INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS

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Boletim - 145 - Dezembro / 2004





 

Coordenador chefe:

Carlos Alberto Pires Mendes

Coordenadores adjuntos:

Andréa Cristina D'Angelo, Fernanda Velloso Teixeira, Leopoldo Stefanno Leone Louveira e Paulo

Conselho Editorial

Editorial

Norma penal em branco – alguns aspectos processuais

Christiano Fragoso

Advogado criminal e professor de Direito Penal na Universidade Cândido Mendes – Ipanema

A norma penal em branco, originalmente reconhecida por Binding, é, desde então, objeto de várias controvérsias. Discute-se se o uso da norma penal em branco feriria o princípio da reserva legal; se o seu complemento tem de constituir lei formal, ou não; e se a admissão de complemento não proveniente do Poder Legislativo constituiria ofensa ao princípio da separação dos poderes. Há controvérsias relacionadas com a extensão do poder regulamentador, bem como com o tratamento do erro quanto à existência e aos pressupostos de fato do complemento. Também é tormentosa a questão da sucessão temporal de complementos da norma penal em branco. É patente, portanto, que as investigações relacionadas com a norma penal em branco se concentram nos aspectos materiais do instituto.

Nota-se pouca preocupação com discussões relativas aos eventuais reflexos processuais penais da adoção de normas penais em branco pelo ordenamento jurídico. Todavia, pode-se perceber, com razoável clareza, notável importância prática de alguns desses reflexos.

Um dos reflexos mais visíveis da norma penal em branco está na conformação da denúncia ou queixa. Como se sabe, o art. 41 do CPP impõe que a peça exordial exponha o fato criminoso com todas as suas circunstâncias, e apresente a classificação do delito. Uma vez que a integração da tipicidade da norma penal em branco depende da existência de complemento, é natural que a denúncia ou queixa, quando se imputar fato previsto em norma penal em branco indique com clareza, (i) qual o ato normativo que constitui o respectivo complemento, bem como que descreva (ii) as circunstâncias factuais que se adeqüem à descrição normativa contida nesse complemento.

Ora, se a existência de tipicidade depende da existência do complemento da norma penal em branco, deve o acusador, seja público, seja privado, indicar o complemento, e descrever as circunstâncias a ele relativas. Se não o fizer, não terá descrito um fato típico, quiçá criminoso, nem indicado corretamente sua classificação jurídica, o que resultará em uma peça exordial inepta, por desatender ao art. 41, do CPP.

A necessidade de que a denúncia indique, com precisão, as circunstâncias relacionadas com o complemento da norma penal em branco já foi expressamente reconhecida em precedente do Superior Tribunal de Justiça. Tal reconhecimento se deu no julgamento do HC nº 14.694/RJ, pela 6ª Turma, sendo relator o min. Hamilton Carvalhido, restando assim redigida a ementa: "Habeas corpus. Crime de violação de direito autoral. Norma penal em branco. Inépcia da denúncia. Ordem concedida. 1. Não se ajustando a denúncia ao seu estatuto de validade (Código de Processo Penal, artigo 41), descrevendo a conduta do imputado, sem a completa circunstancialização do fato criminoso, é de rigor a declaração de sua inépcia, com o conseqüente trancamento da ação penal. 2. Ordem concedida." No caso, o habeas corpus havia sido impetrado sob o argumento de ausência de justa causa para uma ação penal que cuidava de suposta violação de direito autoral, art. 184, § 2º, CP. A questão da inépcia da denúncia foi suscitada no parecer do MPF, nos seguintes termos: "(...) Denúncia. Inépcia. Desmerece transitar pela jurisdição penal a preambular que não se reporta, nem mesmo por implicitação, às circunstâncias hauridas da legislação civil — Lei nº 9.616, de 1998 —, como elementos indispensáveis à caracterização do delito tipificado pelo art. 184, § 2º, Código Penal."

Pode-se asseverar, todavia, sem medo de errar, que a imensa maioria das denúncias e queixas que versam delitos instituídos por normas penais em branco não indica a norma que constitui o complemento, nem traz a indispensável descrição das respectivas circunstâncias factuais. Isto representa flagrante violação à ampla defesa, pois, uma vez que se a imputação não é lavrada em termos minimamente claros, o defensor fica obrigado a um trabalho de adivinhação, para tentar defender eficazmente o cidadão. A indicação do complemento da norma penal em branco e a descrição das circunstâncias a ele relativas constituem providências indispensáveis para possibilitar ao acusado o mínimo exercício da ampla defesa. Se isto não é respeitado, a defesa fica absolutamente impossibilitada de oferecer considerações acerca de tudo que se relacionar com o complemento suscitado ao caso concreto.

Imagine-se que, num determinado processo, impute-se a um indivíduo a conduta de fazer funcionar estabelecimento potencialmente poluidor, "contrariando as normas legais ou regulamentares pertinentes" (o que constitui o crime do art. 60, da Lei nº 9.605/98). Não basta, como sói ocorrer, que a denúncia se reporte ao laudo pericial: a uma, porque, de regra, os peritos não citam o complemento da norma penal em branco; a duas, porque a acusação não pode substituir a lei pela mera palavra dos peritos (não se faz acusação penal com puro argumento de autoridade, divorciado da respectiva demonstração de legalidade), devendo a peça exordial sempre demonstrar a adequação da acusação às normas legais vigentes (mesmo porque o laudo pericial pode ser desconsiderado pelo juiz, art. 182, CPP). É indispensável que a denúncia indique, com clareza, quais são as normas legais ou regulamentares pertinentes e descreva, na exposição fática, de que modo o funcionamento daquele estabelecimento potencialmente poluidor estaria em contrariedade com tais normas. Sem tais providências, a defesa fica indevidamente impedida de conhecer e de discutir questões absolutamente essenciais à caracterização da tipicidade do delito. Nesse exemplo, o defensor cioso de seu munus já se defronta, de início, com uma primeira dificuldade: fica ele na iníqua contingência de buscar descobrir, por meios próprios, qual é o ato normativo que complementa a norma incriminadora, o que já pode ser um trabalho dificílimo, dependendo da espécie de delito (como se sabe, há normas penais em branco espalhadas em todos os meandros do Direito Penal positivo). Na área ambiental (como em muitas outras), o defensor precisaria, evidentemente, de um consultor especializado. Esse trabalho fica ainda mais dificultado pela circunstância de que hoje ainda se admite que o complemento seja editado por um órgão da administração, levando a defesa a ter de se aventurar para entender nossa frequentemente confusa administração pública, cheia de órgãos novos e antigos (criados e rebatizados ao sabor de cada governo, e com competências nem sempre claras), à cata do complemento da norma penal. E isto tudo só porque a acusação sequer indicou, como lhe cabia, qual o complemento da norma penal.

Mas as dificuldades não param por aí: descobrindo a norma que seria o complemento, o defensor, à míngua de clara indicação pelo acusador, deve passar a buscar entender a que circunstâncias específicas a acusação estaria a se referir, no caso concreto. Isto leva a que o defensor passe a realizar um trabalho hercúleo, muitas vezes de impossível consecução, para a devida consideração e refutação de todas as variáveis possíveis (ainda que muito improváveis), colimando a demonstração de que absolutamente nenhuma daquelas circunstâncias constantes do complemento estaria configurada. Isto termina por acarretar gravíssima inversão do ônus da prova, pois, ao invés de a acusação, no nosso exemplo, demonstrar que o estabelecimento violou (e de que modo) tais e quais normas, fica a defesa a buscar demonstrar que toda a atividade da empresa se deu estritamente nos lindes normativos. É uma situação claramente violadora da ampla defesa e da presunção de inocência. Eventual comentário no sentido de que a defesa não precisaria realizar um tal trabalho defensivo, podendo, à vista da imprecisão acusatória, apenas esperar a inexorável absolvição é totalmente desprendido da realidade da administração da Justiça Penal.

O complemento da norma penal em branco deve ser indicado ainda que sua existência e aplicabilidade pareçam óbvias, como seria o caso de crimes relacionados com substâncias entorpecentes. Basta lembrar o caso recente em que o cloreto de etila foi retirado, por alguns dias do mês de dezembro de 2000, do rol dessas substâncias, acarretando verdadeira descriminalização, com inexoráveis efeitos retroativos (cf. Medida cautelar no HC nº 81.136/SP, rel. min. Marco Aurélio, DJ 08.08.2001).

A questão da inépcia da denúncia leva-nos, portanto, a uma outra questão processual relevantíssima: o ônus da prova quanto ao complemento da norma penal em branco. Em primeiro lugar, cabe exclusivamente à acusação o encargo de apresentar prova quanto às circunstâncias que constituem o complemento. Ou seja, no exemplo relacionado com o art. 60 da Lei nº 9.605/98, caberá à acusação demonstrar cabalmente que o acusado faz o estabelecimento funcionar contrariando tais e quais normas legais e regulamentares, e não à defesa demonstrar a regularidade da atividade desse estabelecimento. Não se pode exigir da defesa tal prova.

E mais: se o complemento não provier de lei federal, a acusação também deve oferecer prova quanto à existência, ao teor e à vigência do ato normativo. Ora, se o complemento da norma penal em branco provier de atos administrativos ou de disposições legais estaduais ou municipais (como alguns admitem), é evidente que, nessas circunstâncias, o complemento da norma penal em branco é objeto de prova. E a prova cabe, inequivocamente, à acusação. Seja qual for a fonte material do complemento, também cabe à acusação demonstrar que o complemento da norma penal em branco invocado é anterior à conduta imputada ao acusado; a necessidade de tal anterioridade já foi certeiramente indicada pelo STF, em recurso de habeas corpus interposto pelo prof. Nilo Batista e relatado pelo min. Célio Borja (RHC nº 64.282-9/RJ, 2ª Turma, DJ 05.12.86. Além da existência, do teor e da vigência do ato normativo, a acusação deve comprovar, ainda, que a regulamentação da norma penal em branco efetivamente competia ao órgão que expediu o complemento. Havendo dúvida quanto a alguma dessas circunstâncias, a pretensão punitiva deve ser julgada improcedente.

O fato de o ônus da prova quanto ao complemento e às suas circunstâncias caber exclusivamente à acusação não quer dizer que a defesa não possa formular requerimentos de prova para embasar suas teses de resistência. A defesa pode, sim, formular requerimentos de prova relacionados com aspectos fáticos ou jurídicos do complemento, mesmo porque estar-se-á a discutir a própria tipicidade do delito, o que tem pertinência manifesta com o mérito. Não pode o juiz dizer que, como o ônus seria da acusação, a defesa não pode ou não precisa formular tais requerimentos. A defesa deve ser livre e ampla para impugnar qualquer matéria de tipicidade, que é essencial ao mérito. Havendo dúvida quanto a alguma circunstância fática que constitua o complemento, a prova, tempestivamente requerida, deve ser deferida. Uma perícia, relacionada com circunstâncias presentes no complemento, normalmente terá relação com a própria materialidade e, por isso, jamais pode ser indeferida (cf. art. 184, CPP). Havendo dúvida quanto à existência, ao teor, à vigência ou à aplicabilidade do complemento, pode a defesa requerer, por exemplo, que se oficie a algum órgão.

Por fim, é indispensável que a sentença ou o acórdão indique, com precisão, qual é o complemento da norma penal em branco. O indivíduo tem o direito de conhecer, em sua integralidade, as normas invocadas pelo Estado para impor-lhe uma condenação criminal. Se a sentença não indica o complemento, não se perfaz, na sentença, a demonstração das normas estatais violadas pelo cidadão. O crime, cuja configuração deve restar comprovada na sentença, só existe se houver o complemento. Deve também a sentença referir, à vista das provas carreadas aos autos, a configuração de cada uma das circunstâncias que constituem o complemento. Assim como ocorre relativamente a qualquer tese defensiva, a sentença ou o acórdão deve obrigatoriamente enfrentar qualquer tipo de tese defensiva que possa se referir às circunstâncias fáticas, à existência, ao teor, à vigência ou à aplicabilidade do complemento da norma penal em branco. Na parte em que impõe pena, deve a sentença condenatória sopesar também as circunstâncias relacionadas no complemento (são, afinal, circunstâncias do crime) para a fixação da quantidade de pena. Como se sabe, o cidadão tem não só o direito de saber por que está sendo condenado, mas também de conhecer os motivos da imposição daquela pena, e não outra. Sem todos esses cuidados, a sentença ou o acórdão violará a garantia constitucional de fundamentação dos atos judiciais, especialmente se a decisão for condenatória. Essas exigências também se justificam para possibilitar a impugnação recursal.

Esses são apenas alguns aspectos processuais importantes das normas penais em branco e que, salvo hipóteses excepcionais, têm sido injustamente negligenciados, com graves violações a preceitos constitucionais, o que não pode persistir, para o que devem contribuir todos aqueles que intervêm no processo criminal.

Christiano Fragoso
Advogado criminal e professor de Direito Penal na Universidade Cândido Mendes – Ipanema



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