INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS

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Boletim - 195 - Fevereiro / 2009





 

Coordenador chefe:

André Pires de Andrade Kehdi

Coordenadores adjuntos:

Cecília Tripodi, Eduardo Augusto Paglione e Renato Stanziola Vieira

Conselho Editorial

Editorial

EDITORIAL – O novo decreto de indulto e comutação

Os últimos dias de 2008 trouxeram-nos o advento do Decreto Presidencial 6.706/2008 que, honrando uma tradição no Direito brasileiro, instituiu o chamado indulto natalino do ano passado.

Elaborado a partir de proposta originária do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, e com amplo e democrático procedimento de debate com as mais diversas entidades e operadores das Ciências Criminais — além de submetido às contribuições de órgãos do Ministério de Justiça e da Casa Civil da Presidência da República —, o novo Decreto inovou e enriqueceu profundamente esse que, seguramente, é um dos mais antigos institutos da história do Direito Penal. Conhecido desde a mais remota antiguidade, ao perdão constitucional sempre tocou o papel normativo de temperar a rigidez absoluta e mais enrijecida da idéia retributiva. Nas complexas sociedades modernas, que têm na prisão o tronco de seu sistema punitivo, o indulto tornou-se também um importante instrumento de política pública, seja como mecanismo de gerenciamento da superlotação carcerária, seja como fator de melhoria do próprio ambiente prisional, ao canalizar expectativas não atendidas pelo sistema judiciário dedicado à execução penal.

O Decreto 6.706/2008 primou, mais que qualquer outro, por sua exatidão técnica e, principalmente, por sua boa filiação a concepções teóricas mais rigorosas de um Direito Penal racional e ilustrado que, precisamente por conta disso, vem sendo preconizado pelo ambiente acadêmico brasileiro já há muitas décadas. Ao lado de outras inovações bastante oportunas — note-se, por exemplo, o interesse específico que o texto dedica à mulher encarcerada, para além das edições anteriores do indulto natalino —, duas delas reclamam uma reflexão mais profunda e notável dos estudiosos, eis que obedientes a linhas compreensivas especialmente interessantes para a própria estrutura do Direito Penal brasileiro.

A primeira dessas inovações é a concessão dos benefícios do novo Decreto também para aqueles condenados pelo artigo 33 da Lei 11.343/2006, quando classificados nas situações específicas dos seus parágrafos 2º a 4º, subtraindo-os, portanto, da condição técnica de agentes de ilícitos hediondos. Há muito reclamada, a discriminação mais exata do demasiadamente amplo leque da traficância já se anunciava no texto da própria Lei 11.343/2006 que, precisamente por conta disso, buscou diferenciar o tratamento normativo voltado ao empresário da traficância — ou seja, aquele que realmente é mercador habitual da droga — daquele voltado ao usuário e dependente que, precisamente por conta de sua condição mais vulnerável, há de recepcionar um tratamento normativo mais brando e efetivamente voltado a sua inclusão social. O Decreto 6.706/2008, portanto, reafirmou aquilo que a própria lei ordinária tão bem preconizava e insistiu, como determinava a própria sistemática normativa que vimos adotando, nessa microscopia mais justa e vigilante do caso concreto.

A segunda — quiçá mais importante — das inovações do Decreto foi a concessão expressa de seus benefícios aos pacientes de medidas de segurança, quando a respectiva execução extrapolar o limite temporal máximo cominado ao ilícito que cometeram. Desde há muito se bate a doutrina brasileira contra essa que, em alguns casos, se torna uma versão anômala de sanção perpétua para doentes mentais, em ofensa à formatação constitucional de nosso direito. Muitas vezes pela precariedade do atendimento médico que mal recebem do próprio Estado, ficam muitos desses pacientes definitivamente escanteados e esquecidos nos insalubres e entristecidos — às vezes também pretensos — estabelecimentos psiquiátricos, sob o título sempre muito questionável da persistência de uma certa periculosidade que, a rigor, sequer constitui um conceito técnico minimamente exato. Pior ainda, sua condição médica era, precisamente, o sustento para impor-lhes uma sanção várias vezes mais rigorosa do que aquela que o mesmo sistema dedica aos agentes imputáveis, pervertendo-se gravemente a própria razão do instituto da culpabilidade.

Ainda mais que isso, na base do novo texto temos uma magnífica novidade no Direito brasileiro: já não cabe mais questionar que também as medidas de segurança submetem-se, como não poderia deixar de ser, ao sistema constitucional de garantias individuais reservadas às sanções penais, de que, a propósito, constituem nada mais que modalidade específica, obedientes, portanto, a uma mesma arquitetura normativa. Ou seja, também nas medidas de segurança — quiçá fosse o caso de dizer: sobretudo nas medidas de segurança — são reclamados os rigores do chamado princípio da legalidade como instrumento de cidadania, de sorte que não se possa mais, de vez por todas, cogitar de garantias penais ou processuais que às medidas de segurança não se estendam e apliquem. Eis aí, mais que simples regra, um autêntico ensinamento a ser observado pelo sistema de justiça criminal, desde os legisladores, passando pelos julgadores e até pelos executores que operam seu cotidiano. Não cabem exceções: os pacientes de medida de segurança têm, rigorosamente, todos os direitos e garantias que o sistema reserva aos agentes de infrações penais, não se admitindo, em nenhuma hipótese, soluções a eles mais gravosas.

Por conta de tudo isso, e de certo modo comemorando esse novo texto normativo que reafirma e mesmo aprofunda um modo mais lúcido de pensar o Direito Penal, trazemos, neste mês, no nosso Boletim, alguns artigos doutrinários comentando as várias dimensões e implicações do Decreto 6.706/2008. Desde logo, no entanto, fica aqui uma boa percepção. Afinal, é possível e praticável um Direito Penal que, quando alicerçado nas profundezas de um mais firme substrato teórico, efetivamente pode contribuir para distribuição da cidadania que a todos, sem discriminações, é sabidamente devida.



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