Fernanda Regina Vilares
Bruno Salles Pereira Ribeiro, Caroline Braun, Cecilia Tripodi, Rafael Lira e Renato Stanzio
Infelizmente, é rotineiro abrirmos os periódicos jurídicos e, pasmos, trombarmos com um novel diploma penal. Muito já se escreveu sobre tal emaranhado, desconexo e autofágico, que desafia a compreensão. Se tal realidade já é difícil para nós, que lidamos com esse instrumental diariamente, que dirá para a população leiga, de quem se exige, e presume, o conhecimento da lei. Agora, veio a lume a Lei 12.654, de 28.05.2012 – com vacatio legis de 180 dias.
Causa espécie ver ingressar no ordenamento jurídico mais uma norma sem o crivo do debate. Não se procedeu, satisfatoriamente, ao filtro legitimador das críticas dos órgãos de classe ou da academia. Diversamente do assistido em outras áreas, na penal são raras as audiências públicas para a criação de regras ou para sua escorreita aplicação. E, justamente nesse campo, notabilizado sensivelmente pelo exame da consciência de ilicitude, é que mais se exigiria a discussão plural.
Note-se: ninguém é insano de querer se opor ao progresso da ciência. A descoberta do DNA trouxe um sem-número de contribuições para a vida humana. Não obstante, o manejo de ferramentas tecnológicas deve se submeter ao crivo da ponderação, cifrada na máxima do granus salis. Para ilustrar a preocupação, invoca-se o advento da televisão. Por mais que seja útil, pode ela prestar-se a várias finalidades espúrias, como servir de mecanismo de dominação (política) ou de alienação (cultural/consumerista).
Além dos benefícios médicos, o trato do DNA ensejou verdadeira revolução na investigação de paternidade. Em tal senda, o STF chegou até a relativizar a garantia da coisa julgada em razão da possibilidade de elucidação da verdade. Todavia, a despeito do vigor da ideia-força identidade, não se admitiu, com propriedade, a sujeição compulsória do réu à perícia genética, na seara civil.
Há 18 anos, o STF já acenava com a intransponibilidade do corpo humano como limite para a intervenção estatal. Pensamos, então, existir diferença substancial entre a flexibilização, v.g., de um lado, da inviolabilidade do domicílio ou, até da liberdade de locomoção e, de outro, daquela pretendida com a submissão do investigado/condenado à retirada de parte do seu corpo, e o consequente acesso às suas particularidades internas.
Questionamos se não haveria aí violação da proibição do excesso, a inquinar a lei de desproporcional. Na atualidade, já se pode sujeitar, mesmo o portador de documento, em certos casos, à identificação criminal. Contudo, ao Estado se permite alcançar apenas a parte externa do organismo, com a tomada de impressões digitais e/ou fotografias. Pensamos, todavia, que ir além, mediante a retirada, coercitiva, de parte do corpo, para adentrar no profundo de sua estrutura biológica, é dar um passo largo demais, além de irrefletido, porquanto não se meditou seriamente a respeito, nos diversos fóruns sociais.
A lei traz, além da possibilidade de identificação criminal por DNA, no seio da persecução penal, também uma espécie de efeito da condenação. Assim, acrescenta-se o art. 9.º-A à LEP, prevendo-se o obrigatório fornecimento de material biológico pelos condenados por crime praticado, dolosamente, com violência de natureza grave contra pessoa, ou por qualquer dos crimes previstos no art. 1.º da Lei 8.072/1990, para o estabelecimento do perfil biológico. O desaviso e o açodamento são tamanhos, que se sujeitarão à providência constritiva, por exemplo, autores de falsificação de cosméticos, mas ficarão de fora os sujeitos ativos dos crimes de tráfico de drogas e de tortura, na modalidade em que perpetrada “apenas” com grave ameaça, dado que não se encontram normativamente abrangidos. Igualmente, ficou de fora o agente do roubo perpetrado sem “violência grave”.
Ademais, a inconstitucionalidade se agiganta no referido art. 9.º-A, por um lado, na medida em que se cria o perfil genético para a elucidação de eventuais delitos futuros, na contramão do Direito Penal do fato. Por outro, tem-se uma sujeição sine die de tal efeito da condenação, com uma perpetuidade que não se coaduna com o art. 5.º, LXVII, b, da CF.
Portanto, entendemos que a nova manifestação legislativa, cuja proposição nasceu no Senado, tramitando por cerca de um ano, já ingressa írrita na ordem jurídica brasileira.
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