INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS

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Boletim - 211 - Junho / 2010





 

Coordenador chefe:

Andre Pires de Andrade Kehdi

Coordenadores adjuntos:

Coordenadores adjuntos: Cecilia Tripodi, Eduardo Augusto Paglione e Renato Stanziola Vieira

Conselho Editorial

Editorial

EDITORIAL – Quando o extermínio é uma política de Estado que responde pelo nome de segurança pública

Nas últimas semanas tem vindo a público uma sequência de episódios de acentuada violência envolvendo policiais militares na prática de tortura e espancamentos a civis, do que em diferentes momentos tem resultado a morte de alguns motoboys que, além da profissão, ostentavam em comum o fato de serem jovens, negros e pardos, e não se encontravam, no momento da abordagem e da violência policial, envolvidos em qualquer ocorrência criminosa. Após a divulgação dos fatos pelos meios de comunicação, o comando da PM e autoridades públicas, diante da incontestável barbárie promovida por seus agentes, apressaram-se em classificá-la como ilegal, um "excesso" a ser corrigido. Uma breve análise das estatísticas sobre a letalidade da ação policial, que seriam divulgadas ironicamente no mesmo período, revelaria, contudo, que a violência letal contra civis está longe de se apresentar como uma exceção no sistema de segurança pública paulista.

O primeiro trimestre de 2010 registrou um aumento de 40% nas mortes promovidas pela PM em comparação com igual trimestre de 2009, saltando de 104 – um número já elevado – para 146 mortes. Aumento ainda maior, de 56%, havia sido registrado no último trimestre de 2009, já sob nova gestão da Secretaria de Segurança, que assumira em março daquele ano com um forte discurso incitando as forças policiais ao confronto, reclamando o famoso jargão "ROTA nas ruas" e classificando como hipócritas as ações "politicamente corretas em matéria de segurança pública"(1).

A altíssima letalidade da ação policial nos grandes centros brasileiros está longe de ser uma novidade na política de segurança pública adotada no país, mesmo no período pós-democrático. O recente relatório elaborado pela Human Rights Watch – sobre as execuções sumárias no Rio de Janeiro e em São Paulo – pôde traçar um retrato da magnitude da força letal do Estado repressivo brasileiro. Quer sob o forjado "confronto" que se expressa pela categoria extrajurídica "resistência seguida de morte", quer por manifestações mais deliberadas de execução de civis por grupos de extermínio e, mais recentemente, por atos de "encapuzados", as polícias desses dois Estados mataram 11.000 pessoas entre os anos 2003 e 2009. Se tomarmos apenas as mortes justificadas em São Paulo sob a rubrica "resistência seguida de morte", chegam a 2.176, número superior às mortes promovidas pela polícia da África do Sul (1.623), país com taxas de homicídio superiores às do Estado de São Paulo(2).

Não é difícil notar que se está diante de uma deliberada política de extermínio voltada a segmentos muito determinados da população: jovens do sexo masculino, afrodescendentes e habitantes das periferias e favelas dos centros urbanos. Por outro lado, não parece crível tratar-se de um cenário de guerra civil ou conflito armado, como se tem argumentado, pois tal realidade faria supor, primeiro, proporção igual nas mortes, ou seja, "baixas", nas duas frentes em conflito, e em segundo lugar um número grande de só feridos. Aqui a realidade é contrastantemente outra. O número de policiais mortos em suposto confronto é bem menor se comparado ao de civis – em SP, nos últimos 12 meses, foram 18 PMs mortos em serviço. Ainda em São Paulo, entre os anos de 2004 e 2008, grupos das Rondas Ostensivas Tobias Aguiar (ROTA) mataram 305 civis e deixaram somente 20 feridos. Nesse período, um único óbito de policial da ROTA foi registrado.

Embora pese uma tradição demasiadamente autoritária em matéria de segurança pública em nosso país, e os resquícios de um recente passado ditatorial ainda estejam muito vivazes na consciência e no imaginário social, a história tem mostrado que depende sobremaneira da orientação adotada pelos governantes, para que a política de segurança se mostre mais ou menos democrática ou mais ou menos violenta. Durante o governo Mário Covas (1994-2000), por exemplo, uma série de iniciativas tomadas com o objetivo de reduzir a violência policial e tornar as polícias mais democráticas, resultou efetivamente numa diminuição da letalidade policial e em avanços como a criação da Ouvidoria da Polícia. Lamentavelmente os governos que o sucederam e seus respectivos gestores não apenas abandonaram tais objetivos como, sob o argumento de feroz enfrentamento à criminalidade, impulsionaram a ação violenta de suas polícias, resultando nos bárbaros índices apresentados.

Não nos iludamos: não é possível associar a truculência à eficiência e honestidade, argumento hoje fortemente mobilizado para exaltar a orientação que tem sido predominante em matéria de segurança pública. Esse foi o mesmo argumento insistentemente usado durante a ditadura militar para legitimar a violência e o autoritarismo das forças repressivas da época, sob o pretexto de também oferecer às pessoas de bem, em contrapartida, a quimera da segurança e da tranquilidade. O que a truculência e o arbítrio escondem é justamente o desvio, a possibilidade permanente da corrupção; afinal como alguém não se corromper diante do fato de se lhe ter conferido o mais absoluto dos poderes, a decisão sobre a vida e a morte?

Não é, assim, à modernização da segurança pública que temos assistido, diferentemente do que alguns analistas e muitos administradores públicos têm ufanado. Não há nada mais antimoderno na polícia de um Estado, que se pretenda democrático, do que retirar sumariamente vidas de civis em proporções assustadoras. Investir pesadamente em ações de caráter ostensivamente militar e ao arrepio da lei, como operações de ocupação em favelas, tampouco traz a marca da "modernização". Uma política de segurança pública, que se pretenda moderna e ao mesmo tempo democrática e eficaz, deve investir numa polícia científica, bem preparada, orientada a técnicas investigativas e à produção de provas legais, garantindo os direitos dos cidadãos, e, em situações de repressão e confronto, ter como recurso último, e sempre combatível, a força letal. Estamos muitíssimo longe de uma política desse quilate e – talvez o que é ainda pior – estamos caminhando, a cada dia, mais decisivamente no sentido contrário.


Notas

(1) Cresce o número de pessoas mortas pela PM. Folha de S. Paulo, 5 de maio de 2010.
(2) Human Rights Watch. Força Letal: Violência Policial e Segurança Pública no Rio de Janeiro e em São Paulo, 2009. Disponível em http://arquivo.ibccrim.org.br/upload/le_force.pdf.



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