Mariângela Gama de Magalhães Gomes
André Pires de Andrade Kehdi, Andréa Cristina D’Angelo, Leopoldo Stefanno Leone Louveira, Lui
O homem exalta a violência, o grotesco chama sua atenção levando seus olhares para onde há sofrimento e desgraça. Não se sabe porque se é assim, simplesmente é. Talvez uma forma de exorcizar seus próprios medos, um sentimento de piedade ou uma curiosidade mórbida a respeito da dor de quem se desconhece. Só é certo que é mais fácil se encontrar num engarrafamento, tendo em vista os motoristas promoverem uma marcha mais lenta por causa de um acidente adiante para melhor constatar o número de vítimas fatais e o terrível estado que se encontram os veículos envolvidos do que pela simpatia de se ver crianças brincando num parque.
Não há uma explicação objetiva para este interesse quase comum (também não vamos generalizar), mas o que realmente importa é que a grande máquina que tudo vê está atenta para tal fato. A informação dá lugar a manchetes fantásticas. Sentada no sofá a população engole sem mastigar e com admiração o espetáculo das sensações. Se é isto o que ela quer, isto ela terá: grandes doses de sangue, intolerância e desgraça. É sóisso o que se vê e é só isso o que se sabe. As imagens se impregnam na pele fazendo com que um fato ocorrido em um local distante gere a impressão de ter se dado a poucos metros de nossa própria casa.
E diante desta grande ameaça o povo, com medo e aflito diante da presença deste terrível fantasma, grita “mata”,“esfola”, na tentativa, quase natural, de salvar a si mesmo e sua espécie do grande monstro que ameaça sua família. Como bem observou Nilo Batista, “nos tempos que correm, em nosso país, as velhas senhoras bondosas são freqüentemente instigadas a reencarnarem-se nas deusas do ódio e da vingança”.(1) E o Estado com uma capa vermelha, agradecendo silenciosamente os brados do povo, pois assim legitima os seus super poderes, ergue em punho uma espada prometendo matar o dragão que assusta os camponeses.
Ocorre que se sabe que é impossível acabar com todos os dragões e que, de fato, os maiores e mais perigosos, por serem dissimulados e cheirarem bem, estão em meio à nobreza. Porém, o que realmente importa, é que as pessoas humildes do povo fiquem felizes e mais aliviadas em saber que, agora sim, o mal vai ter o que merece.
Como o Estado é incapaz de solucionar tais conflitos da sociedade que, em verdade, em muito são inerentes às misérias da educação, saúde, habitação, cultura, emprego e demais obrigações inadimplidas, cuja omissão é responsável, em grande parte, pela exclusão e marginalização da grande massa de desvalidos, direciona seus recursos para as mais viáveis das atribuições: o processo legislativo e o sistema penal.
Diante de tais celeumas e a necessidade de uma resposta eficaz e “para ontem”, os estadistas aflitos em apaziguar os ânimos do povo para possibilitar um retorno “merecido” num próximo mandato, mas também sem querer sacrificar seus próprios privilégios e de seus afins, coçam a cabeça procurando uma solução. O que fazer? Ora, vamos criar leis. Não possui gastos, além daqueles já dispensados para o pagamento de nossos próprios salários, tem uma aplicação imediata ao entrar em vigor e ser muito fácil a venda da idéia de que uma das grandes gêneses da criminalidade éa tão falada impunidade, ou seja, que nossas leis são ruins, cheia de brechas, feitas para beneficiar o “bandido”.
Agora temos leis fortes, que punem de forma rigorosa os crimes hediondos e equiparados, o porte ilegal de arma, sendo todos inafiançáveis. Mas e daí que estes dispositivos estejam ferindo princípios constitucionais como o da proporcionalidade? Qual o problema se hojeé mais grave adulterar produto destinado a fim terapêutico ou medicinal ou fabricá-lo sem o registro devido do que envenenar tal substância, uma vez que o primeiro caso é considerado hediondo e o segundo não, ou efetuar disparo com uma arma para o alto que hoje é inafiançável, ou seja, mais grave do que se eu disparar em alguém na intenção de matá-lo, que não é? Desde que se alcance o efeito simbólico almejado com a elaboração destas leis, qual o problema?
O ordenamento jurídico sempre foi um instrumento legitimador de controle social efetuado pelo poder. No Código Penal do Império, bastante liberal para a década de 1820, é abolida a pena de morte, salvo em dois casos: atentados contra o Império ou rebelião armada de escravos. Com isto é possível constatar as duas grandes preocupações da época, sua própria existência e a principal estruturaeconômica do país.
Hoje a nossa preocupação é com a grande massa de negros, pardos, pobres, feios e, principalmente, favelados cujo olhar nos incomodam, estragam a paisagem, andam de pés descalços no asfalto quente, usam roupas sujas e são todos integrantes de uma terrível seita que possui um pacto de sangue com o mais terrível dos demônios dos círculos do inferno: as drogas ilícitas, e por isso merecem ser controlados, vigiados, trancafiados, mortos e exorcizados, pois não fazem parte de nós, homens brancos e civilizados, são, na verdade, nossos inimigos e não merecem perdão.
Para tanto, nossas leis e nossa cruzada precisam de uma estrutura a fim de se dar fiel cumprimento às suas diretrizes, o sistema penal entendido como o conjunto de órgãos hábeis a aplicar as normas punitivas e intervir coercitivamente sobre a liberdade e a dignidade daqueles que ousarem desobedecer o rei: as forças policiais, o sistema judiciário e o sistema carcerário. Mas estas instituições exigem investimentos, irão questionar. Nem tanto, pois elas já existem, então ao jogarmos para o sistema penal esta responsabilidade de mudar o mundo e resolver todos os nossos problemas elas terão que funcionar de um jeito ou de outro, não sendo necessário, assim, grandes investimentos, até porque também não é muito interessante que elas sejam tão eficazes, apenas o necessário para que possam intervir nas classes de baixo, já que não podemos permitir que se criem aparatos mais sofisticados sob o risco de que cheguem até nós.
Assim, temos uma Polícia pouco especializada cuja atuação preventiva e investigativa está fadada a combater as espécies de delitos mais comuns entre as camadas mais pobres que estão nas ruas, pois suas atividades são nos becos, nas praias, expostos, enquanto que os meliantes com camisa de ceda estão em suas empresas, repartições, resorts em Angra dos Reis. Alguém já ouviu falar em “batida policial” num condomínio de luxo na área nobre da cidade? Seria um desrespeito aos trabalhadores de bem, que tanto contribuíram para o progresso de nossa nação, diferentes daqueles desviados e degenerados moradores de favelas, todos em conluio junto aos traficantes e demais criminosos que colocam em risco nossa segurança.
Já o Judiciário, formado por uma vasta contribuição da classe burguesa, incluindo Magistratura e Ministério Público, verificamos um certo distanciamento entre as suas realidades e a da sua principal clientela e uma cultura jurídica positivista fortemente impregnada em nossas práticas jurídicas, ou seja, o que vale é a lei, independente de qualquer interpretação ou valoração mais crítica desta. A lei éditada como por um ser superior, quase divino, que sabe o que é melhor para todos os cidadãos deste Brasil varonil. Então os profissionais da área jádevidamente adestrados em vomitar a lei, assim o fazem e que se danem os princípios gerais, os Tratados Internacionais, as conquistas históricas, as particularidades de cada conflito e, principalmente, a destruição de uma vida e o dano social gerado pela exclusão propiciada pela intervenção punitiva do Estado, pois o seu trabalho foi feito e pronto, o que só vem corroborar a conclusão de Foucault no sentido de “que nos tribunais não é a sociedade inteira que julga um de seus membros, mas uma categoria social encarregada da ordem sanciona outra fadada à desordem”.(2)
Por fim, quanto ao sistema carcerário torna-se redundante qualquer análise, face à atual situação degradante em que se encontra de mero depósito de corpos, onde são jogados monstros, vermes, bactérias, menos humanos, pois perderam esta característica ao violarem a lei e terem tido o azar de ter nascido pobre, sem uma caneta mont blanc e, na sua maioria, ter encontrado nas drogas ilícitas a única fonte de renda viável para sua sobrevivência e de sua família, ainda que lhe custe um preço alto, sua liberdade, seu sossego, seu sangue, sua vida. Mas, na verdade, o que isto importa?
Notas
(1) Batista, Nilo.“Pena pública em tempo de privatização”. In: Curso Livre de Abolicionismo Penal. Rio de Janeiro: Revan, 2004.
(2) Foucault, Michel. Vigiar e Punir: História da Violência nas Prisões. Petrópolis: Vozes, 2000.
Luciano Filizola da Silva
Mestre em Ciências Penais e professor de Criminologia e Direito Penal
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