INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS

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Boletim - 140 - Julho Esp. / 2004





 

Coordenador chefe:

Carlos Alberto Pires Mendes

Coordenadores adjuntos:

Andréa Cristina D'Angelo, Fernanda Velloso Teixeira, Leopoldo Stefanno Leone Louveira e Paulo

Conselho Editorial

Editorial

A reforma do sistema de penas - antigos e novos desafios 20 anos depois

René Ariel Dotti

Advogado e professor universitário, foi co-redator dos projetos de reforma da Parte Geral do Código Penal e da Lei de Execução Penal

1. Introdução

A melhor forma de comentar o passado e o presente da Reforma Penal e Penitenciária de 1984 certamente será a reconstituição de alguns fatos relevantes no panorama da teoria e da prática das ciências penais. Acredito que o depoimento é mais ilustrativo que o comentário e que a notícia é mais esclarecedora que o debate sobre idéias e eventos.

Com esse método de comunicação será possível, nos limites assinalados para o presente artigo, recompor a atmosfera que, a partir dos anos 60, movimentou amplamente os estudiosos e trabalhadores do Direito Criminal e das ciências afins. Através dele é possível também constatar que a crise aberta em muitos domínios do sistema penal resultou da queda dos conceitos formais. Tal fenômeno foi determinado pelos seguintes fatores: a) a oposição funesta entre o Direito Penal e a Criminologia e outras ciências da conduta; b) a exaustão da dogmática e a categoria dos chamados juristas-penalistas. A exegese da lei até a sua exaustão, o empenho em atomizar conceitos e a distância cada vez mais acentuada do Homem, da vida e do mundo constituíram as barreiras que comprometeram o aprimoramento das instituições penais. Em muitas oportunidades foi denunciado o excesso dos exercícios dogmáticos e se reconheceu abertamente a falta de melhor evolução dos métodos e meios da ciência penal nos últimos decênios.

2. A prisão como rotina penal

Durante os anos 60 surgiram diversos movimentos acadêmicos e científicos visando reduzir as hipóteses da pena privativa de liberdade, elevada à condição de pena total para um imenso número de ilícitos independentemente de sua gravidade.

Não obstante a frustração pelos sucessivos adiamentos da entrada em vigor do CP de 1969 (Decreto-lei nº 1.004, de 21.10.1969) oriundo do Anteprojeto Hungria (1961/1963) — fato que provocou a maior vacatio legis da história legislativa brasileira(1) — uma reordenação ao sistema de penas foi iniciada através do Poder Judiciário de São Paulo, pondo em prática o instituto da prisão-albergue em face dos provimentos nºs XVI/65 e XXV/66, expedidos pelo Conselho Superior da Magistratura em 7 de outubro de 1965 e 14 de novembro de 1966. Foi um passo importante para romper com a omissão e o imobilismo gerados pela inutilidade da Lei nº 3.274, de 2 de outubro de 1957, que dispunha sobre Normas Gerais do Regime Penitenciário e ampliava atribuições da Inspetoria-Geral Penitenciária. Na verdade, aquele diploma(2) limitava-se a reproduzir as regras básicas da ONU (1955) sobre os regimes penitenciários. Tinha natureza e conteúdo meramente programáticos mas não era dotado de eficácia coercitiva. Nada, portanto, alterava ou modificava o quadro vigorante.

3. A incisão cirúrgica no sistema da prisão total

Por muitos anos, desde o advento do CP de 1940, a prisão total funcionou plenamente nos domínios do Código Penal e da Lei das Contravenções Penais. Para um número aproximado de 260 infrações (sem contar as formas qualificadas e de especial diminuição penal), aplicava-se a pena privativa de liberdade, com maior número para a detenção. A conversão da pena de prisão pela sanção pecuniária era admitida em raras oportunidades. Por exemplo: arts. 129, § 5º; 155, § 2º; 170, 171, § 1º; 175, § 2º e 180, § 3º.

Uma incisão cirúrgica foi feita no sistema com a introdução de idéias e propostas que viriam flexibilizar a execução da pena privativa de liberdade. O CP de 1969/1973(3) já previa como variante de execução da pena de prisão a existência do estabelecimento penal aberto no qual cumpririam pena, em regime de semiliberdade, os condenados por tempo inferior a seis anos de reclusão ou oito anos de detenção, que fossem de escassa ou nenhuma periculosidade (art. 38, § 3º). Também se institucionalizou a prisão-albergue para o condenado primário e de nenhuma ou escassa periculosidade (art. 40).

4. A Moção de Nova Friburgo

A Associação Paulista do Ministério Público encaminhou ao ministro da Justiça, Alfredo Buzaid, um anteprojeto de mudança do sistema de penas. O trabalho teve como ponto de partida a Moção de Nova Friburgo, evento promovido para discutir o anteprojeto de Código de Execuções Penais (1970) elaborado por comissão da qual participou, como relator, o professor Benjamin de Moraes Filho.

O documento advertia que “as falhas do nosso sistema penitenciário são devidas, antes de mais nada, ao anacronismo da legislação penal e processual penal, presas, ainda, à idéia de ser a pena de prisão o remédio indispensável ao tratamento do criminoso, de qualquer grau de periculosidade e seja qual for a gravidade do delito praticado, bem como de ser a segregação cautelar o melhor meio para garantir a eficácia da persecução criminal”(4). Partindo de suas conclusões, os procuradores Francisco Papaterra Limongi Neto e Antonio Carlos Penteado de Moraes elaboraram a tese “Sugestões para a reforma do sistema de penas”, aprovada no I Congresso do Ministério Público de São Paulo, em dezembro de 1971(5).

5. A Moção de Goiânia I

Em 1973, comemorando o cinqüentenário da morte de Ruy Barbosa, foi realizado em Goiânia o Seminário de Direito Penal e Criminologia, coordenado pelo professor Licínio Leal Barbosa. Notáveis mestres e profissionais compareceram ao evento aprovando a Moção de Goiânia I, na qual se preconizou: a) a necessidade de considerar o Direito Penal como disciplina de defesa social e da recuperação do delinqüente, objetivando a prevenção de novos delitos; b) a inclusão da Criminologia nos currículos dos cursos de Direito; c) a adoção do regime de prisão aberta através da prisão-albergue para os condenados de escassa ou nenhuma periculosidade; d) ampliação dos institutos do perdão judicial, do sursis, do livramento condicional e de outras medidas substitutivas da prisão(6).

6. O V Congresso Nacional de Direito Penal e Ciências Afins

Com a preocupação de discutir as propostas legislativas emergentes do CP de 1969/1973 e dos projetos de códigos de Processo Penal e de Execuções Penais, a capital paulista acolheu o V Congresso Nacional de Direito Penal e Ciências Afins (1975). Os principais temas foram: a) das penas e sua aplicação; b) das penas e sua execução; c) periculosidade: aferição e conseqüências penais; d) a reforma penitenciária.

Um grande número de participantes aprovou as conclusões que agora são fielmente transcritas para que se tenha a exata compreensão dos problemas da época e dos esforços para enfrentá-los.

“1ª - O grau de periculosidade aferido obrigatoriamente pelo juiz, na sentença, consoante a legislação penal proposta, ainda que possa ser revisto no curso da execução da pena, é de transcendental relevância, pois indicará o tipo de estabelecimento penal a que o sentenciado deverá ser recolhido, ligando-se diretamente, com a oficialização da prisão-albergue, além do sursis em regime de penas. - Tendo em vista os dispositivos da legislação penal brasileira proposta, que estabelece a aferição de periculosidade mediante exame criminológico, deve tal exame ser feito, na medida do possível, por especialistas aptos para definir a capacidade criminológica e o grau de adaptação social do delinqüente. - Deve ser mantida a aplicação da pena por tempo relativamente indeterminado, quanto ao mínimo, e somente às categorias dos criminosos habituais e por tendência. - Reexame parcial do conceito de criminoso habitual, principalmente no que tange à habitualidade presumida que, na forma da legislação penal proposta, constitui uma presunção de culpabilidade. - Reexame do conceito de criminoso por tendência, que deveria ser melhor explicitado. - A pena deve assentar-se no requisito da culpa, de sorte que, ao ser aplicada, surge como retribuição ética da conduta. No curso da execução, porém, deve ser acrescido um sentido de readaptação. - Urgência de uma reforma no sistema de penas. Que se fortaleça a luta que se vem empenhando, no sentido de que a pena de prisão se restrinja a delinqüentes que representam um perigo social, ou aos casos de comprovada necessidade, encontrando-se para os outros tipos de infratores substitutivos penais satisfatórios. - Nos casos de infrações passíveis de penas leves, e, ademais, sendo o agente primário, sem periculosidade e tiver reparado o dano, é de conveniência possa o juiz encerrar o processo após a instrução, reconhecendo a perempção. - Independentemente da vigência do novo Código Penal, adoção em todos os Estados do Brasil do regime de 'prisão-albergue', quer através de lei estadual, quer através de provimentos dos órgãos competentes das magistraturas estaduais, pois, a concessão do trabalho externo em obras públicas ou entidades privadas, nada mais é do que a execução da pena através de laborterapia. 10ª - Na parte geral da legislação repressiva proposta devem figurar dispositivos regulamentando a possibilidade de perdão judicial, considerando-o causa de extinção da periculosidade, subordinado a determinadas condições subjetivas e objetivas. 11ª - A legislação penal proposta deverá admitir, como já o faz o vigente Código Penal Militar, a renovação do sursis quando a infração anterior não revelar má índole do agente. Ficaria assim redigido um dispositivo: 'A execução de pena privativa de liberdade, não superior a dois anos, pode ser suspensa por dois a seis anos, se o condenado não tiver sofrido condenação anterior por infração penal reveladora de má índole, for de escassa ou nenhuma periculosidade e tiver demonstrado o sincero desejo de reparar o dano'. 12ª - Aquele que comete novo crime cinco anos após a extinção ou cumprimento da pena por crime anterior tem direito a postular o sursis, graças à prescrição da reincidência em todos os seus efeitos. 13ª - Necessidade de um Código de Execuções Penais dirigindo e orientando toda a política penitenciária do País, objetivando-se que não fiquem à mercê de deficiências da Administração, aqueles que estão privados de liberdade (reservado, é claro, aos Estados, o direito de elaborar normas supletivas). 14ª - Reformulação do sistema de execução das penas, modernizando o ultrapassado regime penitenciário brasileiro, como fundamento na realidade do País e nas necessidades do momento, atinando-se para os novos conceitos de execução penal no mundo moderno. 15ª - A execução da pena deve ser feita sob um sistema interacionista, dinâmico e que garanta maiores poderes ao juiz na individualização concreta da pena, com efetiva fiscalização jurisdicional e que proteja todos os direitos da pessoa humana não atingidos pela sanção. 16ª - A duração da pena pode ser reduzida na fase de execução por força da prevenção especial, corrigindo-se os erros de valorização do grau de desadaptação do condenado, não ficando o juízo da execução adstrito ao grau mínimo. 17ª - No atual momento histórico brasileiro, devem ser eliminadas as expressões 'reclusão', 'detenção' e 'prisão simples', substituídas pela expressão 'prisão'. 18ª - É conveniente a substituição das expressões 'velho', 'enfermiço' ou 'enfermo' e 'criança' contidas na legislação penal proposta, pela fórmula genérica: crime cometido contra quem tenha sua capacidade de defesa de qualquer forma reduzida. 19ª - O traficante de entorpecentes deve ser punido com maior severidade, levando-se em conta a nocividade da droga e a extensão do tráfico”(7).

7. A CPI do Sistema Penitenciário

Nos anos de 1975 e 1976, no âmbito da Câmara dos Deputados, foi instaurada a Comissão Parlamentar de Inquérito destinada a proceder ao levantamento da situação carcerária nacional. Colheram-se depoimentos e informações da maior importância. As conclusões do relatório, elaboradas com sensibilidade e precisão pelo deputado Ibrahim Abi-Ackel, foram as mais pessimistas frente às gravíssimas violações de direitos humanos dos presidiários, em desobediência às regras da Lei nº 3.274, de 2 de outubro de 1957, e da norma constitucional, impondo a todas as autoridades o respeito à integridade física e moral do detento e do presidiário (art. 153, § 14).

A promiscuidade entre presos primários e reincidentes, perigosos e não perigosos; a inexistência de classificação dos condenados visando a individualização executiva da pena; a superlotação carcerária e a ausência de exame criminológico. Em suma, o Relatório desvenda as mazelas do sistema e dos presídios, muito apropriadamente chamados pelo deputado-relator de “sementeiras da reincidência”(8).

8. A Lei nº 6.416, de 24 de maio de 1977

Foram da maior importância as alterações introduzidas no sistema das penas e medidas de segurança em face da Lei nº 6.417/77, cujo projeto foi elaborado por uma comissão coordenada pelo professor Francisco de Assis Toledo. Já se indicavam, naquele texto, algumas linhas da Reforma Penal e Penitenciária que o mesmo e saudoso mestre iria orientar poucos anos depois, por ocasião dos anteprojetos das Leis nºs 7.209 e 7.210/84, elaborados e publicados em 1981.

Embora mantendo integralmente o art. 29 do CP de 1940, declarando que a pena de reclusão e a de detenção “devem ser cumpridas em penitenciária, ou, à falta, em seção especial de prisão comum”, a Lei n° 6.416/77 inovou no campo da execução. O § 2° do referido dispositivo previa em favor das mulheres condenadas “o benefício do trabalho externo”.

O art. 30 teve o seu caput ampliado, dispondo que o período inicial, do cumprimento da pena privativa de liberdade, “consiste na observação do recluso, sujeito ou não ao isolamento celular, por tempo não superior a 3 (três) meses, com atividades que permitam completar o conhecimento de sua personalidade”. Além disso, houve flexibilização no processo executório com a instituição dos regimes fechado, semi-aberto e aberto.

Não obstante os grandes avanços determinados pela Lei n° 6.416/77, que revelou grandes preocupações com a individualização executiva da pena e a dignidade pessoal do condenado, não foi ela cumprida pelos sistemas penitenciários brasileiros de um modo geral. E o problema resultou, basicamente, da orientação em se deferir à legislação local ou, à sua falta, aos “provimentos do Conselho Superior da Magistratura ou órgão equivalente” a regulamentação de aspectos fundamentais à boa execução penal, como os tipos de regimes, com suas transferências e retornos; a prisão-albergue; o cumprimento da pena em prisão da comarca da condenação ou da residência do condenado; o trabalho externo; a freqüência a cursos profissionalizantes, bem como de segundo grau ou superior fora do estabelecimento, e as licenças periódicas para visitar a família, freqüentar a igreja e participar de atividades que pudessem concorrer para a emenda e reintegração no convívio social.

9. A nova Parte Geral do Código Penal

Pode-se afirmar que a nova Parte Geral do Código Penal, nos campos reservados às penas e às medidas de segurança, teve a orientá-la determinadas coordenadas que podem ser assim resumidas:

A. O princípio da intervenção mínima

Já nos trabalhos de revisão da Parte Especial do Código Penal, iniciados em 1983, se destacava a preocupação em reduzir a intervenção penal do Estado aos casos de extrema necessidade. Os desvios da política legiferante vem se acentuando ao longo dos anos com a hipercriminalização. O princípio da intervenção mínima traduz a idéia justamente expressa por Maihofer, de um Direito Penal como ultima ratio da política social, verdadeira exigência ética para o legislador a funcionar num duplo sentido: quanto aos fatos a punir e quanto às penas a aplicar(9).

Pode-se afirmar que com a introdução das penas restritivas de direitos a Lei nº 7.209/84 acolheu o generoso princípio para admitir a perda de liberdade somente em casos de maior gravidade objetiva e da maior culpabilidade do agente.

B. As alternativas à prisão

Dominou o espírito da Reforma a idéia de reduzir, ao máximo possível, o encarceramento. Essa orientação vinha sendo defendida nos mais variados e distantes foros de especialistas em Direito e Processo Penal desde o início dos anos 60. Em texto publicado logo após a entrada em vigor da nova Parte Geral, eu dizia que “a massificação do procedimento de execução das penas privativas de liberdade, a ineficácia da pena de multa — não obstante a sua recente e já desatualizada correção(10) — bem a insegurança decorrente do funcionamento das chamadas penas acessórias,mostram que o sistema punitivo brasileiro se confina na perda da liberdade. A prisão é o monocordo imposto para executar a grande sinfonia do bem e do mal. Em conseqüência de tal fenômeno, os problemas sociais e culturais que se vertem no crime e na conduta do agente estão imersos na desgraça e na maldição”(11).

C. A culpabilidade como fundamento e limite da pena

A culpa deve ser, sempre, o fundamento e o limite para justificar a pena tanto nos momentos de cominação e aplicação, como também na fase de execução. Daí a eliminação do sistema do duplo binário, ou seja, da execução sucessiva da pena e da medida de segurança, pelo sistema vicariante. Tal mudança, profunda e indispensável, estabelece que a pena tem como pressuposto a culpabilidade; a medida de segurança tem como base a periculosidade.

D. A individualização da pena

A garantia constitucional da individualização da pena foi ampliada com a Reforma de 1984 para prever que a culpabilidade é o primeiro indicador para a pena-base. E, inovando quanto à redação original do CP, o art. 59 prevê a necessidade do juiz examinar o comportamento da vítima como fator de flutuação — para mais ou para menos — da medida penal. Também foi da maior importância a fixação do princípio da proporcionalidade através da fórmula da necessidade e suficiência para a reprovação e prevenção do crime.

E. Os novos limites da pena de multa

O resgate histórico da pena de multa em dias, assim como previa o Código Criminal do Império (art. 55), é mantido pelo Código de 1890 e pela Consolidação das Leis Penais (1932). O critério foi abandonado pelo Código de 1940, produzindo a maior vaga de impunidade quanto à sanção patrimonial.

Com o sistema fixado pela Reforma liberou-se o magistrado das quantidades tarifadas de resposta quanto à multa, podendo realizar uma individualização mais adequada ao condenado e aos interesses sociais.

F. A pena como processo de diálogo

Em síntese muito expressiva, Calliess demonstra que tanto o Direito Penal como o direito positivo em geral constituem a estrutura dialogal de sistemas sociais e, por via de conseqüência, a pena deve ser concebida como um processo de diálogo entre o Estado e a comunidade(12). Partindo dessa equação, entendo que esse processo de diálogo deve ser estabelecido entre o condenado e a sociedade com a moderação do Estado. Em outras palavras: é necessária a abertura dos cárceres à comunidade.

Essa dimensão do problema leva à conclusão de que a pena cumpre importante função social quando oferece alternativas ao comportamento criminal através da criação de possibilidades de participação como um processo de integração permanente entre o delinqüente e a comunidade. Em tal sentido, Mir Puig adverte que o condenado não pode ser tratado como puro objeto de um processo coercitivo do Estado, mas como verdadeiro sujeito de um processo de regulação e aprendizagem que deve tender não só à adaptação das normas dominantes como também a elaborar alternativas para o comportamento delituoso e, com elas, a participação nas relações sociais(13).

As penas restritivas de direitos, introduzidas com a Lei nº 7.209/84 e ampliadas com a Lei nº 9.714/98, são instrumentos adequados para realizar uma Política Criminal que responde satisfatoriamente aos interesses do magistério punitivo, e não têm o caráter aflitivo e descriminatório das sanções de feição clássica.

10. A experiência dos anos

Passados 20 anos da promulgação das leis de reforma, é possível chegar-se a duas conclusões: a) as deformações de uma legislação de pânico não conseguiram descaracterizar o sentido humanitário e social do novo sistema de penas, apesar das mazelas administrativas de execução; b) as penas alternativas e, em especial, a pena de serviços comunitários, constituem uma revolução copérnica nos usos e costumes do penitenciarismo clássico.

A maldição, o tormento, a execração e o abandono constituem os pontos cardeais para a viagem em que as penas de feição clássica transportam o corpo e o espírito do condenado. A morte, as mutilações, a prisão perpétua e outras modalidades de reações brutais se alternaram no curso da história da humanidade e do Direito Penal, como expressões da divindade ofendida, da vingança individual ou coletiva, ou como instrumento de segurança e paz.

As penas cruéis e infamantes geralmente são impostas em nome da exemplaridade; portanto assumem um caráter generalizador e atentam contra o princípio da individualização, que é um desdobramento lógico do direito natural ao propor a máxima suum cuique tribuere.

Nos tempos modernos, a função da pena em um Estado Democrático de Direito, assim como está proclamado no primeiro artigo da Constituição, deve atender às exigências de proteção de todos os membros da sociedade. É preciso evitar que a perda da liberdade se transforme em expressão contemporânea das antigas penas de expulsão da comunidade, a exemplo da perda da paz, quando o ofensor era banido da comunhão social. Ele era o ex lege, o utlah do direito saxônico, o exul et profugus da lei sálica. Em outras palavras: a pena não pode se converter em instrumento de supressão dos direitos e dos deveres inerentes à cidadania.

As penas alternativas tiveram um grande avanço em nosso sistema através da Lei nº 7.209/84. A Exposição de Motivos ao Projeto de lei nº 1.656/83, do qual resultou a nova Parte Geral do CP, contém passagens de rigorosa atualidade(14).

A Constituição de 1988 apresentou duas novas vertentes que deságuam na orientação doutrinária e jurisprudencial que defende a aplicação das penas alternativas: trata-se da obrigação de motivar as decisões judiciais, e da prestação social alternativa. Uma dirigida ao juiz; outra ao condenado. Ambas libertas dos males e dos preconceitos típicos das sanções tormentosas e infamantes. Com efeito, em nenhuma Carta Política anterior, as hipóteses de reação penal e as molduras de segurança individuais e coletivas apresentam-se com as fórmulas claras e impositivas como agora se verifica.

Mas para a eficácia e prestígio dessas formas alternativas da prisão é indispensável que o cotidiano da magistratura as adote como providências idôneas para combater uma vasta gama de ilicitudes, viabilizando o aspecto pedagógico da resposta penal sem perder de vista os objetivos de prevenção e retribuição que devem ser inerentes a todas as penas criminais.

É forçoso reconhecer que o tema das penas alternativas é uma dessas terras não cultivadas pelos trabalhadores do Direito, apesar de sua notável importância como instrumento adequado para responder à multiplicidade de infrações previstas no Código Penal e nas leis especiais, além de não padecer dos quatro vícios cardeais já aludidos (maldição, tormento, execração e abandono).

Notas

(1) O CP de 1969 deveria entrar em vigor em 1º.01.1970, o que não ocorreu em face das leis de adiamento (nº 5.573, de 1º.12.1969; nº 5.597, de 31.7.1970; nº 5.749, de 1º.12.1971; nº 5.857, de 7.12.1972 e nº 6.063, de 27.6.1974). Finalmente, a Lei nº 6.578, de 11.10.1978, revogou o Decreto-lei nº 1.004/69.

(2) Expressamente revogado pela Lei nº 7.210/85, art. 204.

(3) Código Penal de 1969 com as alterações determinadas pela Lei nº 6.016, de 31.12.1973.

(4) A Moção foi publicada na RT, v. 425, p. 407.

(5) Em Reforma do Sistema de Penas, São Paulo, 1972, pp. 37 e segs.

(6) Em Ciência Penal, Rio de Janeiro: Forense, nº 1 de 1982, pp. 9/11.

(7) Em Revista de Direito Penal, direção de Heleno Cláudio Fragoso, secretaria de Nilo Batista, São Paulo: edição RT, nº 17/18, jan.-jun. 1975, pp. 131/133.

(8) O relatório e as conclusões da CPI do Sistema Penitenciário foram publicados no Diário do Congresso Nacional, suplemento ao nº 61, de 4.6.1976, pp. 5 e segs.

(9) Referido por Anabela Miranda Rodrigues, A Posição Jurídica do Recluso na Execução da Pena Privativa de Liberdade, Coimbra, 1982, p. 17.

(10) A Lei nº 6.416/77 reajustou os valores de multa constantes do CP, do CPP e na Lei de Contravenções Penais, na proporção de 1:2.000 (um por dois mil) (art. 4º).

(11) René Ariel Dotti. “O novo sistema de penas”, em Reforma Penal, São Paulo: Saraiva, 1985, p. 87.

(12) Cf. Santiago Mir Puig, Introducción a las Bases del Derecho Penal, Barcelona, 1976, p. 86.

(13) Introducción, cit., pp. 85/86.

(14) Vide, a propósito, os itens nºs 26 a 28.

René Ariel Dotti
Advogado e professor universitário, foi co-redator dos projetos de reforma da Parte Geral do Código Penal e da Lei de Execução Penal



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