INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS

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Boletim - 136 - Março / 2004





 

Coordenador chefe:

Celso Eduardo Faria Coracini

Coordenadores adjuntos:

Carlos Alberto Pires Mendes, Fernanda Emy Matsuda, Fernanda Velloso Teixeira e Luis Fernando

Conselho Editorial

Editorial

Editorial : Vítimas do uso de drogas

As trapalhadas administrativas em episódios de exclusão do cloreto de etila — famoso lança-perfumes — do rol das substâncias entorpecentes e de sua posterior reinclusão, trapalhadas que volta e meia surpreendem os operadores do Direito, são apenas uma entre tantas evidências do enorme equívoco com que se trata o problema no Brasil: começa-se por desconhecer os critérios para definir substância entorpecente.

O equívoco, entretanto, alastra-se de modo insidioso. Não há critério científico para definir o que seja substância prejudicial à saúde, e algumas drogas são liberadas para consumo por razões culturais e, sobretudo, econômicas. Assim, a facilidade de acesso à nicotina e ao álcool faz pouco dos números sobre mortes e doenças provocadas por eles. No caso do álcool, sua relação com acidentes de trânsito, violência familiar e homicídios fúteis é gritante.

Entretanto, outras drogas, às vezes aleatoriamente, como no caso do cloreto de etila, são proibidas. Usuários dessas substâncias, qual poeira indesejável, são varridos para baixo do tapete social, e as relações decorrentes da fabricação, distribuição, comércio e consumo devem frutificar e estruturar-se nos subterrâneos de uma civilização que se pretende e se deseja asséptica. O simples tratamento repressivo ao uso das drogas é o principal responsável pelo crescimento do poder paralelo do tráfico de entorpecentes e suas relações com o tráfico de armas, o crime organizado, a corrupção e a lavagem de dinheiro. A população, esquecida pelos governos, assediada pela baixa renda, pelo desemprego, pela falta de escolas e hospitais, pela falta de perspectivas, também convive de perto com o medo e os favores que é obrigada a trocar com grupos de traficantes. Apesar disso, o Projeto de Lei nº 7.134/2002, que volta ao Senado após substitutivo na Câmara dos Deputados, em que pesem as aparências, pouco avança ao continuar impondo tratamento criminal ao uso de substâncias entorpecentes.

O problema é mais complexo do que parece. A partir do pressuposto de que o consumo de drogas é um mal que deve ser arrancado pela raiz, predominou nas últimas convenções das Nações Unidas a opinião — leia-se, pressão — do governo dos Estados Unidos no sentido de que o combate às drogas deve ocorrer com forte atividade repressiva junto aos centros produtores e fornecedores, além da proibição do uso. A outra posição, mais focada nos danos aos usuários e menos focada em interesses escusos, prega uma atividade preventiva de educação e tratamento junto aos centros de demanda dos entorpecentes: haverá enfraquecimento dos traficantes se houver diminuição da demanda. Ao contrário, a repressão violenta aos produtores, que levou a Colômbia a uma desastrosa e fratricida guerra civil, com intensa pressão política e apoio militar norte-americano, certamente não reduziu o consumo de drogas, mas apenas encareceu as mercadorias cuja produção se deslocou para áreas da Bolívia e do Brasil.

Além disso, mirar o aparato repressivo sobre o consumidor de drogas significa uma utilização medieval do Direito Penal, em seu cerne mais puramente moralista, pois não há tutela a bem jurídico socialmente relevante. Os usuários e dependentes de drogas não ameaçam a saúde pública; eles são resultado, sim, da falta de políticas públicas sérias na área da saúde.

O projeto de lei brasileiro, conquanto demonstre nas entrelinhas ciência das tendências mais progressistas, prefere ceder às tentações repressivas e manter o apelo simbólico ao tratamento penal. As boas intenções manifestadas na criação de um Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (SISNAD), com preocupações em prevenir o uso indevido de drogas e em reinserir socialmente usuários e dependentes, além de declarar opção por uma política de redução de riscos e prevenção de danos, esvaem-se ao serem confrontadas com os capítulos que definem crimes e penas.

Assim, o porte ou uso de drogas permanece crime sujeito a penas de advertência sobre os efeitos da droga, prestação de serviços à comunicade ou medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo. A imposição de medida educativa não esconde seu viés autoritário, mais evidente na possibilidade de conversão da medida em penas restritivas de direitos, em caso de desatendimento às condições inicialmente especificadas. O absurdo se completa com a caracterização de crime de desobediência, previsto no art. 330 do Código Penal, na hipótese de descumprimento da pena restritiva de direitos.

Isso apenas demonstra a inabilidade do Poder Público em zelar pela saúde, e a dificuldade em se aceitar que o Direito Penal não pode solucionar todos os problemas sociais. Pior: os usuários flagrados na posse de droga continuam sujeitos ao arbítrio da polícia na prisão em flagrante (e, depois, ao arbítrio do juiz), pela falta de critério legal para determinar se a droga apreendida era destinada ao consumo ou ao tráfico: prevê-se genericamente que se deverá atender à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais (!?!), bem como à conduta e aos antecedentes do agente.

Na incriminação do comércio de drogas, mantém-se a tradição das penas desarrazoadamente elevadas, sem qualquer elemento que diferencie grandes chefes do tráfico e humildes "aviões" (que conhecem os rigores do sistema penal com mais freqüência), o que somente contribui para o descrédito das leis e das instituições penais.

Que a legislação de 1976 já merecia revogação desde há muito, por sua natureza puramente repressiva, não se discute. Mas o projeto que tramita no Congresso não absorve a evolução dos debates e experiências mundiais mais recentes. Perde-se a oportunidade de abandonar o discurso vazio e de implementar um aparato administrativo que trate usuários e dependentes químicos apenas e tão somente sob o aspecto da saúde. Perde-se a oportunidade de criar alternativas ao usuário, hoje compelido a adquirir drogas de traficantes envolvidos em quadrilhas transnacionais. Opta-se por manter forte o poder paralelo que movimenta vultosas somas de dinheiro e desafia o Estado de Direito. E, pior, não se percebe que a grande vítima disso é a própria sociedade.



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