INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS

     OK
alterar meus dados         
ASSOCIE-SE


Boletim - 172 - Março / 2007





 

Coordenador chefe:

Carina Quito

Coordenadores adjuntos:

André Pires de Andrade Kehdi, Caroline Braun, Cecília Tripodi, Eleonora Rangel Nacif, Fabiana

Conselho Editorial

Editorial

Mais um crime bárbaro

Mais um crime bárbaro, o assassinato da criança João Hélio Fernandes Vieites, de seis anos, arrastado por quilômetros preso ao cinto de segurança de um carro, alimenta a ilusão de que basta aumentar o rigor da legislação penal para se for fim à crise da segurança pública. Como ocorreu em outras tragédias, a indignação da sociedade se converteu em caldo de cultura para a proposição de medidas vingativas que, amplificadas por uma mídia ávida de audiência e por demagogos em busca de platéia, não passam de respostas irracionais à irracionalidade da violência urbana e à escalada do crime.

Sob a forma de tortura e outras formas de dor física e crueldade, tanto a violência quanto o desejo de vingança sempre estiveram presentes na trajetória da humanidade. Contudo, nunca é demais lembrar — e a história contemporânea está repleta de evidências nesse sentido — que a conjugação de intolerância e radicalismo com maior rigor punitivo-repressivo em matéria penal costumam desaguar em truculência; costumam agravar o esgarçamento do tecido social; mais precisamente, costumam culminar em experiências fracassadas, quanto aos propósitos de garantir segurança, e muitas vezes desastrosas para as instituições democráticas.

A história também mostra que, quanto maiores são a repressão e a vigilância, mais as garantias fundamentais e as liberdades civis tendem a ser ameaçadas. Quanto mais ilimitado é o poder dos órgãos de segurança, como se a importância dos fins justificasse o recurso de quaisquer meios para se assegurar a ordem, menor tende ser o respeito aos direitos mais elementares. Foi assim nos sombrios tempos do fascismo, na Europa. Foi assim na época das ditaduras militares, na América Latina. E infelizmente tem sido assim desde o início da atual década, principalmente após a tragédia do 11 de setembro, em Nova York, quando alterações legais votadas em cima dos fatos imediatos, sem distanciamento crítico e sob forte comoção social, abriram caminho para a chamada “legislação do pânico”. São respostas dadas às pressas, sem reflexão acerca das conseqüências que um Estado policial pode acarretar para as salvaguardas jurídicas, substituindo a segurança do direito pelo arbítrio e pela opressão.

Por isso, neste momento de compreensível indignação da população brasileira com a banalização da violência, com o aumento da delinqüência juvenil, com a escalada do crime, com as diferentes formas de insegurança e com a impunidade, é fundamental discernir entre mitos e fatos, entre impulso e prudência, entre razão e emoção, entre propostas sérias que merecem ser debatidas e soluções farisaicas, a fim de que a sociedade e o País não baixem a guarda do respeito à lei, ao direito de defesa e às liberdades públicas.

Quando se sabe que no Estado de São Paulo apenas 1% de jovens com menos de 18 anos se envolveu em homicídios, como levar a sério a proposta de tornar jovens acima de 16 anos responsáveis por seus crimes. Até que ponto a promoção da emancipação judicial penal de adolescentes infratores aumenta, de fato, a segurança pública? Em que medida a “estadualização” da legislação penal, justificada como uma medida capaz de “responder às peculiaridades de cada região”, é compatível com a realidade e com as tradições institucionais do país? E se endurecimento penal significa mais gente na prisão, o que ocorrerá com um sistema prisional que, além de saturado, oferece condições de vida cruéis, vergonhosas, desumanas e degradantes aos que nele vivem? Em termos comparativos, pesquisas realizadas por investigadores conceituados sobre a relação entre taxa de encarceramento e taxa de criminalidade revelam por exemplo que, na Inglaterra, o acréscimo de 25% na primeira teve o pífio resultado de reduzir a segunda em somente 1%. Nos Estados Unidos, os estados com os maiores acréscimos nas taxas de encarceramento tiveram, em média, menores reduções em suas taxas de criminalidade. O grupo de estados que mais investiu em repressão e em prisões aumentou sua taxa de encarceramento em 72%, mas obteve uma redução de somente 13% nos índices de criminalidade(1).

Esses números não deixam margem a dúvidas e não podem ser desprezados no debate sobre a reforma da legislação penal. Eles mostram que a relação custo/benefício da pena de prisão é absolutamente desfavorável. Ou seja, eles sinalizam que, apesar do endurecimento penal e do aumento das taxas de encarceramento não há a esperada redução da criminalidade, sobretudo nos crimes mais violentos.

Além disto, o Levantamento Nacional do Atendimento Sócio-Educativo ao Adolescente em Conflito com a Lei — divulgado em 2006 pela Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República — aponta que o déficit de 3.396 vagas nas unidades de atendimento socioeducativo chega a 22% da população de internos, sendo que 685 jovens e adolescentes encontram-se recolhidos em cadeias. Os dados apontam ainda um acréscimo de 34% na internação provisória, ao passo que o número de internos em semiliberdade teria crescido apenas 9%, o que sugere a prevalência do critério da suposta “periculosidade” dos adolescentes no atendimento. Tais parâmetros devem ser ponderados quando se cogita do aumento do tempo máximo de internação dos adolescentes — estaria o sistema preparado para as conseqüências deste aumento? Mais do que isto: a qualidade do tratamento não seria afetada?

Revoltada e indignada, a sociedade brasileira tem todo o direito de cobrar respostas do Estado. É imperioso discutir medidas legislativas que modifiquem os benefícios do regime semi-aberto, penalizem o uso de celulares em estabelecimentos prisionais, exijam o exame criminológico para autores de crimes hediondos, proíbam contingenciamento de recursos orçamentários destinados à segurança e tornem o processo penal mais dinâmico.

Há necessidade de medidas mais rigorosas para conter o avanço da violência e criminalidade, não há dúvida. Mas, negar os valores do Estatuto da Criança e do Adolescente e enfatizar a redução da maioria penal como solução para a crise de segurança é mais do que escamotear a verdade. É iludir a opinião pública com fantasias e alimentar a hipocrisia. Acima de tudo, é um lamentável equívoco histórico, pois estigmatizar crianças como criminosos, penalizar adolescentes e criminalizar jovens, é negar às novas gerações o direito de forjar seu projeto de sociedade. É impedi-las de construir seu futuro em bases alicerçadas na idéia de inclusão social, no princípio da solidariedade e no respeito aos direitos civis.

Como o IBCCRIM já afirmou anteriormente nestas colunas, o problema da violência urbana e a contenção da escalada do crime, seja ele difuso ou organizado, transcendem o âmbito das mudanças legais e das reformas penas, exigindo como condição necessária o enfrentamento das causas estruturais da delinqüência juvenil — e estas, como é sabido, estão relacionadas à extrema desigualdade social, à concentração de renda, à precariedade da educação básica, à ausência de redes de apoio às novas gerações e à falta de emprego. Esta não é e nunca foi uma “falsa questão”.

Ao contrário, é um problema decisivo para a própria efetividade da ordem jurídica, em cujo âmbito todos são iguais perante a lei e podem ser penalizados por suas transgressões. Portanto, é ilusório imaginar que o problema da violência criminal tenha soluções de curto prazo e que basta o voluntarismo dos defensores das políticas de “tolerância zero” e do “Direito Penal máximo” para se por fim à crise da segurança pública. Enquanto milhões de jovens continuarem sem conseguir entrar no mercado formal de trabalho, porque o poder público lhes negou a escolaridade necessária, eles permanecerão economicamente excluídos e, por tabela, condenados a viver em uma cultura de marginalidade social e de criminalidade.

Ninguém discute a necessidade de se adotar providências para evitar novas tragédias, como a que levou o menino João Hélio a uma morte brutal. O que não se pode admitir, voltamos a enfatizar, é achar que basta reduzir a maioridade penal e passar a criminalizar jovens socialmente excluídos para se dar resposta ao clamor por segurança.

Nota

Roger Tarling, Analysing Offending Data, Models and Interpretations; e Marc Mauer e Jenni Gainsborough, Diminishing Returns: Crime and Incarceration in the 1990's, apud Julita Lembruger, “Controle da Criminalidade”, in Think Tank, Rio De Janeiro



IBCCRIM - Instituto Brasileiro de Ciências Criminais - Rua Onze de Agosto, 52 - 2º Andar - Centro - São Paulo - SP - 01018-010 - (11) 3111-1040