André Pires de Andrade Kehdi
Cecília Tripodi, Eduardo Augusto Paglione e Renato Stanziola Vieira
Hiram S. Johnson, que foi senador republicano e governador do Estado da Califórnia, disse em 1917 que “a primeira vítima da guerra é a verdade”. A “war on drugs” e sua política criminal com derramamento de sangue (Nilo Batista), tem muitas outras vítimas, além da verdade.
Adotado de modo quase unânime em todo o planeta, o proibicionismo-punitivo será novamente submetido a exame na 52ª Reunião da Comissão de Entorpecentes da ONU, na cidade de Viena, na Áustria, em março de 2009.
Urge substituir a fantasia pela realidade. A proibição, não a droga, é o verdadeiro problema.
A meta de consumo zero e combate ao uso de drogas, estabelecida pela ONU, é irreal, irracional e irrealizável, portanto fadada ao fracasso. Mas, como sabido, o proibicionismo-punitivo tem sido usado como técnica de colonização cultural, não havendo espaço para a autocrítica. Apesar disso, não se pode negar que a artificial diferenciação entre drogas lícitas e ilícitas só pode ser aceita por uma razão entorpecida (Maria Lúcia Karam).
Segundo dados do UNODC, todo ano morrem 5 milhões de pessoas em razão do uso de tabaco, 2,5 milhões em razão do uso de bebidas alcoólicas e 200 mil em razão do uso de drogas ilícitas.
A proibição ao uso de drogas causa mais danos aos usuários e à sociedade do que os eventuais problemas decorrentes do abuso de algumas drogas. Os danos mais evidentes do proibicionismo são: incremento da violência (ínsita ao modelo bélico); encarceramento em massa (tendência de enquadramento de condutas relacionadas a drogas como tráfico e apenas subsidiariamente como posse para consumo pessoal); corrupção dos agentes estatais (sem a qual não haveria circulação das drogas).
A proibição do uso de drogas representa uma intromissão indevida do estado na vida privada e na intimidade do indivíduo. A autolesão consciente, sua viabilização e promoção não legitimam uma proibição penal. A utilização do direito penal para reprimir maus hábitos, maus costumes, para operar uma ortopedia moral, enfim, representa uma ultrapassagem dos limites de uma punição político-criminalmente razoável. O que ocorre de acordo com a vontade do lesionado é um componente de sua autorrealização, que em nada interessa ao estado.
Em março, iniciar-se-á a etapa de revisão das resoluções da UNGASS, tomadas há dez anos sob o onipotente lema “Um mundo livre de drogas: nós podemos conseguir”. Consciente da relevância do assunto e atento à importância da oportunidade que se abre com a reunião em Viena, o IBCCRIM, por intermédio de sua Comissão de Política de Drogas, vem participando de uma ampla articulação que envolve organizações governamentais e não-governamentais nacionais e estrangeiras, e que resulta em intenso esforço com vistas à formulação de propostas objetivas capazes de contribuir concretamente para a construção de alternativas à política proibicionista-punitiva.
Dentre as resoluções tiradas desse concerto de entidades e organizações, merecem destaque as seguintes:
1) A inclusão, de forma explícita e clara, da redução de danos como política oficial da Organização das Nações Unidas, passando a figurar expressamente em todos os documentos (convenções, tratados, resoluções, normas e recomendações) oficiais relacionados ao tema drogas.
2) O paradigma ideológico que norteia as ações de redução de danos, calcado na multidisciplinariedade, deve ser reconhecido e estimulado na formulação de políticas públicas também em outras áreas, para além da Saúde Pública, como — apenas a título de exemplo e não exclusivamente — a Política de Segurança Pública, a Política Criminal, a Política de Educação, a Política Penitenciária e, notadamente, a Política de Direitos Humanos.
3) O direito à informação e liberdade de manifestação do pensamento deve ser garantido através de financiamento de campanhas de divulgação e informação sobre redução de danos e programas de capacitação para os agentes públicos envolvidos nas ações de redução de danos efetivamente implantadas pelos Estados membros.
4) O protagonismo das pessoas que usam álcool e outras drogas, dos agentes de saúde comunitários — redutores de danos — e do movimento social deve ser garantido na construção coletiva e paritária de políticas públicas para as questões relacionadas à política nacional e internacional sobre drogas.
5) A não incriminação e regulamentação do cultivo, produção, fabricação e comércio de drogas deve ser encarada como uma alternativa viável (a ser objeto de exame) na construção de uma relação pacífica com as drogas. Em relação ao consumo não-problemático(1) de toda e qualquer droga, por ausência de lesividade e em respeito à regra da não punibilidade da autolesão, é inarredável a renúncia da intervenção penal.
6) A legislação sobre direitos humanos da ONU está hierarquicamente acima das convenções sobre drogas.
7) As políticas educativas e informativas sobre efeitos e possíveis danos pelas substâncias, tipos e locais de tratamento, transtornos mentais associados, etc., devem ser incrementadas. As informações devem: tratar igualmente todas as substâncias; ser isentas de preconceito; ser de fácil acesso e entendimento; ser as mais completas possíveis, contemplando todos os assuntos relacionados e os diversos pontos de vista.
Em síntese, uma nova política pública sobre drogas deve unificar o tratamento dispensado a drogas lícitas e ilícitas dentro da perspectiva da saúde pública e dos direitos humanos e fora do campo da repressão penal, com base no conhecimento científico, e não no medo, na histeria, na ilusão e no obscurantismo, próprios do proibicionismo-punitivo.
Renunciar à guerra representa o primeiro passo na direção da paz.
Nota
(1) Entende-se por consumo não problemático o uso de drogas por maiores de idade, em locais privados, sem causar distúrbios à ordem pública, sem atingir interesses de terceiros e sem o envolvimento de menores.
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