INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS

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Boletim - 157 - Dezembro / 2005





 

Coordenador chefe:

Mariângela Gama de Magalhães Gomes

Coordenadores adjuntos:

André Pires de Andrade Kehdi, Andréa Cristina D’Angelo, Leopoldo Stefanno Leone Louveira, Lui

Conselho Editorial

Editorial

Para além do universo penal...

O Boletim do IBCCrimdesse mês aproveita o encerramento de pesquisa conduzida pelo Núcleo de Pesquisas do Instituto para provocar reflexões sobre o tratamento de conflitos sociais pelo sistema de justiça brasileiro, com destaque para situações que se tornam invisíveis quando tomadas apenas na perspectiva penal.

A pesquisa investigou como o nosso sistema de justiça lida com as prisões motivadas por conflitos agrários no País e, com isso, processa conflitos que possuem simultaneamente características sociais, políticas, econômicas e criminais. A proposta foi analisar como operadores da justiça e envolvidos em conflitos agrários, tanto trabalhadores sem-terra , quanto fazendeiros e/ou madeireiros, constróem suas percepções e mentalidades sobre as prisões efetuadas e qual o significado que elas assumem na administração de tais conflitos. Pretendeu-se apreender como os direitos constitucionais à liberdade e ao uso social da propriedade são observados no Brasil.

Para tanto, foram realizadas entrevistas com juízes, promotores de Justiça, delegados de Polícia, advogados e réus que já haviam passado pela experiência da prisão motivada por conflitos agrários. E, do mesmo modo, foram analisados processos judiciais nos Estados do Pará, Pernambuco, São Paulo e Rio Grande do Sul, na tentativa de contemplar as diferentes realidades intra-regionais do País.

Entre os resultados que já podem ser anunciados, a heterogeneidade de posições, a busca pelo formalismo jurídico no tratamento penal e a valorização do direito à propriedade parecem conformar aquilo que os pesquisadores responsáveis pelo projeto intitularam de simulacro de justiça, ou seja, a observância de requisitos formais para a determinação das prisões motivadas por conflitos agrários e, ao mesmo tempo, a utilização cotidiana dessas prisões como mecanismos de controle social e/ou mediação de tensões de parcela da população envolvida. Por detrás do cumprimento dos requisitos formais para as prisões, percebeu-se a permanência de situações históricas de criminalização de segmentos sociais e, acima de tudo, a concepção do direito de propriedade desvinculada do preceito constitucional de seu uso social.

Num exemplo desse quadro heterogêneo e complexo, a pesquisa identificou mudanças profundas na forma como Executivo e Judiciário do Pará tratam os conflitos agrários no Estado, muito em função do episódio de “Eldorado dos Carajás”, no qual morreram vários trabalhadores sem-terra após uma mal planejada e conduzida operação policial. Atualmente, o Pará notabiliza-se por ter criado Varas Agrárias, adotar procedimentos de gerenciamento de crises na mobilização gradual de seus efetivos policiais e, ainda, pela disposição de negociação com movimentos sociais. No Pará, ao contrário de outras unidades da federação, o problema dos conflitos agrários possui centralidade e visibilidade suficientes para, ao menos, ser considerado na agenda política do Estado, num avanço relativo na comparação a outras situações.

No entanto, as prisões em razão de tais conflitos lá efetuadas continuam a recair sobre trabalhadores sem-terra, que, quando entrevistados, destacam as precárias condições a que foram submetidos. A exceção fica por conta das forças tarefas dos Governos Federal e Estadual para o combate à exploração de trabalho escravo, pelas quais alguns casos de fazendeiros/madeireiros acabaram resultando em prisões.

O material analisado pela pesquisa, nos estados de Rio Grande do Sul, São Paulo e Pernambuco evidencia a divisão dos operadores jurídicos e de suas práticas em duas grandes posições ideológicas: uma, a que defende o endurecimento penal no tratamento das questões agrárias e, outra que entende que o uso social da propriedade, constitucionalmente definido deve ser observado nas decisões judiciais. Esse segundo grupo, garantista, começa a mudar práticas jurídicas ao processar situações que envolvem conflitos agrários, porém enfrenta a resistência da vertente criminalizadora dos movimentos sociais que questionam o direito à propriedade como algo “inalienável”. Esta vertente, que se intitula legalista, justifica as prisões motivadas por conflitos agrários na necessidade de manutenção de lei e ordem. Esse embate ideológico, presente também na fundamentação jurídica dos processos criminais, contribui para a permanência da invisibilidade das prisões motivadas por conflitos agrários no sistema de justiça.

Derivada desse quadro, a invisibilidade política do problema resulta, também, na inexistência de estatísticas ou sistemas de informações confiáveis, cabendo à sociedade civil, sobretudo à Comissão Pastoral da Terra (CPT), o papel de principal órgão de monitoramento de conflitos agrários no País, merecendo o devido reconhecimento de seu papel pioneiro. Contudo, o IBCCrim entende que políticas públicas que contemplem a intervenção estatal nos conflitos sociais não devem prescindir da produção e utilização de indicadores e instrumentos de planejamento produzidos pelas instituições de justiça e segurança.

A pesquisa conclui que as prisões motivadas por conflitos agrários estão justificadas nas práticas jurídicas, mas estão distantes de significarem distribuição efetiva de justiça. Os dados obtidos revelaram que o tratamento dispensado às prisões e, mesmo, aos próprios conflitos agrários busca reduzir o problema exclusivamente à dimensão criminal envolvida. Todavia, o efeito dessa opção é a permanência do que Theodomiro Dias Neto afirma como sendo a redução de políticas de segurança ao espaço da política criminal notadamente marcada pela intervenção penal. Seria a supremacia de um ponto de vista criminalizador na interpretação dos conflitos sociais, no qual direitos civis e humanos não estão contemplados como objeto das políticas públicas conduzidas pelas instituições de Justiça Criminal.

Enfim, o estudo do Núcleo de Pesquisas traz à tona um exemplo das dificuldades colocadas à incorporação de requisitos democráticos na operação cotidiana do sistema de justiça brasileiro. Assim, indica a necessidade de revisão dessas práticas cotidianas ou burocráticas e de superação da visão estritamente penal, como estratégia de se aumentar a efetividade do sistema, ou seja, a garantia equânime dos direitos constitucionais previstos.



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