Fernanda Regina Vilares
Bruno Salles Pereira Ribeiro, Caroline Braun, Cecilia Tripodi, Rafael Lira e Renato Stanzio
A sanção da Lei Federal 12.720 reacendeu debates a respeito das milícias, fenômeno recente cujas origens remontam a antigas práticas de justiçamento.
No vácuo criado pela omissão do Estado em determinados territórios, grupos compostos de civis e agentes públicos ali ingressaram a pretexto de prestar serviços de segurança. Com a ocupação dos territórios, diversificaram suas atividades, passando a prestar outros serviços como o transporte alternativo, distribuição de gás e água, e ligações clandestinas de tevê a cabo. A frouxidão dos marcos regulatórios e fiscalizatórios de tais serviços criou campo fértil para a exploração de um novo nicho do mercado apropriado por tais grupos que, valendo-se de insígnias das forças de segurança pública, vêm promovendo a sua empresa pela disseminação do medo e da extorsão.
Documentos referenciais para a compreensão do fenômeno são o relatório da CPI instalada na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro no ano de 2008,(1) e o estudo publicado pelo Laboratório de Análises sobre a Violência da UERJ(2) no último dia 10 de setembro. Do primeiro extrai-se o retrato de organizações que buscavam a expansão de seu projeto de poder por meio da candidatura e eleição de diversos milicianos e apoiadores para mandatos públicos e, do segundo, uma nova feição mais discreta de grupos que estariam reorganizando o seu modus operandi para manter os seus lucrativos negócios.
Aparentemente alheia à complexidade e evolução do tema, a edição da Lei 12.720 não tem sido poupada de fundadas críticas.
Ao tipificar o crime de formação de milícias privadas, o art. 288-A do CP estabeleceu que a conduta de “constituir, organizar, integrar, manter ou custear organização paramilitar, milícia particular, grupo ou esquadrão com a finalidade de praticar qualquer dos crimes previstos neste Código” será apenada com reclusão de 4 a 8 anos. Adotou fórmula vaga na definição dos elementos do tipo, e, de forma inexplicável, circunscreveu a finalidade das organizações à prática de crimes codificados, excluindo a incidência da norma as condutas previstas em leis extravagantes. À luz do princípio da especialidade e do art. 8.º da Lei 8.072/1990, razoável a interpretação de que a formação de milícia privada constituída com o fim de praticar crimes hediondos previstos no CP deve ser punida de forma mais branda (reclusão de 3 a 6 anos) do que a milícia constituída para praticar crimes codificados não hediondos, o que causa perplexidade. Além de não observar a taxatividade e clareza exigíveis para o tipo penal, o novo art. 288-A fere o princípio da proporcionalidade e aprofunda as distorções advindas da produção hipertrófica de leis penais.
Ao instituir novas causas de aumento de pena para o homicídio e as lesões corporais, impôs a lei majoração de um terço até metade “se o crime for praticado por milícia privada sob pretexto de prestação de serviço de segurança, ou por grupo de extermínio”. A redação adotada parece desconsiderar o largo espectro das atividades desempenhadas pelos milicianos, excluindo da incidência da majorante a prática de crimes em razão da prestação de serviços distintos da segurança. Além de desequilibrar a delicada arquitetura das qualificadoras do homicídio e engessar ainda mais a tarefa do julgador na dosimetria da pena, pode se confundir com as circunstâncias identificadas como homicídio mercenário (art. 121, § 2.º, inc. I, do CP) vez que o fim do lucro é da essência das milícias.
Do texto legal, diversas outras impropriedades poderiam ser apontadas. Mais vale lamentar, porém, o trato estritamente penal de um fenômeno tão complexo. As estruturas que, tradicionalmente, não punem os desvios que mereceriam firme resposta adotam, contraditoriamente, regimentos disciplinares arcaicos e inadequados que inviabilizam a efetividade de qualquer ação de aperfeiçoamento permanente. As milícias constituem, assim, manifestação clara da incapacidade de as forças de segurança pública analisarem o comportamento desviante de seus funcionários. Nos dizeres de Luiz Eduardo Soares, a atuação das milícias se apresenta como uma “degradação metastática”(3) do processo de privatização das forças de segurança pública. O silêncio sorridente tirado da aceitação da presença dos policiais em empresas de segurança privada inibe a articulação dos profissionais pela revisão de seus planos de carreira, além de favorecer toda a sorte de desvios e disfunções.
O aprofundamento dos debates acerca do orçamento destinado à segurança pública e dos mecanismos de monitoramento da qualidade das respectivas despesas deve garantir que tais profissionais possam se dedicar com exclusividade ao seu cargo e que a sociedade possa fiscalizar o destino de tais recursos e a efetividade dos serviços prestados. Sem embargo, a agenda política dos governos deve incluir a necessária reforma das forças de segurança, com o fortalecimento institucional das Corregedorias e de outros controles sociais.
A mera tipificação desastrada de condutas, de que é exemplo a Lei 12.720/2012, consagra o esvaziamento da discussão sobre as políticas de segurança pública em prol de um Direito Penal demagógico, ou seja, representa um pouco mais do mesmo.
Notas
(1) Disponível em:
(2) “No Sapatinho – Evolução das Milícias no Rio de Janeiro (2008-2011)” – LAV/UERJ, Coord. Ignácio Cano e Thais Duarte.
(3) Apudrelatório cit., p. 40.
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