Rogério Fernando Taffarello
José Carlos Abissamra Filho, Matheus Silveira Pupo e Rafael Lira.
Os últimos meses foram históricos. Marcados pelos protestos contra o aumento da tarifa dos transportes públicos comandados pelo Movimento Passe Livre inicialmente em São Paulo, as quatro primeiras manifestações - especialmente a quarta, realizada em 13.06.2013 - foram caracterizadas pela truculência e violência da Polícia Militar ao, supostamente, tentar conter os manifestantes. Se inicialmente a imprensa se limitou a noticiar que "vandalismo marca ato por transporte mais barato em SP" (Folha de S. Paulo, 07.06.2013), ao longo da primeira semana ficou evidente a falta de habilidade do Estado para lidar com o exercício legítimo dos direitos de reunião e livre manifestação, apoiando-se na repressão policial como forma de "conter" - se é que algo precisava ser contido - os manifestantes, o que fez o mesmo jornal noticiar em 14.06.2013 que a "Polícia reage com violência a protestos e SP vive noite de caos".
Aquela noite de caos acabou com a condução a Delegacias de Polícia paulistas de, pelo menos, 232 pessoas, sendo que, ao final, 4 ficaram detidas. Todas as demais foram levadas para pretensa "averiguação", atitude que viola frontalmente a Constituição Federal, que determina que apenas pode haver prisão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de um Juiz. A tal prisão para "averiguação", amplamente utilizada em regimes autoritários, foi há tempos banida de nossa legislação e constitui hoje verdadeiro abuso de autoridade. Sua utilização é apenas forma de demonstrar simbolicamente a força do Estado que, ao contrário do que quis fazer crer o Governador, não deveria assentar-se na truculência, mas sim no respeito aos direitos e liberdades fundamentais de todos.
Embora os abusos praticados pela Polícia Militar ao conduzir pessoas aleatoriamente para delegacias sejam mais visíveis, tampouco é possível ignorar a atuação da Polícia Civil que, ao lavrar autos de prisão por formação de quadrilha - delito que exige que um grupo determinado de indivíduos se reúna de forma estável e permanente para praticar crimes - envolvendo pessoas que nunca se haviam visto antes, também violou frontalmente princípios basilares do direito. Tal prática esconde ainda o perverso anseio de manter os manifestantes privados de liberdade por mais tempo, já que a real função de autuar as pessoas por este crime é impedir a possibilidade de fixação e pagamento de fiança ainda na Delegacia de Polícia.
Dentre os diversos abusos cometidos, sem dúvida a imagem da jornalista que teve seu olho atingido por tiros de arma de borracha, o que lhe custou 15 pontos no rosto, é chocante, mas também nos faz pensar: se em um ato com ampla cobertura da imprensa a Polícia Militar não hesitou em praticar tal violência, como reage às manifestações, bailes funks e saraus realizados na periferia, cujos habitantes são, também, os maiores prejudicados pela baixa qualidade e altos preços do transporte público?
"Que coincidência, sem a polícia, não tem violência!", gritaram os mais de 100 mil manifestantes ao lotar as ruas de São Paulo na segunda-feira, dia 17 de junho. De fato, após a população se comover com as cenas de horror desfiladas em plena Avenida Paulista pela PM no dia 13, a Secretaria de Segurança Pública pareceu ter retomado as rédeas da corporação. Nisso, seu caráter estritamente hierárquico obteve resultado: o contingente de policiais nas ruas se resumiu a - como deve ser - assistir a manifestação, agir quando algum crime ocorresse e respeitar os direitos constitucionais dos cidadãos envolvidos, sem qualquer atitude com vistas a reprimi-los. Se o controle hierárquico foi suficiente para evitar abusos, é preciso refletir sobre as responsabilidades, em alto escalão, pelas barbaridades cometidas antes da alvissareira mudança de postura da PM paulista.
As manifestações contra o aumento das passagens se espraiaram por todo o Brasil e tiveram resultado em várias capitais, onde as tarifas do transporte público voltaram aos patamares anteriores aos aumentos. No entanto, se em São Paulo a violência policial se reduziu nos dias subsequentes, sobre outros entes federados não se pode dizer o mesmo, como se tem visto em manifestações que continuam a ocorrer, por exemplo, no Rio de Janeiro.
Se a face violenta do policiamento ostensivo tem se mostrado nos lugares mais caros das cidades, também não deixou de fazer o que, infelizmente, é notoriamente corriqueiro. A operação de guerra que se armou no Complexo da Maré, no Rio de Janeiro, deixa isso claro. No que deixou escancarada a diferença de tratamento dispensado por nossas forças policiais aos pobres e aos ricos, lá as balas não foram de borracha. No dia 25 de junho, ao que tudo indica em retaliação à morte de um policial do BOPE, centenas de policiais invadiram a favela Nova Holanda, cortaram a luz, violaram diversos domicílios e mataram mais de dez pessoas. Com esse tipo de ação, dizer que não há pena de morte no Brasil beira a ironia.
Num país em que o senso comum insiste em dizer que os movimentos sociais - que são muitos, dos mais variados tipos e portes - estão enfraquecidos, num país em que esse mesmo senso comum insiste em dizer que as pessoas são acomodadas, a sociedade civil, em atos de proporções há muito não vistas, fez valer a afirmação constitucional de que "todo poder emana do povo".
O momento de euforia democrática, contudo, não pode fazer que descuremos de aprimorar nossas instituições. A truculência e a violência estrutural da polícia já são velhas conhecidas das pessoas pobres, negras e habitantes de favelas, mas dificilmente chegam ao conhecimento do público em geral. Embora seja triste constatar que só com o desfile da violência policial pelos bairros mais ricos da cidade é que o tema passa a ser realmente debatido, não podemos deixar a oportunidade se perder. É hora de uma mudança drástica e impostergável na ideologia, na organização e nos métodos de trabalho de nossas polícias. O debate - dos mais profundos e importantes para a sociedade na atualidade - finalmente está aberto.
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