Carina Quito
André Pires de Andrade Kehdi, Caroline Braun, Cecília Tripodi, Eleonora Rangel Nacif, Fabiana
A agenda política nacional foi surpreendida com a proposta do Presidente da República de mudar a legislação penal para endurecê-la, equiparando o crime organizado ao terrorismo.
Como é sabido, embora os ataques do PCC em São Paulo tenham deixado um saldo trágico — a morte de 56 policiais, 119 suspeitos e 10 civis inocentes —, em momento algum o governo falou em terrorismo. Pelo contrário, quando indagado em diversas entrevistas coletivas, o Ministro da Justiça fez questão de descaracterizar a facção criminosa como organização terrorista. Por isso, antes de se debater a proposta de mudanças na legislação apresentada pelo Presidente da República é preciso saber se ela é mais uma iniciativa que se esgota no jogo da retórica política, com o objetivo de tentar aplacar a indignação da sociedade, ou se é mesmo uma iniciativa para valer.
Caso o governo realmente esteja empenhado em levar essa proposta adiante, a questão é saber se ele tem consciência dos desdobramentos jurídicos e institucionais da caracterização dos ataques do crime organizado como atos terroristas. Afinal, o enquadramento do crime organizado na vetusta legislação de segurança nacional implica medidas cujo manejo, como a história brasileira entre as décadas de 60 e 80 revela, pode, facilmente, escapar ao controle, pondo em risco garantias individuais, direitos fundamentais e liberdades públicas.
O terrorismo é movido por objetivos ideológicos ou religiosos, enquanto o crime organizado visa apenas à obtenção de lucros ilícitos e envolve contrabando de armas, tráfico de drogas e homicídios. Ou seja, delitos já previstos pelo Código Penal e por leis especiais, das quais a Lei de Crimes Hediondos é a mais conhecida. É por isso que a proposta de equiparação do crime organizado a terrorismo tem de ser vista com cuidado. Ao dar o mesmo tratamento a práticas transgressoras e universos política e socialmente distintos, ela pode abrir um perigoso precedente para a supressão do garantismo processual, para o comprometimento da autonomia do Ministério Público e para a imposição de um rito sumário que desmoraliza a própria idéia de Justiça.
Na realidade, o problema do combate ao crime organizado não está na falta de rigor das penas previstas pela legislação vigente no País. Está, isto sim, na incapacidade dos diferentes braços do poder público de criar as condições técnicas e financeiras para tornar essa legislação eficaz. Há alguns números, o IBCCRIM lembrou — criticou — os cortes orçamentários promovidos indiscriminadamente em setores estratégicos e o contingenciamento sistemático das verbas do Fundo Nacional de Segurança Pública e do Fundo Penitenciário Nacional, medidas justificadas pelas autoridades econômicas em nome de um superávit primário que se converteu num fim em si e não numa estratégia para maximizar a aplicação de recursos escassos com base em prioridades no plano social. Isso, por si, mostra que o problema da criminalidade depende menos de mudanças legais e mais de eficiência administrativa e de políticas públicas eficazes. Portanto, o governo estaria trilhando o melhor caminho se concentrasse sua atenção na fixação de prioridades, em vez de cair na tentação da chamada “legislação do pânico” — aquela que é produzida às pressas em momentos de crise, desarmonizando o sistema processual e deformando o sistema de penas.
Na mesma ocasião, o IBCCRIM também advertiu para o risco de as instituições governamentais responderem aos ataques de facções criminosas de maneira irracional, ou seja, usando a violência como resposta à violência. Diante das medidas de exceção que as leis antiterror tendem a conter, a proposta do governo de equiparar o crime organizado a terrorismo, como forma de se deter a violência, revela o quanto aquela nossa advertência infelizmente continua atual.
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