INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS

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Boletim - 191 - Outubro / 2008





 

Coordenador chefe:

Carina Quito

Coordenadores adjuntos:

André Pires de Andrade Kehdi, Caroline Braun, Cecília Tripodi, Eleonora Rangel Nacif, Fabiana

Conselho Editorial

Editorial

A sustentação oral e a prevalência do direito de defesa

Robson Antonio Galvão da Silva

Especialista em Direito Penal e Criminologia pela Universidade Federal do Paraná/ICPC, especialista em Direito Penal Econômico pela Universidad Castilla-La Mancha e mestrando em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná

Recentemente, o Plenário do Supremo Tribunal Federal, ao julgar o Habeas Corpus n. 87.926, de relatoria do ministro Cezar Peluso, proferiu importante decisão que tratou, basicamente, da ordem da manifestação oral da defesa e do Parquet em julgamentos perante os tribunais, sobretudo, mas não apenas, no recurso em sentido estrito apresentado pela acusação.

No caso, ocorreu que o Ministério Público Federal havia ingressado com recurso em sentido estrito perante o Tribunal Regional Federal da 3ª Região contra decisão de juiz de primeiro grau que não recebeu a denúncia apresentada. No dia do julgamento de tal recurso, o procurador teve a oportunidade de se manifestar oralmente após a defesa. O recurso em sentido estrito acabou sendo provido, dando-se início, então, à ação penal.

Diante da decisão do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, a defesa impetrou Habeas Corpus perante o Superior Tribunal de Justiça, alegando a nulidade do julgamento, em razão do procurador ter se manifestado oralmente após a defesa. A Corte Superior, no entanto, decidiu que o julgamento ocorrido não seria nulo. Para tanto, consignou que o Ministério Público atuante em segundo grau de jurisdição atuaria como custos legis. Além disso, registrou que deveria ser demonstrado efetivo prejuízo pela circunstância do procurador se pronunciar após a defesa. Por fim, afirmou que, conforme inteligência dos artigos 610, parágrafo único, e 618, ambos do Código de Processo Penal, bem como do artigo 159, parágrafo 2º, do Regimento Interno do Superior Tribunal de Justiça, poder-se-ia se depreender que a sustentação oral em sede de recurso em sentido estrito deveria ser feita por último pelo Ministério Público.

Dessa decisão foi impetrado novo Habeas Corpus perante o Supremo Tribunal Federal, que acabou, então, concedendo a ordem para anular o julgamento ocorrido perante o Tribunal Regional Federal da 3ª Região, em razão do procurador ter se manifestado depois da defesa.

O julgamento trouxe a debate uma questão que, apesar de muito relevante, não tem sido mais detidamente analisada pela doutrina e normalmente não é suscitada pelos advogados de defesa, em que pese o evidente prejuízo aos réus ante a patente violação aos princípios do contraditório e da ampla defesa.

 Alguns poucos doutrinadores já se opunham à possibilidade do Ministério Público realizar sua manifestação oral após a defesa. No sentido de reconhecer como garantia a possibilidade da defesa do acusado falar por último, notadamente nas sessões de julgamento de recursos interpostos apenas pela acusação, já se manifestava Alberto Zacharias Toron(1).

Por seu turno, Rogério Cruz já se posicionava no sentido de que a defesa deve sempre se manifestar após o Ministério Público. Vale destacar o seguinte trecho da sua lição: “O acusado, independentemente da sua posição contingencial (recorrente ou recorrido) durante o processamento do recurso, deve ter sempre assegurada a palavra por último, ou, ao menos, após a intervenção oral do acusador, enquanto exteriorização concreta do princípio do favor defensionis. Isso porque, considerando-se a ação penal em sua inteireza, e não apenas em suas fases procedimentais estanques, o acusado estará sempre na posição defensiva, rebatendo a imputação que lhe foi endereçada pelo órgão de acusação, já que, sendo uma a relação processual penal, o conflito entre o direito de punir do Estado e o direito à liberdade do acusado permanece íntegro no segundo grau de jurisdição.”(2)

No acórdão referido, o relator ressaltou que, ainda que se invoque o papel de custos legis, o Ministério Público deve sempre se pronunciar, na sessão de julgamento de recurso, antes da sustentação oral da defesa, em razão dos princípios do contraditório e da ampla defesa (artigo 5º, LIV e LV, da Constituição Federal).

Em que pese o caso específico se tratar de recurso em sentido estrito apresentado pela acusação, trilhou-se no sentido de que a defesa deve falar por último em todos os casos. Vale destacar o seguinte trecho do voto: “Estou em que fere, igualmente, as garantias da defesa todo expediente que impeça o acusado de, por meio do defensor, usar da palavra por último, em sustentação oral, sobretudo nos casos de julgamento de recurso exclusivo da acusação. Invocar, para negá-lo, a qualidade de custos legis do Ministério Público perante os tribunais, em sede recursal, parece-me caracterizar um desses artifícios lingüísticos que tendem a fraudar as garantias essenciais a sistema penal verdadeiramente acusatório ou de partes.”

Mais adiante asseverou, ainda, o ex­mo. min. Cezar Peluso: “Permitir, pois, que o representante do Ministério promova sustentação oral depois da defesa, ainda mais no caso de ser ele o recorrente, comprometeria o pleno exercício do contraditório, que pressupõe o direito de a defesa falar por último, a fim de poder, querendo, reagir à opinião do Parquet.

Muito embora a atualidade e importância da decisão seja inegável, relevante notar precedente do Supremo Tribunal Federal, de relatoria do ex­mo. min. Xavier de Albuquerque, RE 91661, cuja decisão restou assim ementada: “Julgamento de Apelações Criminais. Inversão na ordem das sustentações orais, das quais a da acusação sucedeu a da defesa. Inobservância dos princípios constitucionais de ampla defesa e contrariedade no processo penal. Nulidade reconhecida. Recurso Extraordinário conhecido e provido.”

Da mesma forma, há precedente — não menos atual do que a recente decisão do exmo. min. Cezar Peluso — de mesmo sentido no próprio Superior Tribunal de Justiça: “1. As atribuições de custos legistêm-nas sempre o Ministério Público, qualquer que seja a natureza da função que esteja a exercer enquanto lhe decorre da própria natureza da instituição, cumulando-as com aqueloutras de parte no processo penal da ação pública, incindivelmente por razões evidentes. 2. O Ministério Público, nos processos de ação penal pública, que lhe incumbe promover, privativamente, como função institucional (Constituição da República, artigo 129, inciso I), é sempre parte, mesmo no grau recursal, em que ocorre o fenômeno da sucessão de órgãos na posição do autor na relação processual. 3. Viola os princípios constitucionais do contraditório e do devido processo legal, com iniludíveis reflexos na defesa do paciente, a inversão das falas das partes em sessão de julgamento de recursos (Precedentes). 4. Ordem concedida para anular o julgamento de recurso em sentido estrito, determinando-se que outro se proceda.”(3)

Realmente, embora em alguns casos o Ministério Público atuante perante os tribunais se pronuncie oralmente em favor de teses da defesa, isso não implica que exerça o papel de custos legis e que deva falar depois do advogado. Quando no papel de parte também em muitos casos pode pedir até mesmo a absolvição do réu, sem que isso possa ser usado como argumento para se inverter a ordem de apresentação das alegações finais. O que importa é que existe a possibilidade da manifestação oral ser contrária à defesa, o que já é suficiente para que sempre esta se manifeste por último, de modo a poder reagir à opinião do Parquet.

Fica igualmente difícil aceitar, como bem registrado no acórdão referido, que um órgão, uno e indivisível que atuou como parte em primeira instância, possa atuar unicamente como fiscal da lei em segundo grau ou junto aos Tribunais Superiores, possibilitando que fale posteriormente à defesa. A ação penal também é única, não se podendo admitir que em determinada fase o Parquet seja parte e em outra fiscal da lei.

De qualquer forma, ainda que se entendesse que o Ministério Público atuante perante os tribunais funcionasse apenas como custos legis, isso não seria suficiente para se aceitar que possa manifestar-se após a defesa. Como já dito, existe a possibilidade da manifestação ser contrária à defesa. Além disso, a defesa se manifesta depois do Parquet ainda quando este funcione apenas como custos legis, como no caso das ações penais de iniciativa privada (artigo 500, parágrafo 2º, do CPP).

 Em conclusão, o acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Federal junto aos autos de Habeas Corpus n. 87.926 reforça sobremaneira poucos — todavia importantíssimos — precedentes de mesmo conteúdo. Seja em que caso for, recurso do Ministério Público, da defesa ou de ambos, não se pode mais admitir que haja essa descabida inversão na ordem das manifestações orais, pois o réu sempre está na posição defensiva (considerando-se a ação como um todo único) e sempre há a possibilidade da manifestação do Ministério Público ser contrária à defesa.

Notas

(1) TORON, Alberto Zacharias. “O contraditório nos tribunais e o Ministério Público”, Estudos em Homenagem a Alberto Silva Franco. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 99.

(2) CRUZ, Rogério Schietti Machado. Garantias Processuais nos Recursos Criminais. São Paulo: Atlas, 2002, p. 94.

(3) Habeas Corpus 18.166/SP. Vide ainda, guardadas as devidas diferenças, o RHC 4.457/SP também julgado pelo Superior Tribunal de Justiça.

Robson Antonio Galvão da Silva
Especialista em Direito Penal e Criminologia pela Universidade Federal do Paraná/ICPC, especialista em Direito Penal Econômico pela Universidad Castilla-La Mancha e mestrando em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná



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