INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS

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Boletim - 131 Outubro Esp. / 2003





 

Coordenador chefe:

Celso Eduardo Faria Coracini

Coordenadores adjuntos:

Carlos Alberto Pires Mendes, Fernanda Emy Matsuda, Fernanda Velloso Teixeira e Luis Fernando

Conselho Editorial

Editorial

A reabilitação da cela surda

Nilo Batista

Professor titular de Direito Penal da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e da Universidade Cândido Mendes e presidente do Instituto Carioca de Criminologia

Há um século atrás, o regulamento da Casa de Correção do Rio de Janeiro contemplava, entre outras sanções disciplinares, a "restrição alimentar", a "imposição de ferros" e a "reclusão na célula"(1). Se na "restrição alimentar" e na "imposição de ferros" assombra-nos a permanência escravista(2), a "reclusão na célula" pareceria uma inútil redundância diante da hegemonia na cominação da pena de prisão celular no Código Penal de 1890. Sim; embora o código republicano previsse quatro espécies de pena privativas da liberdade(3), a prisão celular era cominada à quase totalidade dos crimes e até mesmo a algumas contravenções(4). Perante o regime executório geral da prisão celular, a sanção disciplinar "reclusão na célula" constituiria sobejidão supérflua: embora o pudor dos penitenciaristas lhes tolha por vezes a franqueza, uma sanção disciplinar tem que representar um acréscimo ao sofrimento penal imposto pelo próprio regime, o que se obtém seja pela intensificação do mesmo sofrimento, seja pela agregação de novos sofrimentos. Isso faltaria por completo no condenado a prisão celular ao qual se pretendesse punir disciplinarmente com "reclusão na célula", que é a essência da prisão celular.

Na prática, as coisas eram muito diferentes, porquanto, como dizia Evaristo de Moraes em 1923, "ainda não foi possível experimentar no Brasil o tão gabado sistema progressivo ou irlandês; e nem a prisão celular, tal como o Código a concebeu, pôde, sequer, ser executada na Capital da República"(5). E, de fato, como o próprio regulamento de 1910 afirmava, na Casa de Correção continuaria a ser "observado provisoriamente o sistema penitenciário de segregação celular para comer e dormir, e do trabalho em comum durante o dia, sob o regime do silêncio (sistema auburniano atenuado)"(6). Felizmente, a prisão celular ficara no papel.

Hoje, quando se procura reabilitar a cela surda, é impressionante constatar que o prazo máximo pretendido é exatamente igual ao prazo máximo do "isolamento celular" preconizado pelo Código Penal de 1890(7): dois anos. Se estamos buscando uma solução do final do século XIX para implantá-la no início do século XXI, convém que a justifiquemos adequadamente. Ninguém defendeu com maior denodo a prisão celular do que o desembargador A. Bezerra da R. Moraes(8), que, onde quer que se encontre, deve estar se regozijando pela tardia vitória de suas idéias.

Para A. Bezerra de Moraes, o que atrapalhava a implantação da prisão celular não era apenas a "falta de estabelecimentos apropriados", mas "principalmente o sentimentalismo feminil"(9) e um certo preconceito contra "o melhor dos sistemas penitenciários"(10). Ele visitara a penitenciária de Louvain, cujas sanções disciplinares contemplavam o "jejum a pão e água" e a "reclusão em cela escura, com ou sem jejum"(11) — isto, sim, ciência penitenciária pura, exata gradação das dores penais. Mas o ponto alto de sua obra é a transcrição de trechos do relatório que um médico francês, Auguste Voisin, fez sobre o "estado intelectual, moral e físico" dos internos de St. Giles, Louvain e Malines. Passando ao largo de tantos aspectos trágicos desse relatório, como a demonstração da boa saúde dos internos pela comparação do peso total de um grupo, como se de gado se tratasse(12), ou como a delicada questão das alienações mentais fomentadas pelo isolamento, detenhamo-nos sobre os suicidas.

Dos 34 casos de suicídio na penitenciária de Louvain, 20 ocorreram durante o primeiro ano de isolamento, 4 entre o primeiro e o segundo ano, e 10 após o segundo ano(13). Mas toda a arte do alienista francês será colocada em demonstrar que os únicos responsáveis por estas mortes foram os próprios suicidas. Acompanhemos as enxutas anamnésias que o Dr. Voisin legou aos apreciadores de prisão celular de todos os séculos.

O interno M. enforcou-se na grade da cela, mas era "surdo, pálido e doentio". Já T., que também se enforcou, "era debochado e vagabundo", e além disso "sofria das vias urinárias". D.M. "era de fraca inteligência e foi mendigo desde tenra idade"; já G. possuía "caráter fraco e variável, e gênio sombrio". Os casos de B., G.2 e H. nos revelam que numa boa prisão de regime celular o capelão desempenha funções realmente singulares, porque além de receber confissões dos internos, ele as transmite à administração: por isso, sabemos que B. "confessara ao capelão que desde a infância tinha a monomania do suicídio", bem como que G.2 "era de gênio violento e tinha profunda aversão ao serviço militar" ("o capelão declarou"), e ainda que H. "tinha um gênio esquisito e desconfiado" ("o capelão dizia"). F. "era imoral", e por isso matou-se; Sch. "fugia à sociabilidade (...) e dava-se ao onanismo" — como não se mataria?! S. "vivia desgostoso pela morte do pai", e Go. deixou um bilhete: "Clara, não podia viver sem ti e os filhos; tu vendeste meu corpo à justiça para ficares livre"; em ambos os casos, a culpa é da saudade. Mas o alfaiate C., que "culpava a mulher de sua desgraça", não permaneceu vivo um mês e meio em Louvain: mesmo sem saudade, matar-se às vezes é compulsivo. P., caldereiro, teria uma "alienação mental anterior (febre acompanhada de delírio)", e V. — talvez para deixar claro que drogas entravam em Louvain — "embriagava-se". De., de 28 anos, "queixava-se constantemente da sorte e se dizia inocente": esta costuma ser uma crença fatal. V., açougueiro, "sofreu grande contrariedade com o casamento de um filho"; certamente as regras de sua profissão o auxiliaram quando teve que fazer "incisões na traquéia e nos vasos do pescoço". Seh., de 23 anos, era uma raridade, porque "não tinha a idéia do suicídio antes da entrada na prisão"; sucede que "deu-se ao onanismo", resultando-lhe "grande enfraquecimento físico e intelectual". Para o Dr. Voisin, há uma linha reta entre a masturbação e o suicídio, porque para explicar o suicídio de Pr., sapateiro, colhe com um colega a informação de que ele "dava-se muito ao onanismo", e vincula o suicídio de D. "ao onanismo de modo desenfreado". Mas um "reumatismo crônico dolorosíssimo" também pode despertar idéias autodestrutivas, como se deu com o pedreiro F.(14).

Se realmente o governo federal pretende reabilitar a cela surda — e, além da mídia, há uma bancada policialesca no Congresso que também o aplaudirá muito — seria aconselhável a re-edição de obras como esta. Quando os condenados começarem a se matar, saberemos muito bem, sem "sentimentalismos feminis", de quem é a culpa. 

Notas

(1) Dec. nº 8.926, de 13.10.1910, art. 79, itens 4º a 6º (que sucedeu ao dec. nº 3.647, de 23.04.1900).

(2) Após executada a pena de açoites, o escravo era entregue "a seu senhor, que se obrigará a trazê-lo com um ferro pelo tempo e maneira que o juiz designar" (art. 60, C.Cr. 1830).

(3) Prisão celular, reclusão, prisão com trabalho obrigatório e prisão disciplinar (art. 43).

(4) Batista Pereira afirmaria ter-se inspirado no código holandês de 1886, o que parece duvidoso pela co-existência de quatro espécies distintas. Cf. suas Notas Históricas, publicadas em 14 capítulos por Raja Gabaglia (org.) Revista de Jurisprudência, Rio, 1898-1899, ed. Aldina, vols. II a VI (para o assunto, especialmente o cap. VII).

(5) Prisões e Instituições Penitenciárias no Brazil, Rio, 1923, ed. Cons. C. de Oliveira, p. 51.

(6) Art. 2º.

(7) Art. 45, al. b.

(8) Estudo sobre os Systemas Penitenciários, Rio, 1915, ed. Jacinto. A primeira edição é de 1900, um ano após ter ele participado do congresso da Société Genéral des Prisons, em Bruxelas.

(9) Op. cit, p. 3.

(10) Op. cit., p. 8.

(11) Op. cit., p. 15.

(12) O Dr. Voisin, para demonstrar que ocorrera com um grupo de internos apenas "uma diminuição bastante sensível do tecido adiposo", não porém "da força muscular", pesa-os quando de sua visita, comparando a soma com o peso quando de seu ingresso, também somado: o quadro comparativo, integrante da "Memória lida perante a Academia de Medicina de Paris", erra nas duas totalizações (op. cit., p. 21).

(13) Op. cit., p. 24.

(14) Op. cit., pp. 25 ss.

Nilo Batista

Professor titular de Direito Penal da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e da Universidade Cândido Mendes e presidente do Instituto Carioca de Criminologia



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