INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS

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Boletim - 219 - Fevereiro / 2011





 

Coordenador chefe:

Fernanda Regina Vilares

Coordenadores adjuntos:

Bruno Salles Pereira Ribeiro, Caroline Braun, Cecilia Tripodi e Renato Stanziola Vieira

Conselho Editorial

Editorial

EDITORIAL - Responsabilidade internacional por violações de direitos humanos: a condenação do brasil no caso da guerrilha do Araguaia

Há exatamente um ano atrás, o IBCCRIM reivindicava o direito à verdade em seu editorial no Boletim n. 207, manifestando apoio ao esclarecimento das graves violações de direitos humanos ocorridas durante o período ditatorial. Ao longo do ano de 2010, foi criada a Comissão Nacional da Verdade, apesar de muita resistência – embora seu projeto ainda esteja em análise na Câmara –, e o STF julgou improcedente a ADPF 153, que pedia a revisão da Lei de Anistia. Contudo, a despeito desse processo em âmbito interno tender ao desinteresse e à falta de vontade política, a partir de agora o Estado brasileiro deverá dar a devida atenção ao seu passado face à condenação pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIntDH) no caso Julia Lund e outros (Guerrilha do Araguaia), cuja sentença responsabilizou o Brasil por violação a artigos da Convenção Americana de Direitos Humanos.

Em 14 de dezembro de 2010, o Brasil foi condenado pela CIntDH por violação ao direito ao reconhecimento da personalidade jurídica, à vida, à integridade, à liberdade, às garantias e proteção judiciais, à liberdade de pensamento e expressão, em razão da detenção arbitrária, tortura e desaparecimento de 70 membros do Partido Comunista do Brasil e de camponeses da região do Araguaia no período de 1972 a 1975. Em decorrência dessa responsabilização, a Corte condenou o Estado brasileiro a reparar as vítimas diretas e a sociedade em geral por meio da investigação penal e da aplicação das sanções aos indivíduos responsáveis pelos crimes, da localização do paradeiro dos restos mortais dos desaparecidos e da revelação de toda a verdade relativa ao caso, do oferecimento de assistência médica e psicológica aos familiares, da realização de um ato público de reconhecimento de sua responsabilidade internacional, da capacitação de sua Força Armada acerca dos direitos humanos e da tipificação do desaparecimento forçado de pessoas como crime em sua legislação penal.

Desse modo, a natureza objetiva das obrigações de proteção de direitos humanos consagra a dignidade humana como principal preocupação da comunidade internacional, de maneira que a responsabilidade internacional do Estado por violação de direitos humanos tem sido reconhecida como princípio geral do Direito Internacional, ou seja, a violação de normas internacionais por um Estado gera responsabilidade internacional e o consequente dever de reparação. No presente caso, o tribunal internacional considerou que o Brasil e suas instituições nacionais mostraram-se falhos ou omissos para solucionar os casos de desaparecimento, e, portanto, a ele atribuiu responsabilidade internacional.

Importa assinalar, ainda, a obrigação de reparação consagrada no art. 63.1 da Convenção Americana de Direitos Humanos, de modo que, se o Estado-parte violador não assegurar uma reparação adequada aos danos causados, estará incorrendo em responsabilidade internacional. Nesse sentido, se o Brasil não cumprir as determinações da CIntDH, da qual soberanamente aceitou a jurisdição, poderá ser condenado novamente por ilícito internacional. Na mesma medida, é preciso compreender que essa reparação é regida pelo Direito Internacional, e não pelo direito interno, afastando, assim, as diversas manifestações de que o Brasil não estaria obrigado a cumprir as determinações da CIntDH.

A Corte também condenou o Brasil a adotar todas as medidas para que a Lei de Anistia não continue representando um óbice para a persecução penal dos crimes contra a humanidade, a exemplo do que vem acontecendo em países vizinhos, como a Argentina, o Chile, o Peru o Uruguai. Dessa maneira, salienta que o Estado tem o dever de investigar e, se for o caso, julgar e punir os criminosos pelos crimes de desaparecimento, pois essa obrigação decorre de diversos instrumentos internacionais de proteção de direitos humanos, que se constituem em normas de ius cogens para os Estados. Ou seja, a CIntDH reitera sua orientação no sentido de que as leis de anistia não podem ser um óbice para a investigação e o processamento das graves violações de direitos humanos, de que elas não podem ser invocadas para o não julgamento de crimes contra a humanidade, que são imprescritíveis. Considerou, dessa maneira, que a forma como a Lei de Anistia brasileira foi interpretada obstou os deveres internacionais assumidos pelo Estado, portanto, suas disposições que impedem a investigação e a sanção das graves violações de direitos humanos não têm efeito jurídico. Nessa perspectiva, obriga que o Poder Judiciário brasileiro exerça um controle de convencionalidade ex officio entre as normas internas e as internacionais a partir da interpretação da CIntDH.

A sentença proferida pela Corte confirma a jurisprudência desenvolvida por ela desde sua primeira condenação em casos de desaparecimento forçado de pessoas, em 1989, quando julgou o caso Velasquez Rodrigues vs. Honduras. Desde então, ela vem consolidando uma compreensão de que o desaparecimento forçado é uma grave violação de direitos humanos de caráter permanente e continuado, com natureza de crime contra a humanidade, cujas vítimas são as pessoas desaparecidas, suas famílias e amigos e a sociedade em geral. É possível afirmar que o desaparecimento forçado de pessoas é uma das mais atrozes violações de direitos humanos, na medida em que, além de somar diversas afrontas a patamares mínimos de garantias às vítimas diretas, com sua detenção arbitrária, sequestro e morte, deixa seus familiares sem saber onde estão os restos mortais dos desaparecidos, impedindo que exerçam seu direito ao luto. Essa situação de suspenso que é estabelecida na vida dos familiares é cruel e faz marcas irreparáveis. Ademais, quando as instituições públicas não permitem o acesso de toda a sociedade à verdade dos fatos, o Estado perde a chance de se afirmar e consolidar como uma democracia que respeita os valores estipulados pelos direitos humanos.

O Brasil, um País que se pretende democrático, portanto, transparente e garantidor de direitos, que desponta no cenário internacional como grande potência em desenvolvimento, não pode lidar com seus acontecimentos relativos aos direitos humanos de maneira covarde como vem fazendo. É notório que o desaparecimento das 70 pessoas aconteceu, e que os restos mortais não foram entregues aos seus familiares, bem como os fatos envoltos a essa situação não foram revelados, e que, ao longo dos últimos 30 anos, o Brasil também não empreendeu esforços suficientes para resolver e reparar esses casos – por isso sua postura face a isso deveria ser de responsabilidade, como se espera de um Estado maduro, e não de alegações defensivas como fez durante o processo perante a CIntDH. Resta agora aguardar e cobrar para que o Estado brasileiro cumpra sua responsabilidade internacional de dar cumprimento à sentença da Corte, e que suas autoridades políticas compreendam que somente assim o País se qualificará e se afirmará para ser a potência da qual seus cidadãos terão orgulho.



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