INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS

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Boletim - 134 - Janeiro / 2004





 

Coordenador chefe:

Celso Eduardo Faria Coracini

Coordenadores adjuntos:

Carlos Alberto Pires Mendes, Fernanda Emy Matsuda, Fernanda Velloso Teixeira e Luis Fernando

Conselho Editorial

Editorial

Ledo engano

"Prisioneiros são só isso: prisioneiros, e não animais. Foram considerados culpados de crimes e pagam por isso. É preciso garantir que a sociedade brasileira, ao privá-los da liberdade, não os prive da dignidade humana".

(Pierre Sané, "Prisões e Violação de Direitos Humanos", Folha de S.Paulo, 25 de junho de 1999, caderno 1, p. 3)

A comunidade jurídica está de luto. Venceu mais uma vez a legislação penal do pânico, com a criação do regime disciplinar diferenciado, instituído pela Lei nº 10.792, de 1º de dezembro de 2003.

A idéia, retomada após os tristes e lamentáveis episódios envolvendo a morte de dois juízes de direito no início de 2003, atendeu aos interesses da chamada "política de segurança", que prega o recrudescimento do rigor penal como forma de pôr cobro ao aumento da criminalidade, em especial do crime organizado, e da "impunidade", ainda que com o sacrifício dos direitos e garantias fundamentais, assegurados pela Constituição da República.

O legislador age, de novo, como se o direito penal fosse o único instrumento hábil a resolver o problema da violência. E o que é pior, imagina que ao punir o preso, recolhendo-o em cela individual pelo prazo de 360 dias, "sem prejuízo de repetição da sanção por nova falta grave da mesma espécie, até o limite de um sexto da pena aplicada" (art. 52, I, da LEP), com restrição das visitas semanais (art. 52, III, da LEP) e com "direito à saída da cela por duas horas diárias para banho de sol" (art. 52, IV, da LEP), ele se tornará uma pessoa mais disciplinada e com senso de responsabilidade. Ledo engano.

Não constitui discurso de retórica afirmar que o castigo físico imposto ao preso sujeito ao RDD não é mera punição disciplinar, mas sobrepena cruel e degradante que traz irreparável prejuízo à sua psique e aviltamento como ser humano. O isolamento de qualquer pessoa pelo prazo de um ano, ou de até 1/6 da pena, em local insalubre e diminuto, com "direito" a duas horas de sol, sem trabalhar ou exercer qualquer atividade, enfim despido dos basilares direitos, os quais não são atingidos pela condenação, pode-se afirmar, equipara-se à pena de morte física e moral.

O legislador pretendeu criar regime de disciplina diferenciado. Instituiu, na verdade, novo regime de cumprimento de pena, em afronta ao princípio da reserva legal: o fechadíssimo, com duração de até um sexto da pena aplicada.

O novo regime poderá abrigar inclusive presos provisórios – portanto não condenados – que "apresentem alto risco para a ordem e a segurança do estabelecimento penal ou da sociedade" (art. 52, § 1º, da LEP), ou sobre os quais "recaiam fundadas suspeitas de envolvimento ou participação, a qualquer título, em organizações criminosas, quadrilha ou bando" (art. 52, § 2º, da LEP).

A idéia de que o RDD se faz necessário para impor maior rigor no tratamento do preso não resiste à simples constatação de que a prisão, no direito penal moderno, já se destina àqueles que apresentam alto risco à segurança da sociedade, não podendo ser este um fator diferenciador, na massa carcerária, daqueles que necessitam de regime disciplinar mais rigoroso e, portanto, restabelecedor da paz pública.

De outra sorte, submeter preso cautelar a verdadeiro regime de cumprimento de pena antes de decisão judicial sobre sua responsabilidade penal afronta o princípio da legalidade, para dizer o mínimo. Basta como exemplo a hipótese contida no art. 52, § 2º, da LEP, que sujeita o preso provisório "sob o qual recaiam fundadas suspeitas de envolvimento ou participação, a qualquer título, em organizações criminosas, quadrilha ou bando", ao regime disciplinar diferenciado. A par de ainda não existir no nosso ordenamento jurídico um conceito de organização criminosa, nem tampouco a sua tipificação penal, a lei pune o acusado duplamente. Criando, assim, insuportável bis in idem.

É assustador pensar que o RDD poderia ter nascido pior, pois havia sido aprovada no Senado Federal emenda ao texto da Câmara, criando o chamado "RDD Max", com prazo de 720 dias. Isso não serve de consolo. Ao contrário, deve servir de alerta.

Logo após a promulgação da lei, matéria publicada no jornal O Estado de S.Paulo afirma que "o crime organizado é o maior vencedor com a aprovação deste projeto" (Caderno Cidades, p. C3, sob o título "Projeto de regime diferenciado só beneficia bandidos, diz secretário", de 05/12/03). E isto porque, a partir de agora, quem determina o ingresso do preso no RDD é o juiz da execução, e não mais o diretor do presídio, fato que aos olhos de alguns, "engessaria a luta da polícia contra o crime". Pensam, assim, que o poder disciplinar deve ser deixado ao exclusivo arbítrio da administração prisional, vislumbrando a execução penal como atividade meramente administrativa e não jurisdicional. Ledo engano.

Múltiplos são os problemas do sistema carcerário. Destaque-se o da corrupção endêmica, uma das características do crime organizado. Vejam-se, por exemplo, as notícias divulgadas pela imprensa, de que a morte do magistrado ocorrida no interior de São Paulo teria supostamente sido encomendada, pelo celular, por um preso que estava submetido ao RDD, em estabelecimento prisional tido como modelo de segurança e dotado de bloqueador de sinais. Isso evidencia que tornar mais cruel o já crudelíssimo sistema carcerário sequer atenderia às finalidades alardeadas.

Estamos diante de outra lei elaborada a partir de situação fática excepcional, que gerou comoção nacional, mas que não resolve o problema da criminalidade violenta. A sociedade não está mais segura com a modificação da Lei de Execução Penal.

O regime disciplinar diferenciado "não conserta ninguém". E será mais um ledo engano pensar que sua aplicação irá diminuir a violência, combater o crime organizado e restabelecer a paz pública.



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