INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS

     OK
alterar meus dados         
ASSOCIE-SE


Boletim - 160 - Março / 2006





 

Coordenador chefe:

Mariângela Gama de Magalhães Gomes

Coordenadores adjuntos:

André Pires de Andrade Kehdi, Andréa Cristina D’Angelo, Leopoldo Stefanno Leone Louveira, Lui

Conselho Editorial

Editorial

Consciência constitucional na aplicação da pena-base à luz do princípio da proporcionalidade

Benedicto Arthur de Figueiredo Neto

Advogado em Campo Grande

A criação de uma nova ordem democrática constitucional é feita quando a ordem anterior encontra-se insustentável e, então, o povo através da instalação de uma Assembléia Nacional Constituinte, ou através de uma Revolução, rompe com a ordem anterior e instala uma nova ordem democrática, preservando, e melhorando, bons direitos que foram conquistados nas ordens anteriores, e fazendo constar novos direitos, que a ordem constitucional anterior não os reconhecia ou, a ela, eram contrários.

O maior problema da instalação de uma nova ordem democrática não é a recepção da legislação infraconstitucional anterior. O maior problema sim é a interpretação da legislação infraconstitucional, já recepcionada, à luz da ordem constitucional moderna. Mas qual é a primeira premissa para se interpretar constitucionalmente uma lei infraconstitucional? Temos que a resposta seja consciência constitucional.

Quando Ferdinad Lassale diz que uma Constituição era uma “folha de papel”, Konrad Hesse (1) se volta ferozmente contra essa afirmação, dizendo que “o Direito Constitucional não estaria a serviço de uma ordem estatal justa, cumprindo-lhe miserável função — indigna de qualquer ciência — de justificar as relações de poder dominantes. Se a Ciência da Constituição adota essa tese e passa a admitir a Constituição real como decisiva, tem-se a sua descaracterização como ciência normativa, operando-se a sua conversão numa simples ciência do ser”.

O espírito de consciência constitucional de uma ordem democrática, voltada para o povo, é resgatado na Alemanha pós-Segunda Guerra Mundial, quando Konrad Hesse (2), trabalhando a idéia da força normativa de uma norma constitucional, diz que a mesma deve conter elementos da realidade, mas o próprio Hesse acrescenta que não é apenas isso que se deve levar em conta para uma norma constitucional ganhar força, mas também o espírito constitucional a ser incutido em um determinado povo, segundo suas palavras: “a pretensão de eficácia da norma jurídica somente será realizada se levar em conta essas condições. Há de ser, igualmente, contemplado o substrato espiritual que se consubstancia num determinado povo, isto é, as concepções sociais concretas e o baldrame axiológico que influenciam decisivamente a conformação, o entendimento e a autoridade das proposições normativas.”

O resgate do princípio da proporcionalidade na Alemanha, aplicando-o no Direito Administrativo no ano de 1971 (3) no Tribunal Constitucional Alemão, foi um marco para o Direito Constitucional, dado que o princípio da proporcionalidade houvera nascido no Bill of Rights de 1215 (arts. 20 e 39) e posteriormente Cesare Beccaria (4) o houvera adaptado para o Direito Penal como forma de limitação do poder estatal para a fixação de pena: “o interesse geral não se funda apenas em que sejam praticados poucos crimes, porém ainda que os crimes mais prejudiciais à sociedade sejam os menos comuns. Os meios de que se utiliza a legislação para obstar os crimes deve, portanto, ser mais fortes à proporção que o crime é mais contrário ao bem público e pode tornar-se mais freqüente. Deve, portanto, haver proporção entre os crimes e os castigos... Se os cálculos exatos pudessem ser aplicados a todas as combinações obscuras que levam os homens a agir, seria necessário buscar e estabelecer um a progressão de penas que corresponda à progressão dos delitos. O quadro dessas duas progressões seria a media da liberdade ou da escravidão da humanidade ou da maldade de cada país (...) Bastará, pois, que o legislador sábio estabeleça divisões principais na distribuição das penalidades proporcionadas aos crimes e que, especialmente, não aplique os menores castigos aos maiores delitos”.

A consciência constitucional dos alemães na adaptação do princípio da proporcionalidade ao Direito Administrativo foi de suma importância para o desenvolvimento desse princípio, tendo em vista que o princípio da proporcionalidade, a partir do desenvolvimento alemão, ganhou tríplice dimensão, quais sejam: a adequação (1), a necessidade (2) e a proporcionalidade em sentido estrito (3).

Assim sendo, proporcional no sentido adequado quer significar que a aplicação de uma norma deva encontrar a teleologia desejada pelo legislador, a fim de se saber a qual finalidade busca a norma, que se porventura for desnaturada da vontade do legislador terá como com sanção a declaração de sua inconstitucionalidade (5).

A necessidade ou exigibilidade tem como principal função, determinar ao Poder Público que a aplicação de uma norma seja feita de modo que interfira o menos possível nos direitos de um ser humano em caso concreto.

Completa-se a tríplice dimensão quando a proporcionalidade é analisada em sentido estrito, aqui funcionando como mandado de ponderação, a fim de que “o ônus imposto pela norma deva ser inferior ao benefício por ela engendrado, sob pena de inconstitucionalidade” (6).

O princípio da proporcionalidade em sentido estrito quer apresentar, no direito penal, dois significados, sendo eles, a proibição do excesso versus a proibição da insuficiência da reprimenda quando verificado um crime, ou nas palavras de Ingo Sar­let (7), “de modo especial, argumenta-se que existe uma substancial congruência (pelo menos no tocante aos resultados) entre a proibição de excesso e a proibição de insuficiência, notadamente pelo fato de que esta encontra-se abrangida pela proibição de excesso, no sentido de que aquilo que corresponde ao máximo exigível em termos de aplicação do critério da necessidade no plano da proibição de excesso, equivale ao mínimo exigível reclamado pela proibição de insuficiência”.

Ora, sabendo que a aplicação da pena-base funciona a partir de critérios eminentemente discricionários por parte do aplicador, que analisará todos os critérios da culpabilidade, descritos no art. 59 do Código Penal Brasileiro, para a sua devida fixação, o que se espera do aplicador é consciência constitucional para que seja fixada uma pena-base, a fim de que não haja um excesso, nem tampouco uma insuficiência na reprimenda.

Ademais, o Código Penal (que teve sua parte geral reformada em 1984, e foi recepcionado pela Constituição de 1988) em seu art. 59, parte final, diz que para a fixação da pena-base, além da análise dos elementos da culpabilidade, a mesma deve ser feita “conforme seja necessário e suficiente, para reprovação e prevenção de crime”, estando aí embutido o princípio da proporcionalidade em nível infraconstitucional, mas que em nível constitucional o princípio se expressa na individualização da pena, contido no art. 5º, XLVI.

Luigi Ferrajoli (8) , em sua obra Direito e Razão, elenca a pena (nulla poena sine crimine) como sendo um de dez axiomas do garantismo penal, e se utiliza do princípio da proporcionalidade (capítulo 7, item 30) a fim de que o mesmo exteriorize ao aplicador a primeira premissa de “como punir”.

Mas ainda existe um sério problema no sistema penal brasileiro de se saber, na pena-base, “quanto punir”, tendo em vista que muitos critérios componentes da culpabilidade, como personalidade do agente e conduta social, são totalmente abstratos a um juiz de Direito que não possui conhecimentos técnicos de psicologia ou psiquiatria forense. Faltando ao juiz aplicador da pena-base um esteio empírico sério para se verificar tais critérios no momento de quantificar a pena-base, ou nas palavras de Salo de Carvalho (9), “o critério personalidade, presente no corpo do art. 59 do Código Penal, não obstante ser, dada a sua natureza, controverso, não apresenta, desde modelo acusatório, possibilidades de verificabilidade processual pelo magistrado e pelas partes. (...) Todavia, se ao juiz é difícil (diríamos impossível) concretizar a tarefa imposta pela lei, uma breve revisão bibliográfica transdisciplinar revelará verdadeira impossibilidade de técnica do jurista proceder tal averiguação e, conseqüentemente, dela retirar os efeitos legais”.

Assim, o princípio da proporcionalidade, que é corolário do garantismo penal, e que este é corolário do princípio da individualização da pena, contido no art. 5º, XLVI, da Constituição Federal, deve ser utilizado no momento da aplicação da pena-base como meio interpretativo moderador de fixação da mesma, a fim de que a pena-base seja fixada de maneira que não haja um excesso, e tampouco insuficiência para a repressão e prevenção do crime, isto como forma de concretizar o princípio da proporcionalidade em seu sentido estrito, alcançando-se, assim, consciência constitucional no momento de sua fixação.

Notas

(1) A Força Normativa da Constituição (Die Normative Kraft Der Verfassung), tradução de Gilmar Ferreira Mendes, Porto Alegre: Editora Sergio Antonio Fabris Editor, 1991, p. 11.

(2) Ob. cit., pp. 14-15.

(3) BARROS, Suzana de Toledo. O Princípio da Proporcionalidade e o Controle de Constitucionalidade das Leis Restritivas de Direitos Fundamentais, Brasília-DF: Ed. Brasília Jurídica, 1996, p. 44.

(4) In BARROS, Suzana de Toledo. Ob. cit., p. 35.

(5) Suzana de Toledo, p. 75.

(6) SARMENTO, Daniel. A Ponderação de Interesses na Constituição Federal, 1ª ed., 3ª tiragem, Rio de Janeiro: Ed. Lumen Juris, 2003, p. 89.

(7) Revista de Estudos Criminais, nº 12, p. 110.

(8) Direito e Razão, Teoria do Garantismo Penal, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 75.

(9) Amilton Bueno de Carvalho e Salo de Carvalho. Aplicação da Pena e Garantismo, Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2004, p. 54.

Benedicto Arthur de Figueiredo Neto
Advogado em Campo Grande (MS)



IBCCRIM - Instituto Brasileiro de Ciências Criminais - Rua Onze de Agosto, 52 - 2º Andar - Centro - São Paulo - SP - 01018-010 - (11) 3111-1040