INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS

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Boletim - 139 - Junho / 2004





 

Coordenador chefe:

Celso Eduardo Faria Coracini

Coordenadores adjuntos:

Carlos Alberto Pires Mendes, Fernanda Emy Matsuda, Fernanda Velloso Teixeira e Luis Fernando

Conselho Editorial

Editorial

Investigação criminal e tortura

Renato Barão Varalda

“Cada Estado-parte assegurará que suas autoridades competentes procederão imediatamente a uma investigação imparcial, sempre que houver motivos razoáveis para crer que um ato de tortura tenha sido cometido em qualquer território sob sua jurisdição.”
[sem negrito no original]
Artigo 12 da Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanas ou Degradantes

Em que pese a existência de normas internacionais e nacionais (constitucionais e infraconstitucionais)(1) resguardando incondicionalmente a integridade física e psíquica dos presos, denota-se, no Brasil, uma realidade muito distante do ideal estatuído nas legislações retromencionadas e, como demonstração do total desrespeito aos valores fundamentais dos presos, há inúmeros relatórios nacionais e internacionais(2).

O SOS Tortura, organização não-governamental, ligado à Secretaria Especial de Direitos Humanos do Ministério da Justiça, recebeu 2.046 denúncias de torturas, entre novembro de 2002 e julho de 2003. Desse total, 78% teriam sido cometidas por agentes do Estado; motivo: 23% para obter confissão, 37% foram praticadas como forma de castigo em casas penais; local: 31% ocorreram em delegacias, 19% em casas penais; agentes: 33% são policiais militares, 30% policiais civis.

Ressalte-se também que o Governo do Brasil convidou o relator especial (diante de sua solicitação), em novembro de 1998, a fazer um levantamento no País (visita realizada de 20.8.00 a 12.9.00), visando melhor avaliar a situação da prática de tortura, com a conseqüente recomendação final de erradicar o referido crime e outras formas de maus-tratos a presos. O Relatório da ONU foi divulgado oficialmente no dia 11 de abril de 2001, durante a plenária da 57ª Sessão da Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas, descrevendo 348 notícias de crimes de tortura no Brasil, concluindo que, embora o Brasil tenha uma boa legislação que proíba maus-tratos a presos, não a cumpre na prática. Nigel Rodley relata ainda que os presos, vítimas de tortura, são na maioria das vezes pessoas das camadas mais baixas da sociedade e/ou de descendência africana, ou que pertencem a grupos minoritários(3).

Por outro lado, é levado a conhecimento do Poder Judiciário e do Ministério Público um número reduzido de notitia criminis da prática de tortura. Diante disso, o controle dos fatos criminosos permanece, quase que inteiramente, sob a discricionariedade da autoridade policial (cuja parcela de poder, sem o necessário controle pelo Parquet, possibilita irregularidades e corrupção na função policial), já que o Ministério Público tem se mostrado tímido, na sua atribuição de controle externo da atividade policial, por diversas razões a seguir apontadas.

A propósito, em que pese ter o Ministério Público a titularidade da ação penal e, ainda, servir a investigação criminal unicamente para colher elementos para a formação da opinio delicti e interposição da denúncia pelo Parquet, o controle externo resta inviabilizado diante das barreiras burocráticas, operacionais e políticas da Polícia, a impedir o referido controle, sobretudo pela ingerência do Executivo na mesma (viabilizando a ocorrência, diante de vínculos político-partidários, de perseguições e falhas intencionais na investigação criminal) e pela resistência ideológica da Polícia, que encontra apoio em alguns posicionamentos do Poder Judiciário, os quais não reconhecem como atribuição do Ministério Público a promoção direta das investigações de infrações penais.

Por outro lado, na investigação criminal, a prova testemunhal é de extrema importância, pois por intermédio dela pode-se alcançar a verdade material. Insta ressaltar que muitos crimes de tortura não deixam vestígio, dificultando a prova da materialidade para a condenação dos responsáveis. Entretanto, o medo das vítimas e testemunhas de se exporem é muito grande, haja vista a previsibilidade de represálias pelos policiais militares e civis que passariam de investigadores a investigados.

A oitiva dos ofendidos e das testemunhas é imprescindível desde que a segurança dos mesmos seja efetivamente preservada. Contudo, a incapacidade do Estado em garantir aos indivíduos o exercício do dever legal de contribuir com a Justiça para o esclarecimento do crime, transformam-nos em agentes vulneráveis, na medida em que trazem ao Ministério Público a notitia criminis e negam-na no Poder Judiciário, ou simplesmente não a levam a lugar nenhum (instaura-se a lei do silêncio, diante do trauma de sofrer agressões justamente pelos responsáveis pela preservação da integridade física e mental da população), ou simplesmente mudam de residência, sem comunicação ao Parquet e ao Juízo.

Constata-se que nos inquéritos policiais os nomes e endereços das vítimas e testemunhas são incluídos nos termos de declaração, permitindo o acesso aos suspeitos ou indiciados da prática delitiva, ou aos seus patronos. Isso contribui para a dificuldade da coleta de informações e testemunhos acerca das torturas, diante do receio de represálias, sobretudo pela ausência de uma proteção efetiva por parte do Estado às vítimas e testemunhas delatoras. Ao contrário dos órgãos policiais, o Ministério Público traz segurança às vítimas e testemunhas, as quais desejam relatar crimes praticados por agentes do Estado. É que utiliza por analogia o artigo 20 do Código de Processo Penal, diante do incontestável interesse social de se verem resguardados os dados pessoais dos ofendidos para evitar possíveis retaliações pelos investigados.

Ressalte-se, também, que a impunidade pode revelar-se um processo de escolha discriminatório, já que é possível existir atitudes patrocinadas e dirigidas por interesses escusos no sentido de conduzir a investigação criminal efetuada pela Polícia para o vazio probatório e, conseqüentemente, à impunidade. Os agentes de polícia podem apresentar falsos argumentos para justificar a não localização de testemunhas essenciais à apuração; não procurar outros meios de efetuar o reconhecimento dos agressores (reconhecimento fotográfico, por exemplo), em face do receio do ofendido em comparecer à delegacia para a realização do reconhecimento pessoal, e adotar a chamada “operação tartaruga”, sem cumprimento de diligências, através de idas e vindas do inquérito dos fóruns para as delegacias.

Sobre o “descaso” da autoridade policial em apurar efetivamente o crime de tortura, pode-se citar o inquérito nº 7/2000 da Corregedoria de Polícia Civil do Distrito Federal (autos nº 2000.01.1.015011-5), onde consta, às folhas 66, despacho do Ministério Público nos seguintes termos: “Observa-se que durante todos esses meses essa digna corregedora-geral de Polícia não conseguiu ouvir nem mesmo as autoridades policiais que estão sob sua subordinação, fato que diminui e ofende a autoridade dessa Corregedoria”. Às folhas 101, novo despacho do Parquet, que remete o inquérito ao Núcleo de Investigação Criminal e Controle Externo da Atividade Policial (NICCEAP) do Ministério Público do Distrito Federal, “tendo em vista que a autoridade policial relatou os presentes autos, declarando estarem concluídas as investigações e, tendo em vista, ainda, que há outras diligências a serem efetivadas, conforme despacho da própria autoridade policial”. Trata-se do caso de F. A.S.B., conduzido à 11ª Delegacia de Polícia do Distrito Federal, no dia 13 de janeiro de 2000, por volta das 23h30min, onde fora submetido a constrangimento físico e mental, por parte de policiais civis, com o objetivo de fazê-lo confessar a autoria de um crime contra o patrimônio.

Uma das conseqüências da delonga na apuração dos fatos pela autoridade policial é a prescrição da pretensão punitiva, isto é, o transcurso do tempo fixado pela lei acarreta a perda do poder de punir do Estado. Desse modo, os inquéritos realizados pela Polícia referentes à apuração de crimes praticados por autoridades policiais podem revelar-se extremamente demorados, diante da possibilidade de resistência da polícia judiciária em investigar o comportamento dos próprios colegas.

Ademais, outra razão da impunidade do crime de tortura está na precariedade dos institutos de criminalística na obtenção da prova, sobrando à Polícia Judiciária “desdobrar-se” para conseguir a confissão. Disso, reduz-se à “confissão” a principal prova.

A vinculação direta dos órgãos responsáveis pela realização da perícia técnica ao Poder Executivo pode dificultar a obtenção das provas, sobretudo quando as práticas delitivas envolverem altas autoridades. Foi constatado pelo relator especial da ONU Nigel Rodley que os delegados de Polícia ou os policiais que acompanham uma vítima de tortura ao Instituto Médico Legal (IML) muitas vezes ditam ao médico legista o conteúdo do laudo. Ademais, muitos dos detentos que o referido relator especial entrevistou informaram que, por medo de represálias, quando examinados em um IML, não se queixavam dos maus-tratos a que haviam sido submetidos e, muitas vezes, queixaram-se de ter sido levados ao IML por seus próprios torturadores e de ter sido intimidados e ameaçados durante o traslado. Assim, a vinculação do Instituto de Criminalística, do Instituto de Medicina Legal e do Instituto de Identificação à Secretaria de Segurança Pública (órgão da administração superior, diretamente subordinado ao Poder Executivo) impede o acesso direto e imediato das vítimas aos referidos órgãos no momento subseqüente às agressões sofridas, diante da exigência que se faz de que as mesmas sejam encaminhadas pelas autoridades competentes. Realmente a ausência de independência dos Institutos retromencionados permanecerá não inspirando total confiança em suas constatações, isto é, a “imparcialidade” dos laudos continuará com credibilidade duvidosa enquanto os servidores públicos estiverem subordinados ao Poder Executivo e não ao Ministério Público ou ao Judiciário.

A propósito, inúmeras vítimas demonstraram no NICCEAP receio de colaborar com as investigações, haja vista as ameaças de represálias perpetradas pelos supostos autores, seja imputando a prática de falsos crimes aos ofendidos para desacreditar suas declarações de maus-tratos sofridos (como, por exemplo, “plantando” substâncias entorpecentes nas residências, veículos ou vestimentas das mesmas), seja perpetuando nas ofensas à integridade física e psíquica, à inviolabilidade do domicílio e à liberdade de locomoção.

Por outro lado, os altos índices de violência levaram o Estado a adotar uma política criminal simbólica (com a aprovação de leis repressivas) e a tolerar o desrespeito aos direitos fundamentais do “delinqüente”, excluído socialmente (oriundo das camadas mais pobres da população). A tortura ainda é aceita pacificamente por parte dos servidores públicos como “método de investigação” (para obtenção da confissão) e “forma de castigo”, e pela sociedade como meio implacável de combate à criminalidade.

O NICCEAP, em levantamento realizado em maio de 2001, apurava 276 procedimentos relativos a notícias de maus-tratos (incluindo tortura, abuso de autoridade, lesão corporal e homicídio) perpetrados por servidores da Polícia Civil e Militar do Distrito Federal, em total descompasso quantitativo de investigação com a Corregedoria de Polícia Civil, que apurava apenas três casos de crime de tortura(4). Por sua vez, em levantamento realizado no Ministério Público do Distrito Federal, referente ao período de 8.4.97 a 18.6.01, constatou-se que o NICCEAP intentou 11 denúncias (oriundas de investigação criminal direta pelo Parquet), referentes ao crime de tortura, perante o Poder Judiciário a partir da entrada em vigor da Lei nº 9.455/97. Por sua vez, as demais promotorias criminais do Ministério Público do Distrito Federal ajuizaram 8 peças acusatórias (oriundas de investigação criminal realizada pela Polícia Judiciária), referente ao crime de tortura, perante o Poder Judiciário, a partir da entrada em vigor da Lei nº 9.455/97.

Ficou, assim, comprovada a imprescindibilidade da investigação criminal pelo Ministério Público do Distrito Federal, o qual interpôs 19 (dezenove) denúncias acerca de crimes de tortura, dentre as quais 11 (onze) delas oriundas de investigação do próprio Parquet, ou seja, 57,89%.

Considerando a imprescindibilidade de uma investigação caracterizada pela independência e imparcialidade, características intrínsecas do Ministério Público, e diante das normas nacionais prescrevendo a constitucionalidade e legalidade dessas atribuições ministeriais, bem como das regras internacionais asseverando a imprescindibilidade de investigação imparcial, há necessidade de superação da resistência ideológica da Polícia, que encontra apoio em alguns posicionamentos do Poder Judiciário, os quais não reconhecem como atribuição do Ministério Público a promoção direta das investigações de infrações penais.

Notas

(1) Cf. Declaração Universal dos Direitos Humanos; Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura; Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanas e Degradantes (ONU); Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos; Convenção Americana sobre Direitos Humanos (“Pacto de San José da Costa Rica”); Convenção sobre os Direitos da Criança; artigo 5º, incisos III, XLIII, XLVI (alínea “e”) e XLIX, da Constituição Federal Brasileira de 1988; Lei Federal nº 7.210 — Lei de Execução Penal (artigos 40, 41 e 45); Lei Federal nº 9.455/97, que disciplina a tortura, caracterizando-a como delito autônomo; artigo 2º da Carta de Cartagena, que estabelece conceito de tortura, e Declaração de Tóquio, aprovada pela Assembléia Geral da Associação Médica Mundial, em 10 de outubro de 1975, em que também define o citado tipo penal.
(2) Cf. Primeiro Relatório do Brasil relativo à implementação da Convenção Contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas, Cruéis, Desumanos ou Degradantes no Brasil; Relatório sobre a tortura no Brasil produzido pelo relator especial Nigel Rodley da Comissão de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas em 2000; Estudo da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados; Relatório da II Caravana Nacional de Direitos Humanos da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados — sistema prisional brasileiro (set. 2000); Relatório Anual da Justiça Global — Relatório da Justiça Global de 2002 — Relatório da Justiça Global: Execuções Sumárias no Brasil 1997/2003 —Direitos Humanos no Brasil, 2000; Informe Anual — 2000 — da Anistia Internacional; Relatório Global sobre a situação dos Direitos Humanos no mundo 2000; Relatório da Human Rights Watch e Relatório Alternativo de Entidades de Direitos Humanos sobre tortura no Brasil entregue na ONU em Genebra (21/04/01).
(3) Disponível em: Acesso em 14 fev. 2004.
(4) “Força bruta”. Correio Braziliense. Brasília, 16 jun. 2001, Seção Direitos Humanos, p. 11.

Renato Barão Varalda
Promotor de Justiça em Brasília, especialista em Direitos Humanos pela University of Essex, UnB e FESMPDFT e mestrando em Direito pela Universidade de Lisboa



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