Mariângela Gama de Magalhães Gomes
André Pires de Andrade Kehdi, Andréa Cristina D’Angelo, Leopoldo Stefanno Leone Louveira, Lui
Nossa Lei de Execução Penal (LEP) comemorou 21 anos de vigência. Apesar de ser uma de nossas melhores leis penais e processuais penais — sempre lembrada nos estudos de Direito Comparado —, o certo é que foi ainda pouco compreendida em seus fundamentos pelos operadores brasileiros da execução penal. Pior ainda, desde 1990 vem sendo desconstituída por sucessivos ataques legislativos que, seguida e casuisticamente, minaram o edifício tão bem idealizado originalmente.
Como sabemos, a partir da LEP o direito brasileiro da execução penal foi erguido com base em três pilares fundamentais e estruturantes. O primeiro deles é a idéia de progressividade no curso da execução da pena prisional. A progressividade — objetivo que não se esgota na progressão estrita de regimes, estendendo-se para vários outros importantes institutos da lei, como o livramento condicional e os benefícios presidenciais — indica que a execução apenas tem sentido lógico quando e na medida em que propiciar ao condenado uma paulatina reaproximação com o meio social. O modelo adotado, ao vincular a progressividade ao tempo e a um conceito intencionalmente aberto de mérito, indicava originalmente que a lei não pensava a progressividade tão-somente baseada no item disciplinar, alargando-a e enriquecendo-a também para outros horizontes, tais como o desempenho no trabalho, o estabelecimento de vínculos sociais extramuros, o interesse na educação formal e outros igualmente indicativos da disposição do condenado para, em suma, agenciar seu próprio processo histórico de integração social. Tão importante foi considerada a progressividade na arquitetura original da lei que, a rigor, podemos dizer que ela constituía verdadeiramente o objetivo máximo estatuído no artigo 1º da lei de 1984. Contudo, já a partir de 1990 essa arquitetura foi trincada, com o estabelecimento e o alargamento do elenco dos crimes hediondos e assemelhados, relegando-se a idéia de progressividade apenas a uma parcela de condenados, dela sendo excluída aquela outra composta dos agentes de crimes definidos aprioristicamente e longe da microscopia dos casos concretos. Finalmente, a Lei nº 10.792/2003 condicionou, para a totalidade dos condenados que ainda permaneciam com o direito à progressão de regime, o deferimento de seu pedido com base exclusiva no item disciplinar, atestado pelo diretor do estabelecimento. Retornava-se, assim, a um conceito diminuto de mérito, conceito este que pode tocar a tudo, menos, infelizmente, à idéia em si de socialização.
O segundo pilar estruturante instituído em 1984 foi a idéia de individualização, ou seja, um procedimento permanente de ajuste entre a pena e o condenado, tendo por método a classificação e por instrumento as comissões técnicas interdisciplinares. Atuavam essas comissões, segundo a arquitetura original da lei, seja pela classificação inicial (com os exames criminológico e de personalidade), seja pelos pareceres intercorrentes que instruíam decisões judiciais e administrativas capitais para o curso do processo. A partir da individualização, deixava a pena de ser um dado estanque ao longo da execução, reclamando-se, ao contrário, que ela se executasse de forma dinâmica, promovendo-se e aquilatando-se, desse modo, a capacidade e a disposição do condenado para interagir com a sociedade. Todavia, a mesma Lei nº 10.729/2003, ao afastar os pareceres intercorrentes das CTCs, esvaziou, por completo, os procedimentos de individualização da pena, resumindo-os pobremente às avaliações disciplinares pessoais do diretor do estabelecimento e nada mais.
Finalmente, permaneceu, ao menos até aqui formalmente intocado, o terceiro e último pilar estruturante desenhado em 1984: a idéia de jurisdicionalização da execução penal. Ela não indica, simplesmente, a presidência da execução por um juiz de Direito. É algo ainda mais importante e complexo. Quando nos definimos pela jurisdicionalização, adotamos a fórmula do processo judicial, com todos os rigores, ônus e garantias que ela comporta. A jurisdicionalização implica a existência indispensável também do Ministério Público e do defensor na execução penal, com a interlocução de todos eles segundo postulados garantistas mínimos como o da ampla defesa e o do contraditório. Ainda mais que isso, ela assegura o princípio publicístico para o mundo da execução penal, estatuindo que a execução da pena não se decide intramuros, nas rotinas burocráticas da Administração Pública, mas na transparência e na regularidade que somente o processo judicial pode assegurar e cumprir. Pensar em legalidade da execução penal à revelia da jurisdicionalização, portanto, seria verdadeiramente pretender o irrealizável, pois é óbvio que a Administração Prisional, com seus compromissos políticos imediatistas e não raramente eleitorais, jamais teria como estar adstrita a um tal programa. Nesse sentido, abrir mão da jurisdicionalização — isto é, abrir mão da definição da execução penal a partir do processo judicial e tudo o que ele implica — significa, em última análise, desistir derradeiramente da própria idéia de legalidade, fazendo a condição jurídica do condenado retornar a um estado grotesco de especial sujeição de poder ao administrador, a quem se elegerá, nesse passe mágico, à condição de um soberano absoluto da sorte e do destino do outro. Certamente nenhum de nós estaria preparado, moral ou intelectualmente, para uma tal aventura principesca, de sorte que não temos nenhuma garantia e sequer indicações que nossos administradores prisionais o possam estar.
Se a jurisdicionalização era o último baluarte ainda formalmente ileso das reformas legislativas, não demoraria muito para que a atacassem. Depois de estremecidas as idéias de individualização e de progressividade, voltam-se os olhos, agora, para privar não os juízes e os processos judiciais da execução penal, mas, bem inversamente, para privar a execução penal dos juízes e dos processos. Setores das administrações prisionais, radicados em certas Secretarias Estaduais do País, investem fortemente contra a jurisdicionalização, propondo ao Ministério da Justiça e mesmo ao Congresso Nacional que progressões de regime e livramentos condicionais sejam decididos apenas administrativamente, com uma cosmética e vazia comunicação ao juiz.
É contra essa estapafúrdia proposta que se levantam as vozes lúcidas da Nação. O IBCCRIM une-se a elas em um manifesto decidido e firme contra esse novo e precipitado ataque. Se as investidas anteriores foram bem-sucedidas, mais pela confusão das idéias que por seu valor mesmo, certamente a fórmula abusiva não poderá se repetir novamente, surpreendendo-se a comunidade jurídica brasileira com o desmonte derradeiro de um edifício que todos tão arduamente erguemos em 1984.
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