INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS

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Boletim - 83 Esp. Outubro / 1999





 

Coordenador chefe:

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Editorial

Crimes contra o sistema financeiro na virada do milênio

Arnaldo Malheiros Filho

Advogado criminalista

Entre o honroso convite que nos foi dirigido, para debater no V Seminário Internacional questões relativas aos crimes contra o sistema financeiro nacional, ocorreu um fato importante — desta vez auspicioso, para variar — que exige a mudança de nosso projeto inicial.

É que o Brasil passou a contar com um ministro da Justiça que é bacharel em Direito (hélas!), é penalista exímio, é advogado militante, é sócio ativo e colaborador constante do IBCCRIM e é conhecedor de minúcias da Lei nº 7.492/86, pois tem atuado profissionalmente num grande número de casos concretos importantes a ela relacionados.

Por isso, entendemos de nosso dever, trocar a crítica candente e o contorcionismo exegético necessário para dar compatibilidade à Constituição a dispositivos que na verdade a afrontam pela formulação de uma proposta — ou ao menos de diretrizes de uma proposta — de reformulação de uma das piores leis cuja vigência já assistimos no Brasil.

Não ignoramos a existência de setores governamentais que afirmam ser a legislação de crimes financeiros propriedade do Banco Central ou da área econômica — tanto assim que teriam proibido a comissão de reforma da parte especial do Código Penal — de tocar em seus dispositivos, mas nos recusamos a acreditar na persistência dessa orientação com a presença de José Carlos Dias no Ministério da Justiça.

Assim, o que pretendemos submeter à reflexão dos participantes do Seminário são rumos para uma reforma dessa lei, caso único de diploma sancionado pelo Presidente da República com a ressalva de que o fazia na esperança de que fosse ela logo refeita, tais as suas impropriedades(1). Com essa qualidade, difícil será piorá-la e estaríamos muito melhor se simplesmente fosse reavivado o anteprojeto Bulhões-Lamy-Comparato, ou se a matéria fosse repensada com atenção às seguintes diretrizes:

1. Direito Penal mínimo

Não há como ignorar que o Brasil tem um sistema financeiro que, a despeito de suas mazelas, é ainda assim bastante desenvolvido, confiável e sofisticado, com executivos de nível internacional em seus postos de direção. Mas, quando se vê o número de denúncias contra executivos financeiros chega-se à conclusão de que, fossem elas procedentes, só um néscio abriria uma conta bancária ou uma caderneta de poupança neste País... Algo está errado!

O maior dos erros, certamente, é o uso, pelo Banco Central, das comunicações penais como instrumento de política monetária, mas convenhamos que os defeitos da lei só encorajam essa atitude. Entre esses defeitos sobressai a criminalização de condutas sem maior potencial ofensivo, que melhor seriam coibidas com meras sanções administrativas.

Quando o Banco Central foi cobrado pelo fato de nunca ter percebido que um dos maiores bancos do País disfarçava seus prejuízos com a fabricação de ativos fictícios, seu presidente defendeu a Casa dizendo que no último ano tinha firmado 500 comunicações de crime ao Ministério Público. Era verdade mas, ao que consta, nenhum desses casos envolvia um centavo de prejuízo ao Estado, a clientes ou acionistas. Mas enquanto eram lavradas essas 500 autuações, alguns bilhões de reais de prejuízo para a União eram gerados. Vê-se pois, que essa banalização do Direito Penal — que anda em plena contra-mão da História — não serve a ninguém.

A adoção do denominado princípio da intervenção mínima implicará o acolhimento dos que seguem:

2. Independência relativa das esferas penal e administrativa

No dia em que se dissesse que um fato é crime financeiro porque o disse o Banco Central (ou crime tributário porque o disse o Conselho de Contribuintes), teríamos revogado o Estado de Direito.

Por outro lado, não se pode cogitar da existência de um crime numa conduta que a própria autoridade fiscalizadora entenda lícita ou, se ilícita, punível com qualquer sanção administrativa inferior à mínima.

Não se trata de sujeitar o Poder Judiciário a decisões do Executivo, mas do valor que se há de atribuir aos procedimentos processados pelo último. Se a autoridade administrativa entende que o fato é lícito ou punível com pena leve, forma-se a presunção juris tantum de que o material de instrução é insuficiente como fumus da existência de um crime. Seria isso cercear a atuação do Ministério Público? De modo algum, pois pelo menos de dois caminhos disporia ele: a coleta de mais provas através de inquérito policial ou outro procedimento investigatório e a desconstituição, na via própria, da decisão administrativa, até porque não faria sentido que o autor de um crime tivesse sua situação disciplinar resolvida com u'a multa, não raro de valor simbólico.

3. Extinção dos "crimes de mero capricho"

Não há razão para invocar a ultima ratio do Direito Penal para tratar de condutas que não envolvam dano ou perigo sério, real, concreto de dano. É por isso que Ferrajoli inclui entre os "axiomas garantistas" os princípios do nulla lex (poenalis) sine necessitate e nulla necessitas sine injuria(2).

Por exemplo, se o empréstimo a controlada desestabiliza o banco, que se o vede. Porém de crime só se pode cogitar se, por sua expressão monetária em comparação com as disponibilidades e o patrimônio líqüido da Instituição, a expuser de fato ao risco de desestabilização. O empréstimo a diretor é em princípio negócio de risco, mas não há sentido em proibir uma instituição de grande porte de oferecer a um diretor empregado um financiamento para aquisição de casa própria ou de automóvel que, além da boa garantia, é de montante insignificante frente à financiadora. Da mesma forma, a introdução de mecanismos ou garantias que reduzam o risco de desestabilização esvaziará a tipicidade.

4. Extinção dos tipos abertos

Todos sabemos que os tipos abertos representam caminho livre para o arbítrio e para a negação da segurança jurídica(3) e eles comparecem a Lei em exame no contexto de um hábito antigo do legislador brasileiro que é a remoção fácil de obstáculos à incidência da norma. Foi o que aconteceu com os crimes ambientais: sabedor de que muitos acusados eram absolvidos por agir sem dolo, o legislador tratou de instituir forma culposa para todos os crimes(4).

A antiga Lei de Economia Popular (nº 1.521/51) punia a gestão fraudulenta ou temerária que levasse a instituição à falência, insolvência ou inadimplemento contratual. Pois bem, com a sistemática da Lei nº 6.024, o Banco Central acaba intervindo antes disso, fazendo com que o tipo não se aperfeiçoe. A solução foi muito simples: como no leito de Procusto, amputou-se a condição objetiva de punibilidade, punindo com altas penas a gestão fraudulenta e temerária sem que lei alguma defina o que é isso.

5. Ajuste ao Direito atual

Numa economia aberta como a nossa se tornou, não há mais lugar para os crimes cambiais tais como previstos na lei, muito menos as alusões confusas a "saída" de "moeda ou divisa". Já a manutenção de depósitos não declarados no Exterior deve urgentemente ser transplantada para a legislação de crimes contra a ordem tributária, pois é conduta que, embora grave, em nada se relaciona com o sistema financeiro.

Por outro lado é preciso desfazer a "isca" que se destinava a tornar a Lei atraente para as instituições financeiras através da incabível qualificação do estelionato praticado contra elas na forma de fraude para obtenção de financiamento, que com ela trouxe competência federal para crime cometido em relação negocial absolutamente privada e sem interesse algum da União.

Uma reforma que se oriente por estas diretrizes certamente contribuirá para o aperfeiçoamento do Direito Penal brasileiro.

Notas

(1) Veja-se a Mensagem Presidencial nº 252/86, citada por Manoel Pedro Pimentel em "Crimes Contra o Sistema Financeiro Nacional", RT, São Paulo, 1987, p. 24.

(2) "Derecho y Razón - Teoria del Garantismo Penal", ed. Trotta, Madri, 1995, p. 93.

(3) Desde Welzel e Wessels, citados por Silva Franco ("Temas de Direito Penal (Breves anotações sobre a Lei nº 7.209/84"), Saraiva, 1986, pp. 2 e ss. No mesmo sentido, Everardo da Cunha Luna, "Capítulos de Direito Penal", Saraiva, São Paulo, 1985, p. 33.

(4) E com isso deu ensejo à cáustica crítica de Miguel Reale Júnior em "A lei hedionda dos crimes ambientais", artigo publicado na "Folha de S. Paulo" de 6/4/98, p. 3.

Arnaldo Malheiros Filho

Advogado criminalista.



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