INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS

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Boletim - 141 - Agosto / 2004





 

Coordenador chefe:

Carlos Alberto Pires Mendes

Coordenadores adjuntos:

Andréa Cristina D'Angelo, Fernanda Velloso Teixeira, Leopoldo Stefanno Leone Louveira e Paulo

Conselho Editorial

Editorial

Súmulas comum, vinculante e impeditiva de recurso

José Barcelos de Souza

Professor titular da Faculdade de Direito da UFMG e da Faculdade de Direito Milton Campos e diretor do Departamento de Direito Processual Penal do Instituto dos Advogados de Minas Gerais

Em geral decisões judiciais não atingem terceiros, estranhos ao processo, nem vinculam o juiz em relação a casos futuros, nem muito menos outros juízes, que não são obrigados a seguir a orientação do tribunal em outros processos. Nem os membros do tribunal, aliás, ficam sujeitos a acompanhar em julgamentos futuros sua própria orientação anterior. Podem mudar o entendimento, visto que, como observou muito bem um jurista, só não muda de opinião quem não pensa. Permanecer no erro é que, sem dúvida, não seria sensato.

Contudo, não obstante a oposição da Ordem dos Advogados do Brasil e de membros da Magistratura mesma, aos quais o Executivo e o Legislativo vêm dando correto e indispensável apoio, setores do Judiciário têm insistido, a propósito da tramitação do projeto de emenda constitucional referente à reforma do Judiciário, na adoção de mecanismo que torne obrigatório para juízes e tribunais certos entendimentos fixados pelo Supremo Tribunal em enunciados denominados súmulas, que se chamariam, por isso mesmo, súmulas vinculantes. Seria uma maneira de tornar mais ágil ou menos morosa a Justiça, diminuindo-lhe o trabalho através de uma espécie de triagem das demandas.

Há, entretanto, outras e muito melhores soluções para a morosidade da Justiça.

Além de outros inconvenientes, há o risco de tornar-se súmula vinculante matéria que careça de melhores estudos. Por exemplo, uma antiga Súmula do Supremo Tribunal, a de número 352, apoiou-se em um único julgado (!), e, além disso, julgado que teve nada menos que quatro votos contrários, o que levou o antigo ministro Aliomar Baleeiro a indagar: "Será, assim, jurisprudência predominante?".

Tem-se objetado que a súmula vinculante engessaria a capacidade criativa do juiz e o aprimoramento do Direito.

Iria, porém, muito além disso. Engessaria, sobretudo, o trabalho do advogado.

Com efeito e como salientou em um de seus escritos o conceituado autor e professor que foi Celso Barbi, quando se fala em jurisprudência eleva-se muito o papel do juiz e se esquece o papel do advogado, que é normalmente quem arranja soluções que o juiz apenas aceita ou não.

E ponderava: "O trabalho criador mesmo, apesar de ser atribuído aos tribunais, na realidade o início da criação, aquele trabalho inventivo de arranjar a fórmula para apresentar ao juiz, é trabalho do advogado. E felizmente é um trabalho que costuma resultar satisfatório, porque encontra receptividade dos juízes, que sempre querem acertar e que, quando encontram uma fórmula feliz trazida por um advogado, encontram aí a oportunidade de realizar a justiça, que a lei, às vezes, por outro meio não permita".

Também o grande jurista uruguaio Eduardo Couture observou que certo juiz, num arroubo de sinceridade, disse que a jurisprudência é feita pelos advogados. Acrescentou o jurista que, realmente, assim é, porque na formação da jurisprudência e, com ela, do Direito o pensamento do juiz é, normalmente, um posterius. O prius correspondente ao pensamento do advogado.

Mas é claro que o trabalho criador do advogado seria irrelevante sem um bom e criterioso juiz que pudesse aproveitar e até melhorar o que de valioso encontrasse nele.

Exemplo disso foi a chamada teoria brasileira do habeas corpus, na avaliação de Castro Nunes, antigo ministro do Supremo, o episódio sem dúvida de maior culminância, o fato de maior significação em toda a nossa vida judiciária. Seu artífice, no Supremo Tribunal Federal, foi o ministro Pedro Lessa, mas inspirado em ninguém mais ninguém menos que Rui Barbosa, que pleiteava a dilatação do âmbito do remédio, argumentando e mostrando que a Constituição o permitia.

Mais recentemente, na década de 60, criou-se, não por lei, mas por construção pretoriana, a liminar nos habeas corpus (ou seja, a concessão provisória da ordem pelo relator, a vigorar até o julgamento do pedido), nas palavras de Tourinho Filho uma das mais belas criações de nossa jurisprudência. Surgiu no Superior Tribunal Militar, onde foi concedida pelo relator almirante José Espínola, em habeas corpus impetrado pelo professor carioca Arnold Wald, vindo logo em seguida a ser adotada também no Supremo Tribunal Federal, em decisão do ministro Gonçalves de Oliveira, que acolheu pedido formulado pelo notável advogado que foi Sobral Pinto, concedendo a medida para impedir a execução de decreto de prisão expedido contra governador processado por crime político, o que ganhou então repercussão e impulso.

De qualquer modo, o que muito importa considerar é que o estabelecimento de súmula vinculante seria desenganadamente inconstitucional, mesmo que imposto por emenda constitucional, visto que esbarraria na cláusula pétrea, por isso mesmo insuscetível de modificação até por aquele meio, inscrito que se acha entre os direitos e garantias individuais, que a lei não excluirá da apreciação judicial qualquer lesão de direito.

É que a conseqüência não seria pura e simplesmente a de não poder o juiz decidir contra a súmula. Precisamente por lhe ser vedado assim agir, haveria de repudiar logo de início uma demanda que, posto fundada na lei, divergisse de súmula. Ter-se-ia, então, um exemplo de impossibilidade jurídica do pedido, inexistente no processo civil desde os tempos do Ato Institucional nº 5, que retirava os atos revolucionários da apreciação judicial.

O pior é que, imaginada a vinculação para súmulas do Supremo Tribunal Federal, o Superior Tribunal de Justiça já a está querendo para as suas. Reivindicação nesse sentido já foi levada ao presidente do Senado. Não demora muito, e o Tribunal Superior do Trabalho também vai querer.

Tem-se falado também, a propósito da emenda constitucional de reforma do Judiciário, na adoção, em lugar daquela, de outro tipo de súmula, denominada impeditiva de recurso, que supostamente seria mais bem aceita.

Essa outra espécie de súmula, porém, seria também perniciosa, já que, como seu próprio nome está dizendo, impediria um recurso que a contrariasse. Desse modo, se o juiz não fica proibido de julgar como entender acertado, por outro lado a parte que perdeu não poderá bater às portas de um tribunal superior no caso de existir súmula contrária a seu alegado direito. Fica, como se vê, restringido seu importante direito de recorrer. No crime isso é mais perverso, porque pode estar em jogo o direito constitucional à ampla defesa, ou o direito à liberdade.

A súmula, em verdade, tende sempre a reinar absoluta, certa ou errada.

É o que, de certo modo, já vem ocorrendo com a súmula comum — uma mera relação numerada, composta de enunciados sucintos da jurisprudência predominante do tribunal —, que até tribunais inferiores já estão editando.

O estagiário, assessor ou juiz, mesmo diante de um seguro e bem fundamentado trabalho do advogado, é por vezes levado, pelo simples argumento de autoridade aliado a uma gratuita desconfiança para com o trabalho do advogado, a optar pela súmula, invocando-a e decidindo com ela, mas decidindo muitas vezes mal, que súmulas nem sempre contêm o melhor direito.

No crime isso é mais perverso. Freqüentemente se tolhe o direito constitucional à defesa ampla.

Nociva será também a súmula impeditiva de recurso porque por meio dela o tribunal superior, ao forçar e impor um determinado entendimento, acaba, no fundo, legislando por via oblíqua.

Isso é antigo na Justiça. O imperador romano, que não era bobo, baixou um edito segundo o qual não se interpretaria lei clara (interpretatio cessat in claris). Foi para evitar que o magistrado, a título de interpretar a lei, legislasse, usurpando-lhe a função.

É o que, aliás, já vem ocorrendo entre nós, porque uma súmula comum, não só do Supremo Tribunal Federal, mas também do Superior Tribunal de Justiça, pode em certos casos surtir o efeito de uma "Súmula impeditiva de recurso", instituição que, sem alarde e um tanto despercebidamente, já entrou, sem aquela denominação, para nossa legislação ordinária.

De fato, lá está numa lei de maio de 1990, sobre os procedimentos naqueles Tribunais, que o relator negará seguimento a pedido ou recurso que, dentre outros casos, contrariar, nas questões predominantemente de direito, súmula do respectivo Tribunal. E assim se reprime um recurso. Intercepta-o legalmente o relator, impedindo-lhe o seguimento. O objetivo da lei foi, sem dúvida, diminuir o número de recursos.

E súmulas têm proliferado ultimamente. No fim de 2003 o Supremo editou, só em matéria criminal, nada menos que trinta e seis súmulas. Vou mencionar duas delas, não só porque legislam contra entendimentos de grandes juízes do próprio Supremo Tribunal Federal, mas também porque, além disso, legislam contra a própria Constituição, limitando o uso do habeas corpus, coisa mais própria de ditadura e de estado de sítio.

Veja-se uma dessas sumulas recentes, a de número 691. Segundo ela, se em um tribunal superior for negada liminar pedida em habeas corpus, não adianta ir pedi-la ao Supremo Tribunal Federal, porque nesse caso ele não deve tomar conhecimento do pedido. Como não há outro meio para se conseguir a liminar, fica tudo por isso mesmo.

Um entendimento desse não deveria ser colocado na súmula, não só porque tira do cidadão o direito de defender sua liberdade individual, mas também porque lá mesmo, naquele Tribunal, há opinião contrária, do preclaro e festejado ministro Marco Aurélio. Principalmente quando se sabe que liminares na imensa maioria das vezes não são concedidas, até mesmo quando pedidas simplesmente para que não se execute logo um acórdão condenatório pleno de nulidades manifestas.

Mencione-se, ainda, um outro caso. Impetrado um habeas corpus ao Supremo Tribunal para cancelar uma condenação em perda de função pública, baseada em dispositivo legal já revogado, o acórdão negou o habeas corpus, ao fundamento de que o meio escolhido para defesa do alegado direito mostrava-se inadequado.

Esse entendimento agora foi para a súmula de número 694. Entretanto, como havia contra ele um notável voto vencido proferido pelo insigne e culto ministro Sepúlveda Pertence (desses votos vencidos que o leitor é levado a exclamar, com admiração, que precisamente ele é que merecia ter sido vencedor), mostrando que o meio utilizado era adequado, fica difícil entender como o acórdão entrou para a súmula.

Vale a pena transcrever pelo menos a confirmação de voto feita pelo ministro Pertence, acórdão publicado na Revista Trimestral de Jurisprudência, v. 41, pp. 159/175. Lembrando que "o Tribunal, em numerosos precedentes, fez do habeas corpus um meio expedito e processualmente econômico para corrigir quaisquer ilegalidades contra o réu no processo penal, doutrina extensiva da qual foi expoente na Casa, em numerosos votos, o saudoso ministro Luiz Gallotti", salientou o ministro que "este caso retrata bem a economicidade desta amplitude, restrita e circunspecta, que a jurisprudência construiu em épocas memoráveis deste Tribunal. O que restará ao paciente, depois de expulso, são as delongas inúteis de uma revisão criminal para forrar-se a uma ilegalidade evidente, sobre a qual estamos todos de acordo".

O projeto de reforma do Judiciário precisa cuidar é da abolição da súmula impeditiva. Porque, se é boa para diminuir os serviços de tribunais, é ruim para o cidadão.

José Barcelos de Souza
Professor titular da Faculdade de Direito da UFMG e da Faculdade de Direito Milton Campos e diretor do Departamento de Direito Processual Penal do Instituto dos Advogados de Minas Gerais



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