INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS

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Boletim - 207 - Fevereiro / 2010





 

Coordenador chefe:

Andre Pires de Andrade Kehdi

Coordenadores adjuntos:

Coordenadores adjuntos: Cecilia Tripodi, Eduardo Augusto Paglione e Renato Stanziola Vieira

Conselho Editorial

Editorial

EDITORIAL – Direito à verdade

A história recente da América Latina registra décadas em que, com o apoio de potências estrangeiras, por aqui pulularam regimes militares ditatoriais. Todos nós, latino-americanos, padecemos do modus operandi de qualquer governo salteador da democracia em que o Estado-Polícia agiganta-se sobre o Estado-Direito: torturas, assassinatos, desaparecimentos, censura à imprensa, sequestro do poder legislativo e solapamento do judiciário, dentre outras desgraças análogas.

No Brasil, o final do regime ditatorial fardado teve como fastígio a Lei da Anistia de 1979 que, causalmente, liga-se mais ao ocaso de um governo militar cansado e vencido do que ao nascedouro de um pujante projeto democrático. Essa circunstância – aliada ao fato de que a tirania não estivera personificada na figura de um ditador, mas repousada sobre nossas forças militares – engendrou certa passividade que tendeu ao esquecimento pela facilidade com que anistia foi confundida com amnésia.

Essa ausência de resgate fomentou que fosse cultivada certa nostalgia dos tempos em que os direitos individuais encolhiam-se diante da monumental repressão político-policial. Somente agora, com o transcurso de quase três décadas, é que se possibilitou debater a punição criminal dos que, vazios de escrúpulos e plenos de ufanismo importado, fizeram tabula rasa da dignidade humana.

O resgate da memória dessa tenebrosa quadra histórica brasileira suscitou esperadas reações dos segmentos conservadores remanescentes daquele período.  Vivo desagrado provocaram as indenizações aos perseguidos pela ditadura fardada e as buscas pelos documentos históricos e até pelas ossadas das vítimas. Indignação maior, todavia, no mesmo universo de irresignados, produziria o recente debate instalado sobre o alcance normativo da Lei de Anistia.

O tom das vozes elevou-se quando, ao editar seu III Plano Nacional de Direitos Humanos – PND, por via do Decreto nº 7.037, de 21-12-2009, sinalizou o Governo Federal com a intenção de simplesmente esclarecer as graves violações aos direitos individuais do finado regime. O recuo do presidente da República, diante da ilegítima pressão, certamente não interessa aos comprometidos com a defesa da dignidade da pessoa humana como primado republicano.

É, pois, nesse contexto que o IBCCRIM, coerente com a ideologia que o gerou e com as convicções que animam a trajetória de luta institucional sua e de tantos parceiros, vem reafirmar seu posicionamento pela crença na supremacia dos valores da dignidade da pessoa humana frente ao insustentável discurso dos que, por via de argumentos anacrônicos, defendem a impunidade pura e simples dos que, criminosamente, entre nós sustentaram a última eclipse democrática.

Não pode o Brasil, País líder emergente da América Latina, postar-se, em má didática, em descompasso perante as nações vizinhas que, tendo atravessado idêntica provação, no mesmo período, pela mesma opressão militar, souberam prestar contas perante seu povo e a comunidade internacional ao penalizar seus algozes. Imperioso, também para nós, esse resgate histórico, possível, inclusive, pela perquirição da culpa criminal (individualizada) dos agentes que, pela via do cometimento de crimes de lesa humanidade, contribuíram para a instalação e manutenção da funesta ditadura militar.

Aqui, com toda a força e propriedade, deve a sanção penal sinalizar a proteção aos direitos humanos como único fundamento das ordens normativas qualificadas como democráticas e comprometidas com o Estado de Direito.

Forças golpistas, ao atentar pela via armada contra o poder democrático insti­tuído, romperam, de modo irreconciliável, com os pilares de sustentação jurídico-constitucionais do Estado e, por conseguinte, passaram a representar hordas de violadores e não de mantenedores da ordem pública. Como consectário lógico, qualquer reação a esse megadelito político implica exercício do direito de resistência e, portanto, não pode ser ilícita em si própria. Afinal, a negação do crime constitui a afirmação do direito: não há, portanto, crime algum em prestigiar o próprio Estado Democrático de Direito e combater, com todos os meios então possíveis de combate, os usurpadores desse mesmo Estado.

Ora, a Lei de Anistia, como positividade emanada de um poder ilegítimo – assinada que está por um general – apenas poderia ter a propriedade de neutralizar os efeitos das normas ilícitas deitadas por esse mesmo governo para, desse modo, fazer cessar os males de seu próprio (des)governo. Isto é, poderia restaurar a cidadania plena de todos os que combatiam a ditadura, pois era dever que lhe impunha; jamais poderia apagar a responsabilidade criminal dos violadores do Estado, porque isso exigia um poder que lhe faltava. A ninguém, evidentemente, é dado perdoar a si mesmo.

Temos a clareza de defrontar momento crítico na história brasileira, em que se devem arrostar os temores de retrocessos institucionais para se concretizar a tardia, mas inarredável, ruptura com a mentira e o arbítrio de há pouco. Não é hora do acobardar-se das instituições comprometidas com a sedimentação do verdadeiro Estado Democrático de Direito, mas do empenhar-se em vencer a decisiva prova de restabelecimento da legalidade republicana.

É tempo de o direito penal – duma nação que ainda exibe cicatrizes em suas liberdades individuais – demonstrar que sua sanha sancionatória não está formatada apenas aos socialmente excluídos, mas, igualmente e talvez sobretudo, a tiranos e àqueles que patrocinaram de qualquer modo a tirania. Caso contrário, o direito penal, ainda esta vez, reforçará sua natureza de prevalente seletividade punitiva e tornará axioma a maledicência de quem o compara a uma serpente, por somente ferir aos que andam de pés descalços. A ela, coturnos soem ser resistentes.



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