Fernanda Regina Vilares
Bruno Salles Pereira Ribeiro, Caroline Braun, Cecilia Tripodi e Renato Stanziola Vieira
A imprensa tem dado, há alguns dias, grande repercussão a uma decisão da 3.ª Seção do STJ, que conclui que a presunção de violência no crime de estupro, tratando-se de vítima menor, tem caráter relativo, podendo ser afastada no caso concreto. No entanto, o tema não é novo, e tampouco é inédita a posição acolhida no julgado, no que diz respeito ao art. 224 do Código Penal revogado em 2009.
Como se sabe, a doutrina nunca se pacificou sobre a natureza jurídica desse sistema de equiparação acolhido pelo legislador de 1940, o qual criou a ficção de violência, assimilando-a à falta de consentimento válido e dando ensejo a ferrenhos debates a respeito da natureza relativa ou absoluta da presunção, existindo até posturas doutrinárias propugnando pela inconstitucionalidade do dispositivo. Da mesma forma, a jurisprudência sempre oscilou a respeito, havendo relevantes discordâncias, principalmente nos Tribunais Estaduais. A própria decisão em debate foi fruto da divergência de entendimentos entre 5.ª e 6.ª Turmas do STJ.
A atual repercussão alcançada pelo julgado por meio da imprensa talvez se justifique pela interpretação equivocada de que com a reforma legislativa de 2009 – a qual revogou o art. 224 e criou a figura do estupro de vulnerável (art. 217-A) – o ato sexual com menor de 14 anos seria vedado em qualquer hipótese, em caráter absoluto. Note-se que, ainda que assim se entendesse, a nova norma não poderia retroagir para o caso em comento por ser maléfica. Por outro lado, não se pode esquecer que é em relação ao tratamento da sexualidade humana, especificamente a do menor, assim como ao tratamento das drogas, o campo no qual o Direito mais sofre influência da moral social, tornando controverso qualquer discurso de criminalização ou não da conduta sexual.
Importante ressaltar é que a decisão em debate, da relatoria da eminente Min. Maria Thereza de Assis Moura, inocentou, por maioria de votos, um homem da acusação de ter estuprado três meninas menores de 14 e maiores de 12 anos, sob o argumento de que não se pode considerar crime a conduta que não viola a liberdade sexual do menor – bem jurídico tutelado –, já que “as menores a que se referia o processo julgado se prostituíam havia tempos quando do suposto crime”. Dessa forma, confirmou a sentença de primeiro grau, a qual, após a análise dos depoimentos prestados por todos os envolvidos, pais e conselheiros tutelares da comarca – os quais confirmaram que as vítimas não eram ingênuas ou desinformadas –, decidiu por absolver o acusado. Essa sentença foi confirmada também por acórdão absolutório prolatado pelo TJSP.
A decisão, no entanto, foi objeto de críticas por parte de vários órgãos governamentais e organizações não governamentais ligados à defesa dos direitos humanos, os quais argumentam que o entendimento do STJ acaba por incentivar a prostituição infantil, além de abrir um precedente perigoso ao discriminar as vítimas com base em sua idade, gênero ou condição social. Além disso, alega-se que, ao assim se posicionar, o Tribunal estaria aceitando que as próprias vítimas sejam responsabilizadas pela situação de vulnerabilidade em que se encontram.
Ocorre que nenhum desses argumentos se mantém diante das duas verdadeiras perspectivas sob as quais o tema deve ser enfrentado: o conteúdo do direito penal sexual nas hipóteses em que a vítima é menor, ou seja, a vulnerabilidade; e seu limite, que impede que meras imoralidades sejam objeto de punição.
Nesse sentido, o que justifica ou legitima a punição da conduta sexual com o menor é a sua situação de vulnerabilidade, inexistente quando ele compreende os significados e as consequências do seu comportamento. Por óbvio, a compreensão ou experiência sexual que afasta o injusto típico não está atrelada necessariamente ao fato de o menor se prostituir e sim na sua experiência sexual, que pode existir nas mais diversas circunstâncias, sendo ele rico ou pobre. Por outro lado, a discriminação é inerente ao conteúdo da igualdade, e deve ser aplicada por uma questão de justiça. A não discriminação é que engessa o juiz em relação à análise do caso concreto, criando as tão afamadas verdades absolutas, do superado positivismo jurídico, que afasta o direito da realidade e leva a tantas injustiças.
Sob todos esses aspectos, a decisão da 3.ª Seção do STJ é digna de elogios. Especialmente por aproximar o direito da realidade, em que o comportamento sexual não segue um comando absoluto, apresentando-se mutável ao longo do tempo e do espaço; bem como por reconhecer as novas dimensões da sexualidade, característica de uma sociedade plural, que cada vez mais acaba por exigir a separação das concepções morais de um grupo da verdadeira danosidade social da conduta.
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