Carina Quito
André Pires de Andrade Kehdi, Caroline Braun, Cecília Tripodi, Eleonora Rangel Nacif, Fabiana
A Lei de Execução Penal impôs ao juiz de execução nada menos que o papel de agente transformador da prisão. Para isso, os reformadores de 1984 alicerçaram a jurisdicionalização: a rigor, nada mais que o corolário processual da idéia de legalidade, no universo da execução das penas. Em um país tomado pelo mais profundo arbítrio, um bom mecanismo contra esse cotidiano de ilegalismos nas prisões é o processo judicial, sua qualidade publicística, seu ambiente de defesa e contradição, e a presença de juízes isentos e afirmativos do direito.
Já se criticou o jeito utópico da reforma de 1984: aqueles juízes que o artigo 66 da LEP instituía como o mastro principal dessas caravelas descobridoras, infelizmente, não existiam no país, senão por exceções. Afinal, as matrizes que moldaram outros setores do Estado — a longeva tradição patrimonialista de nosso ser político; o reacionarismo dos dizeres de nossas ditaduras; enfim, todo esse anti-iluminismo que trazemos fundo desde a Colônia — contaminaram, severamente, um Judiciário erguido à sombra do totalitarismo do poder, subserviente a ele, condescendente com ele e reprodutor dele.
Mas, também a legalidade é, para um povo, um pouco como o fenômeno da própria vida: nasce de sua adversidade e, pelo esforço, brota ainda mais forte. Ninguém jamais entenderá a LEP e sua importância se não entender precisamente isso: ela não realizou as reformas que desenhava, mas trouxe, no entanto, uma nova cultura de legalidade na execução penal. Trouxe, enfim, confrontações importantes, ainda por dimensionar. Gerou estudiosos, na vida forense ou fora dela, causando publicações e tematizando encontros, semeando entidades, vocacionando pesquisadores, técnicos e operadores, advogados, promotores de justiça e juízes zelosos e isentos. É todo um saldo ainda não computado, mas que, vez por outra, se faz sentir: casos concretos foram duas decisões judiciais que inauguraram 2008.
A primeira dessas decisões veio do interior de São Paulo, a 500 quilômetros da capital. O juiz da execução penal de Tupã, Gerdinaldo Quichaba Costa, determinou que os estabelecimentos penitenciários sob sua competência correcional somente recebam presos residentes em um raio de 200 quilômetros, devendo também observar, estritamente, seus limites de lotação. Apontou o juiz que a transferência maciça e indiscriminada de presos, em sua maioria oriundos da região metropolitana da capital, para longínquos estabelecimentos, na medida em que dificulta e quase impossibilita visitas de seus familiares, inviabiliza também a própria idéia de reintegração social estabelecida na lei. A decisão, de resto, ainda convida a repensar a política de transferência sistemática de presos para locais distantes da capital, na versão recente da antiga estratégia das colônias penais.
A segunda decisão foi do juiz Cláudio do Prado Amaral,(1) corregedor dos presídios da Capital de São Paulo. Ela determinou que, no máximo em um ano, o Centro de Detenção Provisória II, do bairro de Pinheiros, observe estritamente sua capacidade para acolher até 512 presos, não devendo ser aumentada, desde logo, a quantidade de presos ali já existente. A fundamentação dessa decisão traz informações dantescas sobre esse e outros estabelecimentos similares: o triplo dos presos que as construções admitem, ocupando espaços celulares mínimos, amontoando-se e revezando-se uns sobre os outros até para dormir ou ir ao banheiro. Passaram por um surto de tuberculose e sofrem um racionamento de água, com instalações sanitárias precárias. Têm restrições absurdas de atendimento médico e hospitalar, e até de visitas de advogados, em um quadro de escassez completa de pessoal penitenciário. Amaral não o diz, mas sua decisão deixa inferir: os Centros de Detenção Provisória de São Paulo reeditam muito de Auschwitz. Mas, literalmente a decisão diz: não há como cobrar desses presos coisa alguma, em nome do direito, senão assistir, passivamente, que se organizem por conta própria e à revelia do próprio Estado. A leitura completa dessa decisão — que publicamos em nosso Portal na Internet — não é somente uma aula de direito de execução penal, mas, também, de independência judicial e de afirmação do papel do juiz como garantidor de direitos.
São dois casos, é certo, que se somam a poucos outros, ocasionalmente. E o mesmo Judiciário dessas decisões é aquele que, embora por outras mãos, dissemina a cultura do aprisionamento massivo e do uso abusivo da prisão processual, mesmo em casos em que a lei prevê soluções alternativas (Pinheiros, aliás, existe exatamente porque os juízes de São Paulo vêm aplicando prisões cautelares para além do que seria admissível na própria lei). Estudos sérios demonstram que, na base desse aprisonamento espetacular, encontramos magistrados e promotores de justiça como os responsáveis principais pela situação caótica vivida nos presídios, disseminando a lógica da excepcionalidade, agravando regimes prisionais, adiando ou ignorando institutos legais quando favoráveis aos réus e condenados, e, enfim, superlotando presídios com toda uma população que não deveria estar neles.
Mas essas duas decisões, de todo modo, também confirmam o que alguém já disse antes: a independência do juiz não está no Judiciário, mas, no próprio magistrado. A instituição não é independente, mas, o juiz, esse sim pode sê-lo. Nossa LEP inaugurou toda uma cultura de legalidade que não há de ser mais detida, passando a ambientar novas idéias, novas práticas, mas, principalmente, novos homens e mulheres que as sustentam e que não permitem que gratuitamente tudo se desmanche no ar.
A conseqüência dessas decisões é óbvia: um Estado que não sabe prender é um Estado que tem, precisamente por conta disso, o imperioso dever humano, ético, normativo e legal de soltar. Nesse sentido, cabe recordar a precursora e correta decisão do juiz das execuções de Contagem, Minas Gerais, Livingston José Machado, em 2005. Vamos todos, portanto, aguardar a continuidade da frase que tais decisões de São Paulo esboçam, agora em 2008. Não se pode admitir que acabem em trocas inócuas de ofícios ou na responsabilização fácil de servidores subalternos. Vencidos os prazos fixados, e inerte a Administração Prisional, a conseqüência óbvia é a soltura, ainda que provisória, dos presos em excesso, pelo menos até que se reúnam as condições mínimas para seu aprisionamento e que os próprios juízes dizem seriamente inexistentes. Já não temos como admitir frases interrompidas, reticências ou folhas dobradas. Não podemos mais assistir afastamentos nebulosos, como o do juiz Machado. Tentemos completar desta vez, neste Brasil e por inteiro, até seu ponto final, as exigências dessa nova gramática que é, em última análise, aquela do próprio direito.
Nota
(1) A íntegra da decisão está disponível para consulta no site do IBCCRIM: arquivo.ibccrim.org.br.
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