima, autista, de um sistema que insiste em girar em torno de si mesmo, mais preocupado com o caos burocrático em que está mergulhado do que com os dramas dos homens e mulheres envolvidos nas demandas, compondo um terrível quadro de metalinguagem institucional.

Quem trabalha com o sistema de justiça criminal está sempre às voltas com o drama de Sísifo, personagem da mitologia grega, reencarnado na obra de Albert Camus. O estafante esforço para carregar nos ombros a grande pedra dos direitos e garantias fundamentais até o cume de uma justiça ideal é, volta e meia, recompensado perversamente com a pedra empurrada precipício abaixo, obrigando a repetição do trabalho ao infinito.

Veja-se o caso do habeas corpus. Agora que a parte mais pobre da população consegue finalmente bater às portas das Cortes Superiores, alguém aparece para dizer que o rei não poderá recebê-la. Por não conseguir julgar as causas criminais em um prazo razoável, juízes ansiosos por condenar subvertem a lei, prodigalizando o uso de medidas cautelares, a mais usada delas, a prisão. O abuso se transforma na escalada do uso de habeas corpus, que gera mais processos, que gera mais morosidade e, por conseguinte, mais juízes ansiosos por medidas cautelares, mais habeas corpus... e em vez de soluções como a redução do uso de medidas cautelares, já que somos um dos países que mais prende provisoriamente no mundo, a panaceia, para espanto geral, é o inverso, o cerco ao uso do habeas corpus, colocado sob os grilhões do sistema recursal ordinário, com prazos, formalidades e trâmites demorados.

Esse drama também é sentido quando se examina o resultado de dois anos de vigência da Lei 12.403/2011.

A chamada Lei das Medidas Cautelares introduziu algumas mudanças significativas, como a substituição do binário, prisão-liberdade, por nove vetores cautelares alternativos. Poucos são, no entanto, os juízes que conseguem se libertar do fetichismo da medida de prisão, havendo outros que parecem sofrer a mesma alienação de Maria Antonieta, oferecendo medidas como a fiança a presos detidos por acusações relacionadas a uma miserável condição socioeconômica.

Mas talvez um dos resultados mais preocupantes da nova lei é o estrangulamento da sacrossanta sistemática da prisão em flagrante. Da forma como vêm sendo interpretadas pelos Tribunais, as hipóteses de flagrante ilegal só existem agora na teoria, porque, na prática, podem ser convalidadas pelo decreto posterior de prisão preventiva. Pois, então, para prender em flagrante no país basta prognosticar a plausibilidade de futura decretação da prisão preventiva.

Ao lado dessas, outras deficiências do sistema devem ser lembradas, como o tempo extremamente longo que costuma transcorrer para o preso ser levado à presença de um juiz, algo que somente ocorre no momento do interrogatório, último ato da instrução.

Essas idiossincrasias tornam mais urgente do que nunca a aprovação do projeto em trâmite no Senado, que introduz no sistema processual brasileiro a tão esperada audiência de custódia. Aprovado pela Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa do Senado, no último dia 18 de setembro, o texto do PLS 554/2011 altera o art. 306 do CPP, obrigando que o preso em flagrante delito seja conduzido à presença do juiz no prazo de 24 horas após a prisão, quando, então, ouvidos o Ministério Público, um defensor e o próprio preso, serão examinadas a legalidade do flagrante e a necessidade cautelar da custódia.

A inovação processual, que segue agora para a Comissão de Assuntos Econômicos, é fruto de antiga exigência da Convenção Americana sobre os Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (“Pacto de San Jose”), tratado ratificado pelo Brasil em 9 de julho de 1992, que em seu art. 7.º, V, estabelece que “toda pessoa detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz...”. Além de primar pelo resguardo de sua integridade física e moral, a proposta consolida o direito de acesso à justiça do réu preso, com a ampla defesa garantida em momento crucial da persecução penal, sem, no entanto, implicar antecipação do interrogatório, já que o projeto prevê expressamente no § 3.º a impossibilidade de que este depoimento preliminar em juízo seja usado depois para condenar o réu.

A questão é saber se, uma vez aprovado o projeto, a regra será efetivamente cumprida, ou será mais uma destas exigências legais que nossas Cortes reputarão meramente cosméticas, incapazes de afetar a legalidade da prisão, o que não seria de estranhar, a levar em conta o desprezo da jurisprudência pelas regras do flagrante, quando já convertido em preventiva, ou pelo atual art. 306, que prevê a comunicação do flagrante ao juiz em 24 horas. Será o projeto em trâmite no Senado mais um esforço de Sísifo?



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