INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS

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Boletim - 208 - Março / 2010





 

Coordenador chefe:

Andre Pires de Andrade Kehdi

Coordenadores adjuntos:

Coordenadores adjuntos: Cecilia Tripodi, Eduardo Augusto Paglione e Renato Stanziola Vieira

Conselho Editorial

Editorial

EDITORIAL – Sobre olhares e diferenças

Em 1857, operárias têxteis da Fábrica Cotton, em Nova Iorque, organizaram uma greve em que reivindicavam a redução de sua jornada de trabalho para 10 horas diárias e o direito à licença maternidade. Forças policiais foram chamadas para reprimir o movimento, ocasionando a morte de 129 operárias queimadas ainda vivas, impiedosamente. Não há registro de punição dos culpados. Anualmente, a tragédia é relembrada mundo afora em 8 de março, consagrado como o Dia Internacional da Mulher(1).

Mais de 150 anos se passaram desde esse trágico episódio. Muitas coisas ocorreram a partir de então, várias delas bastante positivas para a proteção dos direitos da mulher. Todavia, a lembrança não apenas da data, mas, sobretudo, de sua origem, é, infelizmente, bastante oportuna também nos dias de hoje. Ainda agora, como sempre, o sistema formal de justiça não está preparado para sensibilizar-se perante a violência de gênero ou, pior ainda, sequer para compreender a importância de sensibilizar-se para esse tema. Ainda hoje advogados, magistrados, defensores públicos, legisladores, delegados de polícia, promotores e procuradores de justiça, por toda parte, em todas as instâncias, insistem em ver esses conflitos como de pouca dimensão e ínfimos, desincentivando as mulheres a buscarem o processo. Querem que elas desistam de invocar sua dignidade e de reclamar seus direitos e, enfim, que se calem por completo, mesmo quando – paradoxalmente no interior de relacionamentos afetivos – estão sendo seriamente agredidas e ameaçadas. Enquanto as transgressões patrimoniais, mesmo as mais ínfimas, ocupam e preocupam os homens e mulheres do fórum, as agressões à dignidade das mulheres são classificadas como pífias e insignificantes. Da mesma forma, administradores públicos não cumprem com suas obrigações que a lei desde há muito determina, deixando mulheres desabrigadas, sem qualquer assistência ou amparo, simplesmente porque elas invocaram seus direitos perante o próprio Estado.

Ademais, não percebemos que nossa incompreensão para com a defesa da dignidade feminina contra a violência de gênero é, antes de qualquer coisa, a defesa do conjunto dos seres humanos contra toda e qualquer violência. A pior de todas as violências não é aquela que desconhecidos praticam nas ruas, posto que essa seja fácil maldizer. A mais grave das violências é, isso sim, aquela que se aprende, que se ensina, que é feita dentro de nossas casas, aos olhos de nossas crianças perplexas. É na nossa casa, mais do que em qualquer outra parte, que aprendemos a ser, também nós, indivíduos visceralmente violentos. Ali, no ambiente do doméstico, do privado, temos não somente nossa vivência mais longeva e mais dolorosa com a agressão, seja física, seja moral. Mais que isso, trata-se da primeira experiência em que a diferença – no caso, a diferença de gênero – é apresentada, vivenciada e impressa em nós como fator de opressão e submissão do gênero masculino sobre o gênero feminino, por conta mesmo dessa diferença.  É na infância que as diferenças entre as pessoas são subtraídas de sua pluralidade horizontal – aliás, seu locus próprio na topografia da cultura humana – para se posicionarem, pela força, em planos artificialmente verticais. A partir dessa matriz, toda e qualquer diferença passa, então, a ser engendrada desde esse binômio estruturante, que se estipula e sustenta sobre as ideias de força e agressão, orgulhosas e prepotentes, contra a outra, cuja culpa é ser apenas diferente de seu agressor. Desde essa fórmula, que as acalanta, equacionam-se repetidamente todas as outras violências, contra as quais já é tardio gritar.

A regra da isonomia não veda diferenciações, senão quando ilegítimas. O que o direito realmente repudia são privilégios despropositados nos planos do político e do histórico. Diferenciar, no entanto, é atributo ínsito à inteligência humana e, portanto, ínsito também ao direito que essa mesma inteligência escreve no tempo. O ser humano e suas coisas não seriam racionais se não soubessem quando e como bem diferenciar. A absoluta centralidade da violência de gênero, no cenário da defesa dos direitos humanos, justifica e reclama as diferenciações que, por toda parte, em várias nações, vêm sendo instaladas no direito e são reclamadas pela própria contemporaneidade. Aqui, o não diferenciar é que seria gritantemente inconstitucional, deixando ao relento direitos primordiais e ínsitos à própria condição humana.

Nosso olhar – cabe reconhecê-lo – não soube adquirir a sensibilidade necessária para entender a amplitude desses temas todos. É preciso enriquecê-lo, ainda que à custa de sua reinvenção. Isso é especialmente importante para todos aqueles que, das mais diversas posições, operam e lidam com o sistema de justiça. Mais, ainda, do que a defesa dos direitos das mulheres, a ideia feminista verdadeiramente busca uma nova gramática nas relações entre as pessoas, não mais alicerçada no poder ou na violência de umas sobre as outras, mas, sim, fundada em regras preciosas de irmandade e respeito. É por essa razão que o feminismo, hoje, constitui certamente um dos eixos mais robustos da luta pela realização dos direitos humanos, no Brasil e em todo o planeta.

Eis aí lições, trazidas por tantas e tantas companheiras e companheiros queridas e queridos, que nosso IBCCRIM coletou em sua trajetória e que, seguindo seu estatuto, quer com todos insistentemente compartilhar. No ano em que comemora seu 18º aniversário, nosso Instituto, pela segunda vez, assiste com alegria a formação de nova turma do curso de orientação popular Maria, Maria, curso esse que realizamos em parceria com a União de Mulheres e com o Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas para a Mulher UNIFEM. Baseada no projeto de formação de promotoras legais populares, a ideia do curso Maria, Maria é multiplicar saberes e lutas, especialmente com mulheres que vivem a dura realidade da periferia de nossas cidades. No centro disso, e de muitos outros trabalhos e projetos que o IBCCRIM agasalha sob essa mesma inspiração, está a compreensão de que pela primeira vez realmente vivemos, afinal, a perspectiva de tempos e olhares decididos e novos. Cabe abrir uma nova linguagem, especialmente respeitosa à condição humana que somente é de ser comungada por todos, juntos, sem exceções ou discriminações.

NOTA

(1)  V. TELES, Maria Amélia de Almeida. Breve história do feminismo no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1999; p. 96-99.



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