Mariângela Gama de Magalhães Gomes
Andréa Cristina D’Angelo, Leopoldo Stefanno Leone Louveira, Mariângela Lopes Neistein, Paulo
O Estatuto do Desarmamento detonou debates inflamados ainda longe de terem sido apaziguados. O diploma encerrava em si duas estratégias político-criminais em princípio colidentes entre si: criou e endureceu tipos penais (merecendo o atributo de frontalista por parte de eminente professor argentino Eugenio Raúl Zaffaroni por ocasião do X Seminário Internacional do IBCCrim), por um lado, e promoveu o desarmamento aliando dois incentivos extrapenais, por outro: a possibilidade de ver-se livre de arma de fogo sem ter que responder por sua origem e uma remuneração como contrapartida da entrega. Com isso, seguindo exemplos modernos e bem sucedidos como o australiano, o governo brasileiro promoveu a compra de instrumentos que solapavam o tecido social das grandes cidades brasileiras. O montante empenhado até o final do ano que vem, estimado, no total, em cerca de cinqüenta milhões de reais — se repetida a experiência australiana — será rapidamente compensada nas economias trazidas aos cofres públicos com a diminuição das armas em circulação, sentidas em gastos hospitalares, redução ou perda de capacidade laborativa, benefícios assistenciais, etc. Segundo dados de Luciana Phebo, do ISER — Instituto de Estudos da Religião —, o Estado gasta cerca de R$ 140 milhões por ano com baleados.
Se, quanto à eficácia da pena, tem-se poucas certezas, o mesmo não se pode dizer do incentivo ao desarmamento voluntário. Pesquisa recentíssima levada a cabo pela Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde e pelo Ministério da Justiça atesta que após sete meses da aprovação do Estatuto do Desarmamento, as internações hospitalares em razão de arma de fogo caíram 7% em São Paulo e 10,5% no Rio de Janeiro, comparados com os sete meses que precediam a aprovação daquele diploma legal. São Paulo e Curitiba também observaram reduções significativas no número de homicídios, passados nove meses da aprovação: 18 e 27% respectivamente. Muito embora não se possa estabelecer uma relação direta entre a causa (desarmamento) e o efeito (redução dos homicídios), os especialistas são unânimes ao afirmarem a influência positiva da diminuição do número de armas em circulação.
Nesse contexto, a aprovação do Referendo que proíbe a comercialização das armas de fogo é imperiosa. A demora na aprovação desse instrumento de consulta popular enfraquece o impacto do Estatuto do Desarmamento, dando fôlego à chamada "bancada da bala". Isso porque é o comércio regular de armas de fogo a maior fonte das armas apreendidas pela Polícia, como demonstra estudo levado à cabo pelo sociólogo Inácio Cano do ISER. Nessa pesquisa, feita a partir das armas acauteladas pela Polícia Civil do Rio de Janeiro, constatou-se que a esmagadora maioria era de calibre permitido e de fabricação nacional, desfazendo o mito das armas traficadas, dos fuzis capazes de derrubar helicópteros (com isso não se diga que eles não existam, porém não compõem o cenário de violência de massa e com a capacidade de extermínio das armas leves de fogo). Concluiu-se, então, que as armas nasciam legais, isto é, eram compradas pelos assim ditos "cidadãos comuns" que eram assaltados ou se viam em situação econômica tal que eram levados a vendê-las. O ciclo de banimento das armas de fogo no território brasileiro depende, em grade medida, da eliminação dessa etapa: o comércio.
De se lamentar, porém, a escolha do referendo como instrumento necessário a balizar essa atitude. A medida reveste-se apenas aparentemente de ares democráticos. A decisão deve ser de caráter técnico, uma vez que o Poder Executivo (proponente do Projeto de Lei) e o Poder Legislativo entenderam, com toda a legitimidade que lhes confere a Constituição, que o fator arma de fogo era prejudicial à segurança pública, à saúde coletiva e ao erário nacional. Mais uma vez quer-se imprimir um caráter simbólico às questões de segurança pública, transformando o assunto em searas acaloradas de debate. É tempo de a Política Criminal tornar-se assunto especializado, encarado como um conjunto de políticas públicas estratégicas como outras tantas aprovadas todos os dias sem serem minimamente menos democráticas. A ninguém ocorre um plebiscito para eleger a taxa Selic; tampouco se cometeria a imprudência de consultar o povo sobre o salário mínimo desejado. Isso não torna nem um nem outra antidemocrática — assim como não o seria a proibição do comércio de armas de fogo no Brasil. Eventuais irregularidades, ilegalidades ou inconstitucionalidades seriam suprimidas — como prevê a Constituição — pelo Poder Judiciário.
O referendo, porém, está previsto no Estatuto do Desarmamento e não há o que se fazer, senão somar esforços para que seja prontamente aprovado e que a proibição de comercialização de armas de fogo no território nacional seja referendada pelo povo brasileiro, fazendo coro as ONGs que atuam nessa área, como o Instituto Sou da Paz, em São Paulo e o Viva Rio, do Rio de Janeiro. Já conhecemos os malefícios de uma sociedade tomada pelas armas de fogo e as benesses trazidas por um breve período de armistício. Fiquemos com as últimas.
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