INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS

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Boletim - 156 - Novembro / 2005





 

Coordenador chefe:

Mariângela Gama de Magalhães Gomes

Coordenadores adjuntos:

André Pires de Andrade Kehdi, Andréa Cristina D’Angelo, Leopoldo Stefanno Leone Louveira, Lui

Conselho Editorial

Editorial

Novos ataques à execução penal: a proposta de quebra da jurisdicionalização

Nossa Lei de Execução Penal (LEP) comemorou 21 anos de vigência. Apesar de ser uma de nossas melhores leis penais e processuais penais — sempre lembrada nos estudos de Direito Comparado —, o certo é que foi ainda pouco compreendida em seus fundamentos pelos operadores brasileiros da execução penal. Pior ainda, desde 1990 vem sendo desconstituída por sucessivos ataques legislativos que, seguida e casuisticamente, minaram o edifício tão bem idealizado originalmente.

Como sabemos, a partir da LEP o direito brasileiro da execução penal foi erguido com base em três pilares fundamentais e estruturantes. O primeiro deles é a idéia de progressividade no curso da execução da pena prisional. A progressividade — objetivo que não se esgota na progressão estrita de regimes, estendendo-se para vários outros importantes institutos da lei, como o livramento condicional e os benefícios presidenciais — indica que a execução apenas tem sentido lógico quando e na medida em que propiciar ao condenado uma paulatina reaproximação com o meio social. O modelo adotado, ao vincular a progressividade ao tempo e a um conceito intencionalmente aberto de mérito, indicava originalmente que a lei não pensava a progressividade tão-somente baseada no item disciplinar, alargando-a e enriquecendo-a também para outros horizontes, tais como o desempenho no trabalho, o estabelecimento de vínculos sociais extramuros, o interesse na educação formal e outros igualmente indicativos da disposição do condenado para, em suma, agenciar seu próprio processo histórico de integração social. Tão importante foi considerada a progressividade na arquitetura original da lei que, a rigor, podemos dizer que ela constituía verdadeiramente o objetivo máximo estatuído no artigo 1º da lei de 1984. Contudo, já a partir de 1990 essa arquitetura foi trincada, com o estabelecimento e o alargamento do elenco dos crimes hediondos e assemelhados, relegando-se a idéia de progressividade apenas a uma parcela de condenados, dela sendo excluída aquela outra composta dos agentes de crimes definidos aprioristicamente e longe da microscopia dos casos concretos. Finalmente, a Lei nº 10.792/2003 condicionou, para a totalidade dos condenados que ainda permaneciam com o direito à progressão de regime, o deferimento de seu pedido com base exclusiva no item disciplinar, atestado pelo diretor do estabelecimento. Retornava-se, assim, a um conceito diminuto de mérito, conceito este que pode tocar a tudo, menos, infelizmente, à idéia em si de socialização.

O segundo pilar estruturante instituído em 1984 foi a idéia de individualização, ou seja, um procedimento permanente de ajuste entre a pena e o condenado, tendo por método a classificação e por instrumento as comissões técnicas in­terdis­ci­pli­na­res. Atuavam essas comissões, segundo a arquitetura original da lei, seja pela classificação inicial (com os exames criminológico e de personalidade), seja pelos pareceres intercorrentes que instruíam decisões judiciais e administrativas capitais para o curso do processo. A partir da individualização, deixava a pena de ser um dado estanque ao longo da execução, reclamando-se, ao contrário, que ela se executasse de forma dinâmica, promovendo-se e aquilatando-se, desse modo, a capacidade e a disposição do condenado para interagir com a sociedade. Todavia, a mesma Lei nº 10.729/2003, ao afastar os pareceres intercorrentes das CTCs, esvaziou, por completo, os procedimentos de individualização da pena, resumindo-os pobremente às avaliações disciplinares pessoais do diretor do estabelecimento e nada mais.

Finalmente, permaneceu, ao menos até aqui formalmente intocado, o terceiro e último pilar estruturante desenhado em 1984: a idéia de jurisdicionalização da execução penal. Ela não indica, simplesmente, a presidência da execução por um juiz de Direito. É algo ainda mais importante e complexo. Quando nos definimos pela jurisdicionalização, adotamos a fórmula do processo judicial, com todos os rigores, ônus e garantias que ela comporta. A jurisdicionalização implica a existência indispensável também do Ministério Público e do defensor na execução penal, com a interlocução de todos eles segundo postulados garantistas mínimos como o da ampla defesa e o do contraditório. Ainda mais que isso, ela assegura o princípio publicístico para o mundo da execução penal, estatuindo que a execução da pena não se decide intramuros, nas rotinas burocráticas da Administração Pública, mas na transparência e na regularidade que somente o processo judicial pode assegurar e cumprir. Pensar em legalidade da execução penal à revelia da jurisdicionalização, portanto, seria verdadeiramente pretender o irrealizável, pois é óbvio que a Administração Prisional, com seus compromissos políticos imediatistas e não raramente eleitorais, jamais teria como estar adstrita a um tal programa. Nesse sentido, abrir mão da jurisdicionalização — isto é, abrir mão da definição da execução penal a partir do processo judicial e tudo o que ele implica — significa, em última análise, desistir derradeiramente da própria idéia de legalidade, fazendo a condição jurídica do condenado retornar a um estado grotesco de especial sujeição de poder ao administrador, a quem se elegerá, nesse passe mágico, à condição de um soberano absoluto da sorte e do destino do outro. Certamente nenhum de nós estaria preparado, moral ou intelectualmente, para uma tal aventura principesca, de sorte que não temos nenhuma garantia e sequer indicações que nossos administradores prisionais o possam estar.

Se a jurisdicionalização era o último baluarte ainda formalmente ileso das reformas legislativas, não demoraria muito para que a atacassem. Depois de estremecidas as idéias de individualização e de progressividade, voltam-se os olhos, agora, para privar não os juízes e os processos judiciais da execução penal, mas, bem inversamente, para privar a execução penal dos juízes e dos processos. Setores das administrações prisionais, radicados em certas Secretarias Estaduais do País, investem fortemente contra a jurisdicionalização, propondo ao Ministério da Justiça e mesmo ao Congresso Nacional que progressões de regime e livramentos condicionais sejam decididos apenas administrativamente, com uma cosmética e vazia comunicação ao juiz.

É contra essa estapafúrdia proposta que se levantam as vozes lúcidas da Nação. O IBCCRIM une-se a elas em um manifesto decidido e firme contra esse novo e precipitado ataque. Se as investidas anteriores foram bem-sucedidas, mais pela confusão das idéias que por seu valor mesmo, certamente a fórmula abusiva não poderá se repetir novamente, surpreendendo-se a comunidade jurídica brasileira com o desmonte derradeiro de um edifício que todos tão arduamente erguemos em 1984.



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