Carlos Alberto Pires Mendes
Andréa Cristina D'Angelo, Fernanda Velloso Teixeira, Leopoldo Stefanno Leone Louveira e Paulo
No mundo das palavras, há algumas dotadas de carga tão negativa que seu emprego já é suficiente para que se forme, ao seu redor, uma atmosfera de inquietação e, até mesmo, de pavor. Uma delas é a palavra grega klon, que se refere originariamente ao broto de uma planta e, em particular, a uma técnica, empregada em determinadas espécies vegetais, pela qual se obtém, por meio do sistema de galhos, um exemplar que guarda geneticamente identidade com a planta de que proveio. A língua portuguesa construiu, a partir de klon, diversos vocábulos entre os quais se incluem o verbo clonar e os substantivos clonagem e clone. Clonar tem, na atualidade, uma área de significado de maior abrangência e se refere a tudo quanto possa ser realizado pelo processo tecnológico denominado clonagem, isto é, por uma tecnologia idônea a produzir cópias geneticamente idênticas de qualquer organismo. Clone, por sua vez, significa "todos os espécimens, com a mesma constituição hereditária, procedentes de um único indivíduo mediante reprodução assexuada" (Stella Maris Martínez. "Calidad de vida vs derecho a la vida?", em Escritos em Homenagem a Alberto Silva Franco, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 421).
Durante um largo espaço de tempo, a expressão clonagem esteve vinculada "às ações que dão lugar ao nascimento de um ser humano que possui um genoma nuclear idêntico a outro — ou outros — já nascido, vivo ou morto, ou que já foi fruto da mesma ou simultânea gravidez" (Carlos Maria Romeo Casabona. "La clonación humana:presupuestos para una intervención jurídico-penal", em Genética y Derecho, Bilbao: Comares, 2001, p. 154). Cuida-se, aqui, da chamada clonagem reprodutiva idônea, em tese, a selecionar seres humanos, à moda de Huxley, na categoria de seres superiores ou inferiores, ou a produzir seres em série. A clonagem reprodutiva deteriorou o significado nuclear da palavra, que se transformou, aos olhos de todos, num processo de coisificação do ser humano e num gravoso atentado à diversidade genética, considerada como garantia de sobrevivência da própria espécie humana. O repúdio à clonagem reprodutiva constitui uma unanimidade entre cientistas responsáveis.
Tema inteiramente diverso diz respeito à formação de células ou tecidos para transferência a tecidos ou órgãos danificados, como modo de realização da terapia celular e ainda para a montagem de bancos de tecidos. A medicina do futuro tem fundadas esperanças no emprego de técnicas que permitam cultivar tecidos ou, até mesmo — embora a mais largo prazo — órgãos. A questão inicial reside em saber como se obter células-tronco. Fala-se, no atual desenvolvimento tecnológico, em diversas fontes de células-tronco: a) embriões produzidos pelas técnicas de reprodução assistida com a finalidade de obter cultivo de tecidos a partir do blastocisto ou, mesmo, embriões crioconservados e sobrantes em laboratórios destinados à fertilização in vitro; b) células germinais embrionárias procedentes de fetos abortados; c) células-tronco provenientes de tecidos ou órgãos adultos; d) massa celular interna de embriões somáticos, obtidos por técnicas de clonação, mediante transferência de núcleos. Não vem a pêlo, nesta altura, problematizar cada uma dessas fontes produtoras de células-tronco, embora se deva afirmar, com segurança, que apenas as células que têm a qualidade de totipotencialidade — células embrionárias, portanto — possuem a capacidade de produzir qualquer tecido do organismo humano porque ainda dispõem da totalidade da informação genética e não deram início ao processo de diversificação celular.
A questão fundamental reside em saber se os conceitos de começo de vida e da respectiva tutela são automaticamente transferíveis às novas situações criadas pelo desenvolvimento tecnológico, ou melhor, se as mesmas valorações dadas à vida humana em gestação, no ventre de uma mulher, guardam pertinência no tocante à possibilidade de ser o embrião produzido e utilizado como recurso terapêutico, ou de ser empregado, para tal finalidade, o embrião clonado, mediante a transferência de núcleos. Sob este enfoque, duas considerações revelam a inadequação dessa transmigração conceitual. Embora o embrião, produzido para a experimentação ou decorrente de sobra laboratorial, tenha um valor e mereça respeito especial, força é convir que não se trata de um valor absoluto que não possa ser balanceado em relação a outros valores. A investigação com células-tronco embrionárias pode provocar resultados extremamente valiosos na prevenção e no tratamento de enfermidades graves, como a doença de Parkinson, o mal de Alzheimer, a diabetes, o enfarte do miocárdio, a esclerose múltipla, etc. Por outro lado, o embrião clonado resultante de transferência nuclear não é equivalente, do ponto de vista ontológico, ao embrião humano resultante da fusão de um espermatozóide com um óvulo. Não tem cabimento igualá-los. Na transferência nuclear — no caso do embrião somático — o objetivo é totalmente alheio à pretensão reprodutiva. Não tem fundamento, portanto, "equiparar uma criação de laboratório (que é algo absolutamente distinto de uma procriação em laboratório) com o embrião produto da união de óvulo e espermatozóide" (Stella Maris Martinez. op. cit., pp. 442-443).
Todos esses questionamentos vêm a furo diante da proposta legislativa, aprovada na Câmara de Deputados e, agora, em discussão no Senado Federal. O projeto de lei torna inviável a terapia celular e criminaliza condutas que objetivam realizá-la. A comunidade científica brasileira, pela maioria de seus integrantes, tomou posição contra o texto legislativo por entendê-lo na contramão do progresso tecnológico. E lhe assiste razão na medida em que o texto de lei, em debate, significa deter avanços em processamento no Brasil e criar obstáculos intransponíveis para o desenvolvimento científico brasileiro.
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