André Pires de Andrade Kehdi
Cecília Tripodi, Eduardo Augusto Paglione e Renato Stanziola Vieira
Bubu é um poeta popular que acumula treze internações nos hospitais de custódia e tratamento (HCTs) — antigos manicômios judiciários. Entre perturbação da ordem pública e crimes de lesão corporal, seus últimos quinze anos foram vividos sob a vigilância da psiquiatria e do processo penal. Para ele essas instituições híbridas, a meio caminho entre hospitais e presídios, são as “casas dos mortos”. Esta é uma metáfora que o aproxima do teatrólogo Lima Barreto, para quem os manicômios eram os “cemitérios dos vivos”. A história de Bubu está contada no documentário “A Casa dos Mortos” —filme, a ser lançado em breve, que descreve o cotidiano de um manicômio judiciário do Brasil. Mais do que uma narrativa antropológica, o filme é uma peça de direitos humanos sobre o silencioso mundo dos HCTs.
O uso de metáforas para descrever tais locais não é um mero recurso literário. Na verdade, o giro linguístico aponta para o desafio ético e de direitos humanos que acompanha as sutilezas diagnósticas do sofrimento mental e do subsequente confinamento do infrator a medidas de segurança. Foi do encontro da psiquiatria com a ordenamento penal que nasceu um dos sistemas mais robustos de encarceramento: não há uma pena a ser cumprida em tempo determinado, mas uma assistência médica compulsória, com restrição de liberdade por tempo indeterminado. Enquanto perdurar periculosidade, o cidadão será mantido sob a vigilância prisional. Nesse cenário, diferentes saberes ganham poder sobre o destino do infrator doente mental, destacando-se especialmente o perito psiquiatra, a quem cabe o laudo sobre periculosidade, cessada ou não.
Mas, o que define a periculosidade de alguém? Nem todos os 4.500 internos dos HCTs do Brasil são autores de crimes violentos ou hediondos. Isso contraria a pretensão do senso comum, de justificar a internação pelo risco de o doente mental vir a cometer um crime. Ora, a diversidade de diagnósticos médicos corresponde à diversidade de infrações. Há casos diferentes de perturbação da ordem pública: homicídios, estupros, furtos de uso, ameaças, lesões corporais, portes de arma, vias de fato etc. — um verdadeiro catálogo de crimes e contravenções. Mas a surpresa não é encontrar o universo dos presídios comuns repetido nos manicômios judiciários; o espanto, que inclusive aquele filme revela, é sobremaneira ético, não somente penal.
Uma categoria de encarcerados, que não ressalta nas unidades prisionais comuns, vive nos HCTs. É a dos denominados problemas sociais. Todos os manicômios do País apresentam a figura do interno já com laudo de cessação de periculosidade, ou seja, livre para viver fora dos muros do hospital-presídio, porém está abandonado por todas e quaisquer redes de apoio. Sem vínculos sociais e sem a proteção do Estado, seu destino é a vida institucionalizada, como única forma disponível de existência. A solidão e o abandono, duas formas mais perversas do encarceramento de longa duração, tornam, os referidos problemas sociais, indivíduos de um mundo onde a interdependência é a regra. Sem opções para o exercício da liberdade, vegetam em regime de prisão perpétua. São pessoas livres de condenação criminal, mas segregadas pelo sistema moral que impõe à loucura a mais cruel das condenações — a morte simbólica.
O documentário “A Casa dos Mortos” dá rosto aos problemas sociais. Almerindo é um homem de cinquenta anos que, há três décadas, vive num HCT, por ser doente mental e ter furtado uma bicicleta. Faz mais de vinte anos que obtém laudo de cessação de periculosidade. Sem família e sem sistema de proteção estatal que lhe garantam a transição do hospital-presídio para a comunidade social, Almerindo vive em regime de prisão perpétua. Desprovido de posses e de vínculos, seu último ato no filme é abdicar-se de si mesmo, ao dizer à defensora pública que “Almerindo já morreu”. A morte, de que fala, não é apenas uma denúncia contra o isolamento prisional, mas a expressão da perversidade social que não suporta conviver com o louco-infrator.
Desafios para acabar com a casa dos mortos são muitos. Urge a construção de nova forma de lidar com o crime e contravenção cometidos em sofrimento mental. A avaliação da periculosidade, ou seja, da potencialidade de o cidadão reincidir, a qual fica a cargo exclusivo de uma perícia médica, é algo que ultrapassa a própria racionalidade do Estado de Direito. A indeterminação temporal da privação da liberdade afronta, de forma direta, as garantias constitucionais. Antes mesmo de alguma alteração de leis e de sua aplicação, a urgência é resolver a situação dos problemas sociais. É preciso iniciar um movimento concreto de resistência a essa prolongada violação dos direitos humanos.
A interposição de um Pedido de Providências perante o Conselho Nacional de Justiça requerendo a inclusão dos HCTs nos mutirões do sistema carcerário seria uma alternativa. Da mesma forma, o encaminhamento de requerimentos aos ministérios da Justiça, da Saúde e das Cidades, para atuação intersetorial na construção e manutenção de um número maior de residências terapêuticas. Tais residências já integram a política pública de saúde mental e bem que poderão ser utilizadas para abrigar os egressos dos HCTs. Trata-se de alternativas para o início de um processo de extinção dessas penas perpétuas que recaem sobre os problemas sociais e que, longe de imporem somente uma terapia em regime coercitivo, lhes restringem a dignidade de pessoas humanas.
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