INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS

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Boletim - 167 - Outubro / 2006





 

Coordenador chefe:

Mariângela Gama de Magalhães Gomes

Coordenadores adjuntos:

André Pires de Andrade Kehdi, Andréa Cristina D’Angelo, Leopoldo Stefanno Leone Louveira e Ra

Conselho Editorial

Editorial

O absurdo de uma punição “protetiva”

No início de setembro, a Secretaria Nacional de Direitos Humanos tornou público os resultados do Levantamento Nacional de Atendimento Sócioeducativo ao Adolescente em Conflito com a Lei, certamente o maior e mais completo levantamento acerca da aplicação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) no país.

São dados relevantes, que certamente demandam aprofundada reflexão e acurado estudo pelos operadores e estudiosos do direito. Porém, alguns deles chamam a atenção pela expressividade dos números e porque comprovam um sentimento difuso de que muito vai mal, e mudanças urgentes se impõem.

Entre 2002 e 2006, o número de adolescentes privados da liberdade em regime sócio-educativo de internação cresceu 28% e alcançou 10.446 adolescentes em todo o país. O Estado de São Paulo continua firme na liderança do ranking de números absolutos, com o explosivo índice de 39% do contingente nacional de internados, enquanto detém apenas 20% da população adolescente. Em termos proporcionais, São Paulo também comparece entre os líderes do país, atrás do Acre, Distrito Federal e Amapá.

É evidente que análises de padrão ou perfil de delinqüência juvenil não explicam tais dados, como de resto absolutamente nenhuma semelhança socioeconômica pode aproximar realidades tão díspares como as das regiões citadas.

O que parece estar na raiz do problema, verdadeiro denominador comum, é a cultura punitiva e a política do encarceramento massivo, fruto da velha crença repressiva que domina o sistema penal adulto e contamina o sistema de justiça juvenil, com a agravante de que neste muitos supõem ou justificam o rigor punitivo por conta da proteção de adolescentes, o que o ministro Sepúlveda Pertence denominou com toda a propriedade de humor sádico (RE nº 285571-PR).

Comprova isto o estarrecedor crescimento de adolescentes sujeitos à internação provisória (da ordem de 34% no mesmo período), o que certamente não encontra explicação razoável, principalmente se considerada a natureza cautelar desta modalidade de privação de liberdade.

Trata-se de situação de verdadeiro abuso do uso da medida cautelar de privação de liberdade, utilizado indevidamente como castigo antecipado. O abuso é agravado pela falta de controle de legalidade da decisão judicial, já que o remédio do habeas corpus não se mostra efetivo dada a rapidez do processamento dos feitos, e dado que os tribunais estaduais são, no mínimo, módicos e parcimoniosos na concessão de liminares, para não dizer avarentos.

Por uma ou outra via, o que se constata é a mesma realidade de uso excessivo e abusivo da privação de liberdade, em verdadeira afronta ao Princípio Constitucional da Excepcionalidade da Internação, com o qual a Carta Política determina aquilo que os operadores do sistema de justiça juvenil insistem em ignorar, como se investidos do poder de revisão constitucional: a privação da liberdade é medida extrema e excepcional, sujeita à prova de sua necessidade, nos termos do art. 122, § 2º do ECA.

Esta política antijurídica de encarceramento em massa não é nada diferente daquela posta em prática em relação aos adultos. Tanto quanto no sistema penal, o que se vê é violência institucional a pretexto de coibir a violência comum, e o resultado disto é a tragédia da crise de segurança de todos conhecida.

A propósito, cabe meditar sobre os dados de recente pesquisa da Febem de São Paulo, segundo a qual 27% dos adolescentes internados se sentem infelizes, 23% deprimidos, e 14% deles sentem ódio. A ninguém é dado desprezar tão grave constatação e ignorar que o sistema de justiça juvenil está destruindo vidas e semeando o crime.

O IBCCRIM, mais uma vez, se posiciona firmemente contra a irracional política criminal em curso no país, agora desvelada em seu grau máximo pela política de encarceramento juvenil executada à custa da Constituição Federal e do ECA, e diante da qual cabe perguntar por quanto mais o país suportará sem perder a sua essência democrática ou, de outra forma, quanta destruição de vidas e quanto semear de ódio ainda seremos capazes de absorver.

Hölderlin disse que semelhante ao homem que devora homens é aquele que vive sem amor. Já é perceptível que vamos nos tornando iguais aos inimigos. A Constituição, no art. 227, obriga a todos — família, sociedade e Estado — a assegurar os direitos fundamentais à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, e colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. Cabe à sociedade democrática e legalista reclamar seu integral cumprimento.



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