INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS

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Boletim - 226 - Setembro /2011





 

Coordenador chefe:

Fernanda Regina Vilares

Coordenadores adjuntos:

Bruno Salles Pereira Ribeiro, Caroline Braun, Cecilia Tripodi e Renato Stanziola Vieira

Conselho Editorial

Editorial

EDITORIAL - Morte anunciada

Os jornais noticiam que está para ingressar na pauta de julgamento do Supremo Tribunal Federal a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF n. 54) que versa sobre a anencefalia. Nada mais oportuno do que uma tomada de posição do IBCCRIM sobre a matéria. É óbvio que o espaço físico de um editorial não permite que se faça a análise da questão, sob seus diversos ângulos: médico, bioético, jurídico ou jurídico-penal. Nem que se coloquem na mesa de discussão critérios definidores de vida e de morte. A abordagem do tema será perspectivada a partir de quatro considerações-chaves: a gravidez como processo de duplicação; a garantia do caráter laico do Estado Social e Democrático de Direito; o argumento inaceitável de que o sofrimento está na raiz da condição humana; e o papel que o juiz deve exercer numa sociedade constitucionalmente pluralista.

A gravidez não é um episódio trivial e desimportante da vida da mulher. É “um fazer-se dois”: é o reconhecimento de um outro ser na própria mulher; é a duplicidade na unidade. Só mesmo uma mentalidade extremamente machista poderia afirmar que essa duplicidade não afeta, até em condições de normalidade, a saúde física e psíquica da mulher. O que se dizer, então, quando a mulher gesta um feto anencéfalo? A anencefalia é uma patologia, de caráter embriológico, detectável tecnologicamente no processo inicial da gravidez e que não dá ao feto chance de sobrevivência fora do claustro materno. O anencéfalo será inviável em qualquer momento do processo gestacional e não há como protegê-lo da irreversível condenação à morte. Quer sua expulsão do ventre materno se dê nos meses iniciais da gestação, quer se chegue a seu termo, o resultado será sempre igual, ou seja, a morte do anencéfalo, em razão do defeito neurológico que lhe é intrínseco. A anencefalia anuncia, em resumo, morte antecipada, e nada é mais cruel do que a gestante carregar, em seu ventre, não um nascituro, mas, em verdade, um projeto embriológico falido.

O Estado brasileiro não está algemado a nenhuma religião e, por isso, não se pode admitir que princípios religiosos, por mais valiosos que possam ser para quem os professe, disciplinem o seu atuar. Cada brasileiro é inteiramente livre para adotar a religião que lhe aprouver, mas não poderá exigir que o Estado faça valer, a quem não tiver a mesma crença, os fundamentos dessa fé religiosa. Estado e religião estão apartados por um muro que, segundo Michael Walzer, “favorece a igualdade entre os crentes e os não crentes, entre santos e libertinos, entre os redimidos e os condenados: todos são igualmente cidadãos e possuem o mesmo conjunto de direitos constitucionais”. Transpor o muro de separação significa mesclar dimensões que não têm um processo tranquilo de acomodação e correr o risco da própria tirania na medida em que se objetiva impor aos não crentes os parâmetros de conduta religiosa dos crentes.

O argumento de que nenhum ser humano está isento de sofrimento e, portanto, é dever da mulher grávida de anencéfalo manter a gravidez como uma forma de purificação da alma constitui uma incontestável postura cristã. É evidente que não cabe ao Estado a pretensão de extirpar da existência humana todas as formas de sofrimento, mas não é menos evidente que não lhe incumbe impô-las. Manter, nessa situação, a gravidez possui, em nível religioso, inquestionável validade. Impor tal sofrimento sobre gestantes que não têm fé, que não estão presas a dogmas religiosos ou cuja religião não se confunde com o cristianismo, constitui uma agressão estatal insustentável.

Vale, ainda, pôr em destaque o papel que o juiz deve exercer, numa sociedade plural, em defesa dos princípios fundantes de um Estado Social e Democrático de Direito. Não lhe cabe colocar em plano prioritário, em lugar desses princípios, seu código particular de valores. A utilização desse código em detrimento dos interesses de pessoas concretas, de carne e osso, provoca danos dificilmente reparáveis. A tarefa judicante revela-se mais desastrosa ainda se pretender que a interrupção da gravidez ou a antecipação do parto seja punida penalmente só porque uma ou outra seria havida como imoral ou ofensiva a posicionamentos religiosos. No caso da anencefalia, a utilização do direito penal, como instrumento de reafirmação de valores morais ou religiosos, não leva a nada a não ser a imposição às mulheres de sacrifícios e sofrimentos desnecessários.

O julgamento da ADPF n. 54 será o momento ideal para que o Supremo Tribunal Federal reconheça à mulher sua dignidade como pessoa humana; estabeleça a nítida separação entre a Religião e o Estado; dê ao sofrimento a sua real dimensão; e convoque o juiz a julgar, não por seus padrões pessoais, mas sim por seu apego à Constituição da República



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