INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS

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Boletim - 228 - Novembro /2011


Editorial

Qual o futuro da punição?

Douglas de Barros Ibarra Papa

A sociologia da punição, ao conceber as práticas punitivas como um fenômeno social, tem assumido um relevante papel para a compreensão dos déficits de legitimidade verificados no quadro do Direito Penal contemporâneo. Apesar de estar constituída por uma variedade de perspectivas teóricas, como as defendidas por Émile Durkheim, Rusche e Kirchheimer, Karl Marx, Michel Foucault, Max Weber, Nobert Elias e, mais recentemente, David Garland,(1) trata-se de diagnósticos potencialmente frutíferos para um debate crítico em torno das problemáticas penais do tempo atual.

Nessa oportunidade, destaca-se o pensamento de Foucault relativo à mutabilidade das vontades de verdade ao longo dos tempos, apoiadas em sistemas penais, que buscaram legitimidade, primeiramente, em uma teoria do direito, depois, a partir do século XIX, em um saber sociológico, psicológico, médico e psiquiátrico. Trata-se de um exame macrossociológico que possibilita uma análise do problema de fundo verificado nos sistemas penais modernos, pois permite perceber a maneira de pensar o sistema penal, traduzido em um sistema de conhecimento ligado a um conjunto de práticas institucionais jurídicas que se designa “justiça penal” ou “criminal”, ou, como prefere Álvaro Pires,(2) em uma “racionalidade penal”, composta por uma rede de sentidos com unidade própria no plano do saber.

Os estudos de Foucault traçam inúmeros caminhos de análise ao propor diversas reflexões sobre a origem da vontade de verdade, que, através dos discursos, atravessou séculos da história. Com base nos poetas gregos do século VI, o autor assegura que, à época, o discurso verdadeiro pelo qual se tinha respeito e terror era o discurso pronunciado por quem de direito, que pronunciava a justiça, que profetizava o futuro, contribuindo para a sua realização, suscitando a adesão dos homens e tramando com o destino.(3)

Um século depois, a verdade já não residia no que era o discurso, ou no que ele fazia, passando a residir no que propriamente dizia. De um ato ritualizado, de enunciação, a verdade tornou-se o próprio enunciado.(4) Nesse sentido, as práticas judiciárias, concebidas como práticas sociais, transformaram-se em instrumentos de análise da verdade, na medida em que definiram determinadas regras, através das quais nasceram formas de subjetividade, certos domínios de objeto, certos tipos de saber, permitindo uma história externa da verdade.(5)

Em certas conferências, o autor anuncia a imprescindibilidade da complexa tarefa de historicizar a verdade, desgarrando-se de um mero “descontinuismo”, para questionar como seria possível em dados momentos e em certas ordens de saber, haver mudanças bruscas, precipitações de evolução, transformações que não correspondem à imagem tranquila e continuista que normalmente se faz.(6) Empreende-se, então, um vasto estudo sobre as práticas judiciárias, inclusive as práticas penais, desde a sociedade grega, na qual o próprio povo se apoderou do direito de julgar, do direito de dizer a verdade, de opor a verdade aos seus próprios senhores, de julgar aqueles que os governavam.

Essas primeiras características do inquérito, surgidas na história grega, passam a ter uma nova dimensão na segunda metade da Idade Média, período em que novas formas de justiça e novos procedimentos judiciários são inventados, reelaborando o Direito e produzindo novas possibilidades de saber. No decorrer dos séculos, o inquérito tornou-se um instrumento fundamental para a produção da verdade no campo penal, delimitando provas e indícios, indicando informações penais escritas e secretas, embasando toda a tortura judiciária verificada até o século XVIII, ao delimitar uma espécie de ritual, que produzia a verdade e impunha a punição. Assim, o condenado ao suplício era, ao mesmo tempo, o ponto de aplicação do castigo e o lugar de extorsão da verdade.(7)     

O verdadeiro suplício tinha por função fazer brilhar a verdade, justificando a Justiça na medida em que publicava a verdade do crime no próprio corpo do supliciado.(8) Desse modo, o suplício tinha uma função jurídico-política, pois traduzia um cerimonial para reconstituir a soberania lesada, sendo defendido pelos juristas do século XVIII ao darem uma interpretação restritiva e modernista da crueldade física das penas, devendo servir como exemplo a ser inscrito profundamente no coração dos homens.(9)

Contudo, no fim do século XVIII e começo do XIX, com as transformações verificadas nos sistemas penais, com a reelaboração teórica das leis, o espetáculo da punição foi se extinguindo. Autores, como Beccaria, Bentham e Brissot, passam a defender que a infração é a ruptura com a lei civil explicitamente estabelecida no interior da sociedade pelo lado legislativo do poder político.(10) O criminoso, portanto, seria aquele que perturbasse a sociedade, não podendo a lei penal prescrever uma vingança e, sim, permitir a reparação da perturbação causada à sociedade.

Foucault, porém, aponta que o sistema de penalidades adotado pelas sociedades industriais em vias de formação foi inteiramente diferente. Inobstante os projetos precisos de penalidades fomentados no final do século XVIII, a prisão surge no início do século XIX, como uma instituição de fato, quase sem justificação teórica.(11) Nesse período, a legislação penal também ganhou novos contornos, desviando-se do que se denominou de utilidade social e passando a objetivar um maior controle e uma reforma psicológica e moral das atitudes e do comportamento dos indivíduos.

Sob esse aspecto, surge o que o autor classifica como “sociedade disciplinar”, em oposição às sociedades penais reconhecidas até aquele período. Com fundamento em Bentham, o autor analisa essa nova sociedade como um entrelaçamento de formas de poder, simbolizado pelo Panopticon. O Panopticon traduziu um novo tipo de exercício de poder, com um novo conjunto de técnicas e de instituições que assumem como tarefa medir, controlar e corrigir os anormais, fazendo funcionar os diversos dispositivos disciplinares.

Essa modalidade panóptica do poder, sustentada por mecanismos miúdos, cotidianos e físicos, por todos os sistemas de micropoder essencialmente inigualitários e assimétricos que constituem as disciplinas, permanece abaixo do nível de emergência dos grandes aparelhos e das grandes lutas políticas. Nessa linha, Foucault oferece uma gama de caminhos possíveis para análise dos discursos de verdade em suas conexões estratégicas, pensando a mecânica do poder em sua forma capilar de existir, ou seja, “no ponto em que o poder encontra o nível dos indivíduos, atinge seus corpos, vem se inserir em seus gestos, suas atitudes, seus discursos, sua aprendizagem, sua vida cotidiana”.(12)

Com essa visão panorâmica e histórica formulada por Foucault, é possível afirmar que a verdade não existe fora do poder ou sem o poder. Mas, como a “verdade” está centrada na forma de práticas discursivas e nas instituições que as produzem? Quais os mecanismos de poder influentes na produção dessas práticas que dão novos contornos à política criminal contemporânea? Como esses mecanismos produzem discursos?

O fato é que a vontade de verdade se revela como um sistema historicamente constituído, envolvendo diretamente um conjunto de instituições sociais e políticas e não apenas inscrita na dinâmica “interna” dos discursos.(13) Isso permite que o poder possa ser concebido não simplesmente no seu aspecto repressivo, mas podendo permear, produzir coisas, induzir ao prazer, formar saber e produzir discurso. Há, portanto, uma “economia política” da verdade, submetida a uma constante incitação econômica e política, a circular nos aparelhos de informação, estando no centro de verdadeiras lutas ideológicas.(14)

Nesse fluxo de ideias, vê-se que a racionalidade penal está sujeita às oscilações entre os regimes de verdade ao longo dos tempos. Enquanto nas décadas de 60 e 70 o saber jurídico e as ciências sociais encontravam-se num momento de reflexão crítica em relação ao direito penal, tendentes a exprimir cada vez mais o respeito à dignidade humana e aos princípios de intervenção,(15) a partir da metade dos anos 80, por razões ainda pouco elucidadas, o sistema político procurou controlar e orientar o sistema penal, criando novas incriminações e aumentando consideravelmente as penas existentes.(16)

A expansão das mídias e sua influência em matéria penal, a importância dada ao público e às sondagens de opinião pública pelo sistema político e pelas ciências sociais, a emergência discursiva de uma “sociedade de vítimas” e a participação crescente no debate penal dos movimentos sociais, são fenômenos, indicados por Álvaro Pires, que estão associados à reativação da racionalidade penal moderna.(17) São novos elementos que dão substancialidade aos regimes de verdade contemporâneos, influindo inevitavelmente na mecânica da punição.

Aliás, em tempos em que o Poder Legislativo permanece perplexo em face das novas situações de risco, ora criando novos tipos penais, ora intensificando o rigor a determinadas condutas delitivas, na tentativa de superar a insegurança social, e a presença do Poder Judiciário expande-se na arena pública, percebe-se como os discursos de verdade modulam a argumentação política e jurídica, o que fortalece o papel da política criminal, quer para a expansão do direito penal, quer para o controle judicial das práticas punitivas.    

Nota-se que a crise verificada atualmente nos cenários da punição tem raízes estruturais bastante expressivas. Coloca-se rotineiramente em xeque a utilidade social dos sistemas punitivos, a sua razão de ser e a sua legitimação. A reprodução dos discursos de verdade por meio de variados mecanismos de poder, mas, principalmente, pelo poder tecnológico, exercido pela mídia, e pelo próprio poder político, corporificado na acelerada atividade legislativa penal, é indubitavelmente uma faceta dessa crise.

De um lado, estão as leis penais, publicadas sob um forte viés populista, que expandem o poder punitivo do Estado e, de outro, estão os discursos de verdade que este mesmo poder produz e transmite. Tem-se, portanto, um triângulo: poder, direito e verdade.

O grande desafio que se constata é o de enxergar novas possibilidades para a construção de uma nova política de verdade. Será preciso mudar a consciência pública? Ou será necessário reformular os regimes discursivos, a partir de mudanças estruturais no corpo político e institucional de produção da verdade? Em palavras mais genéricas: qual o futuro da punição?

NOTAS

(1) GARLAND, David. Punishment and modern society. Chicago: University of Chicago Press, 1993, passim; ALVAREZ, Marcos César; GAUTO, Maitê; SALLA, Fernando. A contribuição de David Garland a sociologia da punição. Revista Tempo Social, vol. 18, n. 1, 2006, p. 339.

(2) PIRES, Álvaro. A racionalidade penal moderna, o público e os direitos humanos. Revista Novos Estudos, n. 68, março, 2004, p. 39 e ss.

(3) FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. Trad. Laura Fraga de Almeida Sampaio. 15ª. ed. São Paulo: Loyola, 1996, p. 15.

(4) FOUCAULT, A ordem…cit., p. 15.

(5) FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Trad. Roberto Cabral de Melo Machado e Eduardo Jardim Morais. 3ª. ed. Rio de Janeiro: Nau, 2009, p. 11.

(6) FOUCAULT, Michel. Verdade e poder. In: Microfísica do Poder. 13ª. ed. Trad. Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal, 1979, p. 4.

(7) FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Trad. Raquel Ramalhete.37ª. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009, p. 43.

(8) FOUCAULT, Vigiar e punir...cit., p. 45.

(9) Idem, p. 49.

(10) FOUCAULT, A verdade e as formas...cit., p. 80.

(11) Idem, p. 84.

(12) FOUCAULT, Michel. Sobre a prisão. In: Microfísica do poder. 13ª. ed. Trad. Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal, 1979, p. 131.

(13) ALVAREZ, Marcos César. Michel Foucault e a ordem do discurso. In: CATANI, Afrânio Mendes; MARTINEZ, Paulo Henrique (orgs.). Sete ensaios sobre o Collège de France. 2ª. ed. São Paulo: Cortez, 2001, p. 83-84.

(14) FOUCAULT, Verdade e poder...cit., p. 13.

(15) Na Alemanha, novas vozes críticas aparecem no contexto da reforma legislativa, culminando no Congresso de professores de direito penal realizado em Saarbrücken, em 1963, e no realizado em Hamburgo, em 1964. Tratou-se de estabelecer a política criminal como objeto digno de especial atenção para atividade científica, na linha do que havia sido desenvolvido por Von Liszt, dilatando, assim, a discussão especializada para além das fronteiras do país, tornando-a produtiva através da união da totalidade da ciência do direito penal, (HASSEMER, Winfried. História das ideias penais na Alemanha do pós-guerra. Revista Brasileira de Ciências Criminais, ano 2, n. 6, abr./jun, 1994, p. 48; ROXIN, Claus. Problemas fundamentais de direito penal. 2ª ed. Lisboa: Vega, 1993, p. 51).

(16) PIRES, A racionalidade...cit., p. 47 e ss.

(17) Idem, p. 48.

Douglas de Barros Ibarra Papa
Graduado em Direito pela UFMT.
Mestrando em Direito Penal pela USP.
Advogado.



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