INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS

     OK
alterar meus dados         
ASSOCIE-SE


Boletim - 248 - julho/2013





 

Coordenador chefe:

Rogério Fernando Taffarello

Coordenadores adjuntos:

Cecília de Souza Santos, José Carlos Abissamra Filho, Matheus Silveira Pupo e Rafael Lira.

Conselho Editorial

Editorial

Editorial - Coleção de retrocessos

A engenharia legislativa brasileira tem produzido projetos de lei de baixa qualidade técnica e, não raro, tem provocado o surgimento de leis de conteúdo aberrante. Não causa, portanto, surpresa o fato de que o denominado “Estatuto do Nascituro” (PL 478/2007), esteja no aguardo de sua aprovação pela Comissão de Constituição e Justiça para ser encaminhado à votação no plenário da Câmara dos Deputados, após o Substitutivo da Comissão de Seguridade Social e Família, e da aprovação pela Comissão de Finanças e Tributação. O ponto de partida do referido estatuto é a afirmação de que o “nascituro é o ser humano concebido”, o que significa dizer que a vida começa na concepção. Definir, normativamente, o conceito de vida é algo que afronta às ciências biológicas, à realidade jurídico-constitucional e ao bom-senso. Enfoques diversificados, de origem bioética, filosófica, jurídica e médica recomendam que o conceito de vida permaneça em aberto, não se justificando que se lhe dê, por meio de lei, uma exclusiva entonação religiosa. Se acolhido o entendimento do “Estatuto do Nascituro” – confirmado no respectivo Substitutivo – guardaria pertinência o raciocínio de que cada fecundação produz uma gravidez viável que se finda com o nascimento de um ser humano. Tal raciocínio é, no entanto, falso na medida em que 50% dos óvulos fecundados são abortados, de forma espontânea, por diversas causas, no período compreendido entre a fecundação e a nidação. Por sua vez, trinta por cento dos embriões implantados conduz a um feto com possibilidade de desenvolvimento. Razão assiste, portanto, a José Luís Velásquez (Del homo al embrión. Etica e biologiapara oséculo XXI. Barcelona: Gedisa Editorial, 2003. p. 52-53) quando enfatiza que “a estatística demonstra que o destino habitual do embrião implantado não é atingir o estágio de pessoa, mas, sim, morrer por antecipação. A probabilidade de que uma concepção produza um recém-nascido é muito inferior à probabilidade de que ocorram abortos ainda que não medeie ou se tenha produzido intervenção humana deliberada”. Por que, então, petrificar, na concepção, o conceito de vida?

Além disso, ao assegurar ao nascituro, desde a concepção, o direito à vida, o projeto original e o respectivo substitutivo buscaram dimensionar temporalmente o conceito de inviolabilidade do direito à vida constante do art. 5.º da Constituição Federal e, de certa forma, por via reflexa, erigiram o direito à vida como valor absoluto. Mas, em verdade, não há princípios constitucionais absolutos. Ninguém desconhece que o próprio direito à vida é desconsiderado nas hipóteses de legítima defesa, do estado de necessidade e da própria guerra e mesmo em situações fáticas ensombreadas, como o suicídio, a eutanásia e a pena de morte. Ainda que o texto constitucional dê proteção à vida em formação, não determinou o legislador constituinte o momento inicial dessa tutela. Daí afirmar-se que não cabe ao legislador ordinário fixá-lo na concepção. Ademais, não se pode perder de vista que o direito à vida, na fase primeira do processo de gestação, confronta-se com o direito da mulher à autodeterminação, constitucionalmente protegido, como expressão da autonomia da pessoa humana. Nessa situação de colisão de direitos fundamentais, é mister que se busquem concessões recíprocas, de forma a não sacrificar por inteiro nenhum desses direitos. Bem por isso, a fórmula de harmonização consiste numa tutela de intensidade crescente da vida em função das várias fases de desenvolvimento do produto da concepção, podendo-se, no caso, cogitar de um regime trifásico no qual, no período inicial, caberia à mulher expressar a autonomia de sua vontade; no período subsequente, a interrupção da gravidez ficaria na dependência do reconhecimento de determinadas indicações e, no período final, prevaleceria, sem contestação, o direito do feto à vida. O projeto original e o substitutivo impedem ostensivamente a composição entre direitos fundamentais constitucionalmente garantidos.

O “Estatuto do Nascituro” – e inclusive o seu Substitutivo – não levou também em conta que a técnica de reprodução humana havia dissociado conceitos tradicionalmente unificados (fecundação e gestação), já que a concepção pode ser concretizada em lâminas laboratoriais. E o projeto de lei, ao arrepio de inequívoco progresso tecnológico, tenta igualar, ao nascituro, os “seres humanos concebidos ainda que in vitro, mesmo antes de transferência para o útero da mulher” (parágrafo único do art. 1.º do Substitutivo). As expressões acolhidas no texto colocam em paralelo a concepção ocorrida no ventre da mulher e a concepção laboratorial. Esta equivalência provoca alternativas inaceitáveis. Se cada embrião crioconservado tem um código humano único e contém vida, OU sua implantação será impositiva – toda doadora de óvulo, que venha a ser fecundado, mesmo que não quisesse mais engravidar, seria obrigada, em tese, a abrigar o embrião laboratorial e, em muitos casos, as gravidezes se cumulariam no próprio tempo de vida da mulher – OU teria ela de encontrar outra mulher que recebesse o óvulo inseminado, OU teria de mantê-lo indefinidamente nos laboratórios de reprodução humana. Em nenhuma hipótese, o embrião crioconservado poderia ser objeto de pesquisa científica porque, nesse caso, estar-se-ia pondo fim a uma vida. O texto da proposta legislativa implica revogação implícita do art. 5.º da Lei 11.105/2005 que permite para fins de pesquisa e terapia, atendidas determinadas condições, a utilização de células-tronco embrionárias obtidas de embriões humanos sobrantes ao procedimento de reprodução assistida.

Se tais considerações já não fossem suficientes para sepultar, a sete palmos da superfície do ordenamento jurídico brasileiro, o Projeto de Lei 478/2007 e seu Substitutivo, há ainda outros tantos pontos anômalos a merecer destaque, ainda que de forma resumida. O Substitutivo (art. 13, caput), ao contrário do projeto originário, deixou explícita a manutenção da causa excludente de aborto contida no inc. II do art. 128 do Código Penal. No entanto, no afã de proteger “o nascituro concebido”, assegurou-lhe, entre outros direitos, no caso em que gestante não interrompa a gravidez e não disponha de “meios econômicos suficientes para cuidar da vida, da saúde, do desenvolvimento e da educação da criança”, o direito à pensão alimentícia, (§§ 1.º e 2.º do art. 13 do Substitutivo), recaindo o ônus de pagar tal pensão ao genitor, se identificado, ou, até que ocorra essa identificação, ao Estado (pagamento, pelo Estado, conforme emenda da Comissão de Finanças e Tributação, dar-se-á um ano após a aprovação da lei para que possa ser feita a previsão orçamentária). A simples formulação do texto põe à mostra o seu descabimento na medida em que, de um lado, procura conduzir a mulher a suportar gestação que lhe foi imposta por violência sexual e, de outro dá, como contrapartida, ao filho gerado nessas condições pensão alimentícia, como se o dinheiro, procedente do violador ou do Estado, fosse suficiente para restituir à mulher violentada sua dignidade como pessoa humana. Além disso, em flagrante linha de confronto com a histórica decisão do Supremo Tribunal Federal (ADPF 54) que considerou haver mera antecipação terapêutica de parto na interrupção da gravidez de feto anencefálico, o projeto de lei veda “ao Estado e aos particulares discriminar o nascituro”, em razão de “deficiência física ou mental”, colocando à sua disposição “os meios terapêuticos e profiláticos disponíveis e proporcionais para prevenir, curar ou minimizar deficiências ou patologia” (arts. 9.º e 10.º do Substitutivo).

Embora o Substitutivo, de autoria da Deputada Solange Almeida, tenha excluído do projeto originário excrescências de caráter penal (arts. 23, usque 29 do Projeto 478/207) – uma nova tipologia de figuras criminosas entre as quais se incluíam a conduta de quem congela, manipula ou utiliza nascituro, como material de experimentação, de quem anuncia processo, substância ou objeto destinado a provocar aborto, de quem faz publicamente a apologia do aborto, ou de quem se refere ao nascituro com palavras ou expressões depreciativas (!); um aumento significativo de penas cominadas aos tipos de aborto dos arts. 124, 125 e 126 do Código Penal e a inserção dos tipos de aborto no rol de crimes hediondos – força é convir que, pelo Regimento Interno da Câmara dos Deputados, se o texto original não for declarado inconstitucional, na Comissão de Constituição e Justiça, poderá, se rejeitado o Substitutivo, ser reapresentado e aprovado pelo plenário da Câmara dos Deputados.

O “Estatuto do Nascituro” – e seu Substitutivo, inclusive – é, portanto, uma homenagem ao despautério; é um voltar ao passado já superado, é um agravo aos direitos reprodutivos da mulher; é, em resumo, um cúmulo de bizantinices e de retrocessos.



IBCCRIM - Instituto Brasileiro de Ciências Criminais - Rua Onze de Agosto, 52 - 2º Andar - Centro - São Paulo - SP - 01018-010 - (11) 3111-1040