Mariângela Gama de Magalhães Gomes
Andréa Cristina D’Angelo, Leopoldo Stefanno Leone Louveira, Mariângela Lopes Neistein, Paulo
1. Estudando a estrutura do sistema de controle social, que envolve o surgimento das normas penais e o funcionamento do aparato repressivo do Estado, em todos os níveis, a Criminologia de nosso tempo evidencia as estratégias ideológicas desse sistema, que produz e apresenta uma representação que está muito longe da realidade. Durante muito tempo a Criminologia se ocupou com a tarefa de buscar explicação causal do comportamento delituoso, para prevenir o crime e readaptar socialmente o delinqüente, tarefa na qual falhou por completo, servindo ao sistema sócio-político e econômico dominante, sem questioná-lo. Por outro lado, os juristas se dedicaram à elaboração técnica do ordenamento jurídico, em suposta neutralidade diante da realidade social, contribuindo para a manutenção de uma ordem social profundamente injusta, desigual e opressiva, que se esconde em princípios de garantia, de liberdade e de justiça. Trata-se agora de ir ao fundo dos problemas. Criminólogos e juristas repelem o papel que o sistema lhes atribui. A postura moderna do jurista diante do ordenamento jurídico é essencialmente crítica, cumprindo-lhe denunciar a falsidade da ideologia que o sistema projeta.
2. Ensinam os juristas que o sistema punitivo do Estado visa prevenir a criminalidade, protegendo certos valores essenciais da vida social, sem esquecer nunca as exigências fundamentais de respeito à dignidade da pessoa humana. O processo penal visa realizar a pretensão punitiva em face da ocorrência de um crime, mas visa também garantir o direito de liberdade, protegendo o cidadão contra a ação arbitrária da autoridade e assegurando amplamente ao suspeito e ao acusado o direito de defesa. Os direitos de liberdade são direitos humanos. O processo penal, em conseqüência, é instrumento de defesa de direitos humanos.
3. No Estado Liberal proclamam-se numerosos princípios de garantia sobre a elaboração do sistema punitivo e sobre seu funcionamento. Diz-se que a justiça é independente e imparcial e que se faz em nome do povo, fonte originária de todo poder. Diz-se que todos são iguais perante a lei e que se presume a inocência do acusado, até que os tribunais o declarem culpado. Diz-se que todos têm o direito a um processo justo e eqüitativo e que ninguém pode ser submetido à tortura ou a tratamento cruel, desumano ou degradante. Afirma-se que ninguém pode ser arbitrariamente preso ou detido e também que todos têm direito à defesa efetiva, com todos os recursos a ela inerentes, em igualdade de condições com a acusação. Proclama-se ainda que o regime penitenciário consistirá de tratamento, cuja finalidade essencial será a reforma e a readaptação social dos condenados. Essas afirmações peremptórias constam em geral das leis e aparecem na Declaração Universal dos Direitos do Homem (arts. V, IX, X e XI) e no Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (arts. 10 e 14).
4. Na América Latina, esse belo enunciado de princípios constitui solene mistificação. Caracterizam-se as nações desta parte do mundo por escandalosa distância entre pobres e ricos, e pela desumana pobreza de extensas faixas da população. No Brasil, o censo de 1980 revela que desigualdade social e a concentração de riqueza estão em contínuo processo de crescimento. Há fome e desnutrição, salários aviltados, desemprego e subemprego, enfermidades crônicas, analfabetismo, mortalidade infantil, falta de moradia adequada, exploração por parte dos países industrializados nas relações internacionais, situações de neocolonialismo econômico e cultural. Em muitos de nossos países não há liberdade sindical nem direito de greve. As massas trabalhadoras são oprimidas numa economia de mercado, tendo reduzido poder de pressão, na luta desigual por melhores condições de trabalho. O modelo político-econômico suprime a participação do povo nas decisões políticas e tem acentuado, em nosso continente, a marginalização de extensas faixas da população. A doutrina de segurança nacional, adotada por diversas ditaduras latino-americanas, contribui para acentuar o caráter totalitário dos regimes de força, alimentando o abuso de poder e a violação dos direitos humanos.
5. Denunciamos, em primeiro lugar, a violência que se pratica fora do âmbito do controle jurisdicional. Prisões ilegais, tortura, seqüestros, detenções arbitrárias, desaparecimentos de pessoas e execução sumária de delinqüentes comuns, através de esquadrões da morte. Nestes casos, não há processo penal algum e a atuação dos que têm poder se faz em aberta violação da legalidade formal existente. É evidente que em tais situações os agentes da autoridade praticam crimes, que ficam sempre impunes, como se não fossem eles destinatários válidos das normas penais.
6. Cumpre também denunciar o caráter puramente retórico do princípio segundo o qual a justiça se faz em nome do povo, através de tribunais imparciais e independentes. O mecanismo policial-judiciário faz parte de uma estrutura de poder que visa à manutenção da ordem sociopolítica estabelecida, profundamente opressiva, desigual e injusta. É inegável que as leis, em larga medida, servem aos interesses da classe dominante, como se prova com a absoluta inconsistência do direito penal econômico nesta parte do mundo.
7. A justiça é lenta, burocrática, ritualizada e formal. O corpo judiciário é composto, em boa medida, de verdadeiros empreendedores da moral, que desempenham com fidelidade o papel que o sistema lhes atribui. Juízes e órgãos do Ministério Público, comumente revelam mentalidade conservadora e reacionária, estando aferrados às tecnicalidades do direito e sendo incapazes de visualizar os graves problemas humanos que estão por trás do processo penal. Por outro lado, a justiça é sacralizada através de expressões de profundo e altíssimo respeito, com as quais as partes se dirigem aos tribunais, às pessoas dos juízes e às suas decisões, por mais injustas e arbitrárias que sejam. Isso não tem sentido num regime democrático e republicano em que a justiça é apenas uma função pública, de resto bastante precária, destinada à solução dos conflitos.
8. A igualdade de todos perante a lei é apenas um mito. A justiça toda é desigual. Tem-se afirmado, ironicamente, que as portas da justiça estão abertas para todos, como as dos hotéis de luxo. O Direito Penal, no entanto, é o direito desigual por excelência. A experiência demonstra que as classes sociais mais favorecidas são praticamente imunes ao sistema repressivo, de que se livram pela influência, pelo prestígio, pela corrupção ou pela defesa através de bons advogados. A identificação do criminoso com o marginal decorre do fato de atingir a justiça particularmente os pobres e desfavorecidos, que constituem a clientela do sistema. O mecanismo repressivo do Estado tende a atacar os desviantes das normas sociais que estão mais expostos e sem defesa. A desigualdade da justiça criminal apresenta, na América Latina, aspectos dramáticos.
9. À profunda desigualdade perante a lei está vinculado o caráter ilusório do amplo direito de defesa. Os pobres só são assistidos por advogados na fase judicial e a defesa que estes realizam é puramente formal e ineficaz. Como já se disse, os pobres têm nos tribunais a mesma chance que têm fora deles: eles têm uma esplêndida chance de homens pobres. Pesquisa feita no Rio de Janeiro, em relação aos processos por drogas, veio mostrar os níveis de eficiência com que os pobres se defrontam com a justiça, revelando, de forma eloqüente, resultados incomparavelmente mais favoráveis quando o acusado tinha advogado por ele livremente escolhido.
10. O princípio da igualdade de armas no processo também é ilusório. O acusado, em princípio, está sempre em posição de desvantagem. Na fase policial, a acusação manipula o formidável sistema repressivo que ameaça, constrange e prende, inclusive arbitrariamente. Por outro lado, a desigualdade entre as partes, por vezes, está na própria lei. A anterior lei de segurança nacional brasileira permitia que a acusação apresentasse três testemunhas, ao passo que à defesa dava o direito de apresentar apenas duas. Dispunha também essa lei infame que as testemunhas da acusação estavam obrigadas a comparecer, por intimação do juiz, ao passo que as testemunhas da defesa deveriam ser levadas ao tribunal pelo acusado, reputando-se como desistência o seu não comparecimento. O Supremo Tribunal Federal afirmou que essas regras não eram inconstitucionais.
11. Pode-se dizer, sem medo de errar, que a presunção de inocência simplesmente não existe nesta parte do mundo. Os juízes abusam da prisão cautelar. Não será exagero dizer que o sistema repousa sobre a prisão preventiva, embora não seja este o caso do Brasil. Pesquisa recentemente divulgada veio mostrar que 68,47% dos que estão encarcerados na América Latina estão presos preventivamente. Em certos países, os números são alarmantes: 94,25% dos que estão privados da liberdade no Paraguai estão presos preventivamente. Na Bolívia, a cifra não é menos escandalosa: 89,70%. Os presos preventivamente são submetidos ao mesmo regime dos condenados. Com isso desaparece a diferença essencial entre a prisão cautelar e a que decorre de condenação.
12. Embora as leis digam que tem de ser preservada a dignidade humana dos presos, em nossas prisões as condições de vida são intoleráveis. Aos defeitos comuns em todas as prisões, acrescentam-se, nas nossas, a superlotação, a ociosidade e a promiscuidade. Os presos não têm direitos. A prisão reflete, em ultima análise, condições estruturais da sociedade, que a mantém, como realidade violenta e totalizante e que dela se serve. A prisão também cumpre uma função ideológica importante, como expressão do castigo, no esquema da repressão, formando falsamente a imagem do criminoso. Sabemos hoje muito bem que não é possível, através da prisão, alcançar a ressocialização ou a readaptação social do condenado.
13. É inútil enunciar e proclamar direitos humanos na administração da justiça criminal, no quadro de uma realidade social tão dramática como é a da América Latina. Os direitos humanos só serão observados nos países do Terceiro Mundo quando houver justiça social e sociedades autenticamente democráticas. Esses países têm sido secularmente explorados, sendo cada vez maior a distância que os separa dos países industrializados. É ilusório imaginar que a nova ordem econômica internacional pode ser implementada para mudar o presente estado de coisas.
14. Os direitos humanos estão interligados. Não é possível suprimir os direitos civis e políticos, para realizar os direitos econômicos, sociais e culturais, ao contrário do que têm afirmado os ditadores. Do mesmo modo, só com reformas sociais importantes, que acabem com a miséria e proporcionem melhor nível de vida, será possível estabelecer regimes de liberdade. Os povos do Terceiro Mundo já compreenderam que o crescimento econômico, por si só, não resolve o problema da pobreza, antes o agrava, como o exemplo do Brasil demonstrou tão bem, quando se adota um modelo de desenvolvimento que só beneficia os que possuem. Daí o crescimento da criminalidade, que se procura inutilmente combater endurecendo o sistema repressivo e desrespeitando, cada vez mais, os direitos humanos.
15. Às exigências de liberdade e, sobretudo, de reformas sociais importantes, os ditadores respondem invocando a doutrina de segurança nacional e denunciando o perigo comunista. É uma estratégia que tem sempre dado resultado, permitindo, no plano internacional, o prolongado domínio econômico estrangeiro, e, no plano interno, a perpetuação de uma ordem social profundamente injusta, que continua a gerar a miséria e a pobreza e, ao mesmo tempo, a escandalosa opulência dos ricos.
16. A realização dos direitos humanos na justiça criminal está, pois, em função de um problema essencialmente político. É preciso compreender que aqui está o fundo da questão. Esses direitos só serão observados na justiça criminal de uma sociedade autenticamente democrática, onde se afirme como valor fundamental, verdadeiramente, o respeito à dignidade da pessoa humana, na luta permanente do povo contra a opressão, pela liberdade, pela justiça e pela paz.
Heleno Fragoso
Nota da Diretoria
No mês em que se completam 20 anos do falecimento do saudoso professor Heleno Fragoso, o IBCCRIM, excepcionalmente, publica artigo inédito de sua autoria no lugar do editorial. Trata-se de uma singela homenagem ao Mestre que se tornou referência obrigatória a todos os que trabalham para construir um sistema penal acolhedor dos direitos e garantias ínsitos ao Estado Democrático de Direito — ideal com que esse Instituto comunga e pelo qual tem sempre lutado.
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