Carina Quito
André Pires de Andrade Kehdi, Caroline Braun, Cecília Tripodi, Eleonora Rangel Nacif, Fabiana
A questão do erro jurídico-penal é tradicionalmente abordada pela doutrina, de uma forma geral, atrelada às questões legais e dogmáticas oriundas das hipóteses de erro que viciam a vontade — ou seja, que desvirtuam a conduta, causando uma falsa percepção da realidade — que incidem, basicamente, sobre os elementos estruturais do delito (erro de tipo) e sobre a ilicitude da ação (erro de proibição). É possível, ainda, afirmar que a doutrina sobre o erro de proibição é relativamente moderna(1), não havendo uma unidade sólida de critérios sobre se esta forma de erro deva excluir o dolo ou somente deva afetar a culpabilidade. Em que pese a discussão sobre a inexistência de um sistema de erro homogêneo, de uma forma geral a doutrina destinou pouca atenção às hipóteses de erro sobre a punibilidade, sustentando, em regra, que tal modalidade de erro seria irrelevante, pois o tipo, a ilicitude e a culpabilidade já estariam plenamente caracterizados, e o agente, em tais casos, já teria consciência de que sua conduta era típica e antijurídica.
Claus Roxin(2) assevera que o reconhecimento da existência de pressupostos diante do injusto culpável — no caso de uma crença errônea de que falta uma condição objetiva de punibilidade, ou que concorra uma causa pessoal de exclusão da pena — não pode caracterizar relevância penal, justamente por não afetar a culpabilidade e a responsabilidade do autor. Entretanto, uma análise mais acurada do problema comporta situações inusitadas, ou no mínimo, desconcertantes.
Cabe desde logo destacar que, em especial na legislação pertinente aos crimes contra a ordem econômica, é cada vez mais comum a proposta legislativa de aumentar a utilização de normas penais extintivas de punibilidade ou de liberação de pena (pagamento do tributo, delação premiada, imunidades, anistia etc.), atreladas a objetivos, em princípio, político-criminais (ressalvadas as hipóteses da utilização sob fundamento diverso como, por exemplo, as razões de oportunidade, utilidade e conveniência do legislador), focados na limitação das conseqüências jurídicas do crime e que ignoram toda a estrutura da teoria do delito.
Esta realidade legislativa não se trata, porém, de uma novidade para as ciências penais, pois Von Liszt, ao criar a política criminal como disciplina científica, permitiu uma série de institutos alternativos, concernentes a diminuir os tão criticados efeitos prejudiciais das sanções penais. Contudo, via transversa, não criou (ou permitiu) uma orientação definida, fazendo que ante determinada reivindicação social prerrogativas limitadoras da punibilidade cumprissem um ciclo de privilégios e recrudescimentos para uma mesma modalidade delitiva, estranhas à dogmática tradicional e completamente dissociados dos fins da pena.
Contudo, em que pese a enorme divergência doutrinária quanto ao complexo tema das causas excludentes de punibilidade, resta observar que sua característica fundamental de restringir a responsabilidade criminal deixa claro que não interessa ao legislador a punição de determinadas condutas praticadas pelo agente. Isso por se atrelar uma sanção à ocorrência de uma circunstância estranha ao injusto culpável, ou a ocorrência de conseqüências bastante específicas (que teriam relevância para a valorização político-criminal de determinadas condutas em um primeiro momento, sem qualquer relevância quanto às hipóteses de erro), já que estas, em regra, seriam estranhas àquelas causas excludentes de punibilidade e, portanto, não afetariam o injusto culpável. Mas a não consideração do erro em determinadas hipóteses, em que concorra uma causa pessoal de exclusão da pena (tradicionalmente tratadas como escusas absolutórias(3)) deve ser vista com reservas, pois o caso concreto pode trazer algumas questões complexas para aqueles que se opõem à impossibilidade da admissão do erro jurídico-penal sobre determinadas causas de exclusão da pena.
O cerne da questão é que não se pode simplesmente ignorar a possibilidade de um erro sui generis(4)apenas ante a inexistência de sua previsão legal, quando se admite que a aplicação de pena é restringida, mesmo face ao injusto culpável, por certas exigências político-criminais de punibilidade, impondo limites de caráter utilitário à ameaça penal, que podem não se achar satisfeitos quando o agente erra acerca do caráter efetivamente punível de seu comportamento — o que não pode justificar a sua punição, porque afeta “ao princípio segundo o qual somente é justificável a pena que aparece político-criminalmente como iniludível”(5).
Com o crescente uso de limitadores de punibilidade estranhos ao injusto culpável, utilizados sem um mínimo de critério, não se pode simplesmente rechaçar a possibilidade da incidência do erro sobre determinadas situações que, certamente, não encontrarão resposta adequada nem na legislação, tampouco na teoria do delito.
Um exemplo simples que pode ser estendido aos casos mais complexos pode ser observado na hipotética situação do filho ou cônjuge que se apropria ilegitimamente de coisas móveis ou parcialmente alheias, acreditando que estes bens pertenceriam ao pai (ou cônjuge). Neste caso hipotético, por força de uma causa pessoal de exclusão da pena, prevista no art. 181, I e II, do Código Penal, haverá isenção de pena, em decorrência de uma escolha (acertada) do legislador por razões de política criminal, com amparo legal — o que não traria qualquer desconforto decorrente da não aplicação de sanção. Todavia, a questão ganha outro contorno quando se sustenta a irrelevância do erro de punibilidade para fins penais, já que a limitação da responsabilidade penal não formará parte do conteúdo das normas que proíbem a subtração ou apropriação de coisa alheia móvel de um estranho à família. Veja-se o caso em que o agente crê, erroneamente, que o bem subtraído é de seu ascendente/descendente/cônjuge, quando pertencia a um terceiro estranho à relação familiar. Neste caso, por não se tratar de um erro de tipo ou de proibição, bem como por não existir uma norma excludente de punibilidade, não restaria outra opção em face do entendimento tradicional, senão a de se reconhecer uma hipótese de arrependimento posterior, o que não afastaria o advento da punibilidade, mas apenas a diminuição da reprimenda.
Não obstante, a inexistência de previsão legal e o entendimento majoritário de que o erro sobre as excludentes de punibilidade, ante sua irrelevância para o injusto culpável, não permite a isenção de responsabilidade penal, é preciso ter presente que não existe dúvida sobre o caráter limitador da punibilidade das causas de isenção de pena, pois já está clara a opção do legislador em não recorrer à sanção criminal como forma de controle social.
Desse modo, reconhecendo que o Direito Penal não pode ser um “sistema fechado”(6) — pois estas figuras estranhas ao injusto culpável só podem ser refletidas em um sistema penal aberto —, é preciso aprofundar esta temática, tendo presente que a perspectiva político-criminal sobre a possibilidade do atuar de outro modo, deva ser percebida como o que razoavelmente se deve exigir do agente no que tange ao reconhecimento de admissão ou exclusão da responsabilidade criminal. É forçoso admitir que não se pode mais ignorar a possibilidade do reconhecimento do erro, com exclusão da pena (e não somente sua diminuição) ante a uma possível perspectiva equivocada quanto a circunstâncias estranhas ao injusto culpável, e que só podem ser aferidas no caso concreto.
Notas
(1) Veja-se, por todos, BACIGALUPO, Enrique. Hacia el Nuevo Derecho Penal. Buenos Aires: Hammurabi, 2006, p. 670.
(2) Derecho Penal, Parte General. Trad. Diego-Manuel Luzón Peña, et. al., Madrid: Civitas, 1997, t. I, p. 980.
(3) Sobre a questão veja-se: BITTAR, Walter Barbosa. As Condições Objetivas de Punibilidade e as Causas Pessoais de Exclusão da Pena. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, pp. 15-19.
(4) Conforme propõe Juan Felipe Higuera Guimera, baseado na tese de Enrique Bacigalupo Zapater. Las Excusas Absolutórias. Madrid: Marcial Pons, 1993, p. 159.
(5) SANCINETTI, Marcelo A. “Error de prohibición y error de punibilidad”, in Doctrina Penal, nºs 29 a 32, Buenos Aires: Depalma, 1985, p. 433.
(6) Aprofundando o entendimento veja-se: SCHÜMENAM, Bernd. “Introducción al razonamiento sistemático em derecho penal”, in: El Sistema Moderno del Derecho Penal: Cuestiones Fundamentales, Madrid: Tecnos, 1991, p. 39.
Walter Barbosa Bittar
Mestre em Direito (PUC/PR), pós-graduado em processo penal (PUC/PR) e professor de Direito Penal e Criminologia da graduação e da pós-graduação (PUC/PR)
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