"Só quero saber do que pode dar certo. Não tempo a perder".
Fito Paez
Qual sistema processual penal? A pergunta é pretensiosa, mas deve ser enfrentada. Pode ser colocada também nos seguintes termos: o que a sociedade espera de um sistema persecutório penal e, em contrapartida, o que este sistema pode devolver a essa sociedade. O problema, antes de ser jurídico, é político, suas bases não estão no ordenamento positivado mas nos valores que o fundam.
A teor da literatura filosófica que se queira adotar, pode-se estar falando da norma fundamental de Kelsen (Teoria Pura do Direito) ou dos valores culturais fundadores de um sistema jurídico na linguagem de Eros Grau (Direito Posto e Direito Pressuposto).
Para simplificar um pouco a discussão, partamos daquilo que temos em mãos como consolidação de valores dominantes do ponto de vista político e que tendem a reger uma determinada sociedade: a Constituição. Não se fala aqui senão de um texto constitucional fundado dentro dos padrões democráticos, onde as várias correntes valorativas inseridas no seio social podem se manifestar, até que uma delas venha, dentro de um processo legítimo de exercício de poder, transformar em norma suas proposições.
A linguagem é de Miguel Reale no seu Pluralismo e Democracia (especificamente no texto "Direito e Poder"), onde apresenta com clareza ímpar sua visão da nomogênese jurídica.
Nesse passo o que nos dá a Constituição em termos de valores a serem seguidos no processo penal é algo substancialmente diverso daquilo que conhecemos na história constitucional até 1988. Já não se trata mais da mera repetição mecânica das garantias individuais presentes em todas as Constituições passadas e nesta repetida à saciedade.
Com efeito, desde a Constituição do Império de 1824, passando por todas as republicanas, inclusive a mais ditatorial (1937), conhecemos em sede de Carta Magna a declaração de direitos, ainda que sob o aspecto meramente retórico e sujeito a supressões como no exercício autoritário de Vargas (1937/1945) e no contexto do regime militar (1969).
A Constituição em vigor, no que tange ao processo penal, é mais que uma carta de direitos mínimos, ela verdadeiramente impôs um sistema processual penal de caráter exclusivamente acusatório, quadro esse não completamente entendido pelos operadores do Direito de forma geral e pelos processualistas penais em particular. Aliás, de tantas coisas que a comunidade jurídica ainda não conseguiu absorver em relação ao que a Constituição explicitamente diz, existe outro ponto de crucial importância: a inserção, no cenário nacional, das normas integrantes de tratados internacionais versados em direitos fundamentais assinados, ratificados e internalizados no cenário brasileiro. Salvo raras exceções doutrinárias e alguns lampejos jurisprudenciais, a comunidade jurídica nacional fecha os olhos para o óbvio. Oscar Wilde tem a palavra.
As bases desse sistema acusatório, expressão inseparável da democracia no processo penal, pululam por todo texto constitucional. Inegavelmente é encontrada sua base no art. 5°, em diversas passagens: contraditório e ampla defesa (a mais citada das garantias por dez entre cada dez processualistas), juiz natural, igualdade e, a mais festejada de todas as garantias (vez que pela primeira vez explicitada), a presunção de inocência, que dá ao acusado o status de sujeito do processo e não seu mero objeto, com todas as conseqüências humanitárias daí naturalmente decorrentes.
Mas não é só. Um artigo de grande importância e lamentavelmente mal inserido topograficamente na Constituição merece ser destacado: a titularidade da ação penal pública para o Ministério Público, com o que se separa definitivamente as funções de promover a ação penal e julgá-la, que é uma das bases do chamado sistema acusatório.
A norma destacada está prevista no art. 129, I, da Constituição. Sua posição dá ao tema um indesejável sabor corporativo, com se tratasse de mera conquista de mercado pelo Ministério Público. Fica mais sem sentido ainda quando se observa a disciplina da ação penal privada subsidiária da pública inserida no art. 5° que, por sinal, é cláusula pétrea a teor da disciplina do art. 60, IV. O desatino do legislador fez com que a norma principal pudesse ser objeto de alteração por via de emenda, enquanto que a subsidiária não...
O sistema processual penal é, pois, o acusatório, com toda sua fundamentação democrática. E se choca definitivamente com o Código em vigor, de índole marcante inquisitiva, onde as meras concessões democratizantes foram feitas ao sabor do momento, como a norma do art. 28, então só existente em face da forma como o Ministério Público estava então estruturado.
A incompatibilidade filosófica, política, cultural entre o Código de Processo Penal e a Constituição (mais exatamente na ordem inversa, face à primazia desta última), por si já seria suficiente para que a comunidade jurídica e política passasse a lutar pela recodificação completa, caminho este que foi abandonado em favor das reformas parciais e incoerentes do ponto de vista sistêmico como adiante se verá.
Histórias, mitos e lendas no processo penal: dificuldade da reforma global e contra pontos do direito comparado
Há no contexto jurídico um consenso cuja origem não é determinada historicamente no sentido de afirmar-se que não é viável a construção de um Código de Processo Penal, sujeito que estaria a muitas intempéries em face do não bem estruturado processo legislativo. Embora rarissimamente assumido em textos escritos, os intelectuais do processo e da política assim se manifestam nos bastidores e se contentam com as reformas parciais. O que há de verdade nesse argumento é algo que precisa ser refletido com muita cautela e deve ser analisado com olhos no Direito interno e nas experiências internacionais. Fiquemos no primeiro plano por ora.
Não é aceitável o argumento da dificuldade do processo legislativo em face de tudo quanto já foi produzido em termos codificados depois de 1988, por determinação expressa da Constituição. Dois casos são marcantes: o Estatuto da Criança e do Adolescente e o Código de Defesa do Consumidor. Ambos modernos, inovadores, pretensiosos, calcados em experiências alienígenas e que pela sua forma de estruturação e pelos valores que encerram poderiam ser alvo fértil de obstáculos intransponíveis dentro do processo legislativo e não o foram.
Não apenas estes textos codificados merecem atenção. O novo Código Nacional de Trânsito, a Lei Orgânica do Ministério Público, os processos de reforma do Código Nacional de Telecomunicações e da Lei de Imprensa (por si um "código") estão no mesmo contexto e podem ser invocados em desfavor do argumento predominante.
Como se vê, o processo legislativo não pode ser invocado como obstáculo intransponível para a construção de um sistema instrumental penal em conformidade com os valores constitucionais. Pode não ser o melhor dos mundos, mas não é suficiente para impedira necessária reforma global.
A experiência de Direito comparado irá nos mostrar que a estabilidade política em que nos encontramos tende a ser um estímu10 para a recodificação global. Outros países, dentro do mesmo contexto político que o nosso - ou muitas. vezes em situação muito mais turbulenta - reconstruíram totalmente seus códigos processuais penais sem que com isso houvesse uma ruptura democrática. Sigam-se os exemplos.
Reforma processual penal italiana
Das mais festejadas novidades no campo processual penal, a reforma italiana, pela sua coragem de inovação e pelos problemas políticos que enfrentou ao longo de quase três décadas, sempre foi a de maior destaque.
Sua cronologia pode ser encontrada na obra de Chiavario (Mario. Procedura Penale - Un Codice tra "Storia" e Cronaca, G. Giappichelli editore, Torino, 1994), narrativa que expõe as dificuldades do processo legislativo e as turbulências políticas que foram sendo superadas até que entrasse em vigor o novo Código, obviamente não apenas sob os aplausos de seus construtores mas sob as críticas e desconfianças que cercavam a comunidade jurídica dada a radicalidade da reforma que acreditavam ser por demais liberal.
O próprio Chiavario narra as críticas em outro texto (C., Mario. Proces Pénal el Droils de l'Homme - Vers Une Conscience Européene, sob a direção de Delmas-Marty, Meireille, Paris, PUF, 1992), onde aponta que o código então recém-entrado em vigor seria feito para a Máfia. Menos de dois anos depois a operação "mãos limpas" desmentiu tais críticos.
A experiência italiana, embora profundamente diversa no que tange ao processo legislativo, é rica no que diz respeito às turbulências políticas. Lá, ao longo de inúmeros governos quase que mensalmente descartáveis, perdurou o trabalho científico a despeito das intempéries políticas e o produto final, embora não infenso a críticas, foi positivo.
Reforma processual penal portuguesa
Num contexto não muito diverso está a reforma processual penal portuguesa, o Decreto-Lei 78/87, de 17 de fevereiro. Valem ser lembradas as palavras do então primeiro ministro Cavaco Silva na exposição de motivos: "Depois de diversos propósitos e tentativas, algumas com começo de execução, que se foram esboçando ao longo dos anos, ingressa, por fim, na vida jurídica portuguesa um novo Código de Processo Penal. Só as obras não significativas são incontroversas; o Código que agora passa a ocupar o espaço do de 1929 e da legislação avulsa que, dispersa e, por vezes, incoerentemente o complementou surge, no entanto, em resultado de uma ponderada preparação e de um debate institucional alargado".
Das palavras oficiais a lição que merece destaque é a do reconhecimento de ser a reforma pontual necessariamente inconsistente do pondo de vista orgânico e que a estruturação de um modelo processual passa, necessariamente, pela reflexão e ponderação. A reforma pontual legisla para o momento; a codificante para gerações.
Reformas processuais penais no âmbito da América Latina
Mesmo no cenário latino-americano inúmeras experiências globais de recodificação foram ensaiadas e consumadas e devem ser lembradas aqui, não pela similitude de seus processos legislativos, mas pela afinidade da reconstrução democrática vivida por quase todos os países latinos nos últimos vinte anos.
Dentro deste contexto tivemos reformas globais na Argentina (1991), Uruguai (1981), Peru (1994), Colômbia (1991), Guatemala (1992) e carecem de reestruturação o sistema mexicano e chileno, sobretudo este último, com um projeto de código aprovado desde 1996 mas ainda não em vigor.
O que se pode dizer a partir dessa cronologia é que o movimento reformista do processo penal anda necessariamente de mãos dadas com as reformas constitucionais que advieram da superação dos regimes autoritários. A lição já havia sido dada por Goldschimidt na década de 30 e, entre nós, já há algum tempo, por Frederico Marques. O processo penal depende da Constituição não apenas enquanto fonte normativa, mas como fonte de valor, como de resto é o caso do sistema penal como um todo.
O Código de Processo Penal-Modelo
Merece igual destaque no que tange à latino-américa a edificação do Código de Processo penal Modelo (ou Tipo), fruto de insuperável esforço doutrinário e já com inúmeros reflexos no Direito positivo interno de vários países deste continente (uruguai e Costa Rica, por exemplo).
Como sustentado por Grinover e Barbosa Moreira, "...elaborar um Código-Tipo significa, então, elaborar um sistema institucional, uma proposta básica, mas concreta e operativa, de um conjunto de mecanismos aplos para solucionar os conflitos sociais, de modo pacifico e através das instituições judiciais" (in Projeto de Código Processual Penal-Tipo, Revista do Processo, vol. 61).
A opção mais simples: as reformas pontuais
Se no plano legislativo as experiências concretas demonstram a possibilidade de reconstrução do modelo processual penal em democracias emergentes. no plano acadêmico o Código-Modelo é uma prova concreta de que os esforços doutrinários podem chegar a termo satisfatório quando politicamente assim se deseja.
O Brasil abandonou os dois caminhos e trilhou o seu próprio, não dos mais felizes, neste ponto aproximando-se muito da situação mexicana que, venia concessa, não é das mais salutares.
De fato, a simetria é muito grande. A Constituição do México (1991) reestruturou o processo penal instituindo regras que, a rigor, não são matérias tipicamente constitucionais, dificultando assim o processo de reforma da legislação ordinária, efeito imediato em situações onde o texto constitucional diz demais, por vezes dizendo o que não deve ou não dizendo aquilo que deveria.
Por outro lado, um dos grandes argumentos para as reformas pontuais é o de que "algo precisa ser feito", pois não se pode conviver com a estrutura vigente - de resto arcaica, anacrônica - e não se pode esperar o forçosamente lento processo global. Tal fenômeno de argumentação já foi analisado por Hirschman, identificando os seguintes pontos dentro da retórica reformista:
a) a reforma deve ser adotada pois do modo como as coisas estão em breve nos depararemos com uma "dificuldade desesperadora" que tornará imprescindível a ação imediata, independentemente de quaisquer conseqüências; .
b) os pontos adotados pela reforma são integrantes do "curso da história";
c) as reformas progressivas consolidam conquistas das reformas anteriores.
Hirschman, Alberto O. Auto-Subversão -Teorias Consagradas em Xeque, Cia. das Letras, SP, 1996. Embora escrita por um sociólogo pensando em economia, tal identificação amolda-se perfeitamente ao problema processual ora destacado.
O próprio autor nos dará a contra-argumentação necessária para tais postulados, sobretudo o de feição alarmista que parece ser o mais usado na retórica política. Mas a reforma pontual, se ganha espaço justamente com o emprego do argumento apocalíptico, reproduz na essência todos os pontos acima apontados.
Veja-se, por exemplo, a idéia da "justiça penal consensual", sempre apontada como o caminho "necessário" do modelo repressivo - e não apenas aqui, mas em grande parte do cenário acadêmico internacional (item "b", supra) e a reprodução de reformas das reformas fragmentadas, justamente para consolidar o que anteriormente foi feito como foi a pena de multa, com a nova disciplina do art. 51 do Código Penal em face da Lei n° 9.099/95 (item "c", supra).
Bem ou mal (e mais para mal do que para bem), as reformas pontuais estão aí. Urge, pois, arcar com suas conseqüências. algumas delas abaixo expostas.
O preço da simplicidade:
Acomodação dos erros e dispersão das idéias codificadoras Uma das conseqüências mais desastrosas da pulverização legislativa através das reformas pontuais é que as incoerências sistêmicas e mesmo os erros técnicos tendem a ser tratados com benevolência ímpar pelos operadores do Direito. Esse comodismo nada desejável impedirá a correta verificação dos malefícios da reforma fragmentada, pois seria politicamente inadmissível a reforma para corrigir o erro da reforma. As sucessivas edições normativas deslegitimariam o processo parcial e, na verdade, chamariam a atenção para a necessidade da reforma total.
São inúmeros os exemplos dessa situação. A Lei nº 9.099/95 traz esse problema quando da imposição de uma pena sem processo. Os esforços doutrinários para sustentar que não se trata de uma pena "penal" e que a sentença nesse caso não é condenatória (?) mas sim declaratória (!) são pungentes. Para acomodar a situação, a reforma do art. 51 do Código Penal, impeditiva da conversão da pena pecuniária em restritiva da liberdade fala em "dívida ativa", criando outro problema interpretativo de extensa magnitude, na medida em que dívida ativa sempre teve conceituação jurídica extremamente bem definida.
Outro exemplo. A Lei nº 9.437/97 que criou o Sistema Nacional de Armas, a despeito de tantas incoerências axiológicas, criou um tipo penal absolutamente inconstitucional que é o apenamento da pessoa que lá possui condenação anterior por crime contra a pessoa, contra o patrimônio e por tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins (art. 10, § 3°, IV), mas que a doutrina teima em salvar criando interpretações para moldar tal inciso dentro de um mínimo padrão de constitucionalidade.
Ainda no âmbito processual, a lei de combate ao crime organizado cria a figura de um "juiz investigador" de maneira frontalmente contrária a tudo quanto a Constituição disciplina para a figura do juiz, que hoje não mais é um obstinado descobridor da verdade - esta necessariamente a ser construída pelas partes em atividade contraditória mas sim um guardião dos direitos constitucionais e da regularidade do devido processo legal. A comunidade de operadores do Direito queda silente em relação a isto e continua a clamar juntamente com uma sociedade desinformada pela necessidade de uma repressão mais efetiva ao crime organizado.
Ao lado deste aspecto, a reforma parcial, mais cômoda, mais célere e mais lucrativa (politicamente) nubla os valores maiores da codificação, tradição do sistema da civil law e mesmo reclamada em certos setores da common law.
E não de hoje. Mesmo na Inglaterra de há muito existe a batalha pela codificação (Bobbio, Positivismo Jurídico, Ícone Ed.; Pradel, Jean. Droit Pénal Comparé , Daloz, Paris, 1995), em que pese a forma de estruturação do Direito anglo-saxão (Davi, René. O Direito ]nglês, Martins Fontes, SP , 1997).
Os valores falados quando se pensa na codificação estão sobretudo ligados à coerência interna do sistema (este calcado em um modelo), fator de legitimação não somente para quem legisla mas, sobretudo, para quem interpreta. Afinal, para interpretar a norma é necessário - e isto é óbvio ter em mente a idéia de modelo em que se baseia o sistema.
Na lição de Reale: "...quando se fala em modelo... (fala-se) em uma estrutura ou esquema que compendia sinteticamente as notas identificadoras ou distintivas de um dado segmento da realidade, afim de ter-se dele uma base segura de referência no plano cientifico. Nessa linha de pensamento, o 'modelo jurídico' não indica um fim primordial e abstrato a ser atingido, mas sim o fim ou os fins concretos que se inserem no dever-ser do Direito correspondente a um dado complexo de regras objetivadas ou formalizadas... " (Fontes e Modelos do Direito - Para um Novo Paradigma Hermenêutico, SP, Saraiva, 1994, p. 38).
Neste ponto, a fragmentação legislativa através de tortuosas reformas parciais, além de fazer com que o sistema perca em confiabilidade e coerência interna, deslegitima o intérprete ou, mais que isso, faz nascer a falsa idéia de que toda interpretação é possível, na medida em que sem a necessária fronteira colocada pelo ordenamento, não há limites para a interpretação. Nesse sentido todos os mensageiros (Hermes) da "verdade" interpretativa são válidos e, como não há "exclusão" interpretativa, o quadro global, ao invés de ser democratizante, tornasse autoritário. Se todos têm sua verdade não há como impor-se legitimamente uma regra de maioria.
O problema é extremamente complexo neste ponto e deita raízes teóricas no campo da semiótica. A leitura de Eco (Humberto. Os Limites da Interpretação, SP, Perspectiva) ajuda a aclarar a idéia do quanto é possível exigir-se em termos de possibilidade interpretativa. Toda interpretação, em suma, é possível, mas nem toda é legítima e sua legitimidade é conferida pela coerência em relação ao sistema.
Ausência de paradigmas culturais sólidos e a quebra das garantias constitucionais do due process of law No caso das reformas pontuais um outro aspecto merece destaque sob o aspecto negativo. Partamos da constatação histórica de que a sociedade brasileira esteve sempre afeta a sistemas políticos de cunho autoritário e que tiveram reflexos no Direito. No que de perto nos interessa, a derivação ideológica imediata é a formação de um espírito inquisitivo na operacionalização do modelo instrumental penal.
Na lição de Kant de Lima (Roberto. Tradição Inquisitorial no Brasil, da Colônia à República: Da Devassa ao Inquérito Policial, in Religião e Sociedade, 16/1-2, 1992), a idéia do quanto arraigado está no "inconsciente cultural" brasileiro a formação de uma "verdade" através de métodos puramente inquisitivos. Não é para menos. A própria história luso-ibérica está permeada destes valores substancialmente trazidos pelo direito canônico e sua busca desenfreada da verdade através do método apontado. Nesse sentido, Foucault, Michel. A Verdade e as Formas Jurídicas, PUC, Rio, 1996, p. 68, para o surgimento do inquérito como forma de construção da verdade.
Sendo a "alma processual penal" inquisitiva, naturalmente tende a se chocar com os valores democráticos erigidos pela Constituição em vigor. Aqui o problema é de particular dificuldade. Se já é substancialmente difícil construir um aparato cultural voltado para o processo acusatório em se pensando na hipótese de uma codificação global, as reformas parciais, sempre sujeitas ao momento e ao oportunismo político -e, portanto, sempre voltadas para um aspecto promocional do sistema repressivo -tendem a apresentar o discurso da eficiência e da repressão através de mecanismos de supressão de garantias processuais. Em suma, não é possível construir uma "consciência acusatória" a partir de reformas fragmentadas.
Por outro lado, como já tivemos a oportunidade de salientar em texto anterior (Qual Justiça Penal?, in Boletim IBCCRIM 35/15, nov/1995), a reforma parcial, justamente porque calcada nesse contexto político, necessariamente formará um processo penal de cunho utilitarista, lastreado em pura ética de resultados (e não de princípios), colocando-se em xeque as matrizes básicas do devido processo legal.
Nítido este problema na Lei n° 9.099/95.
A doutrina (Tucci, Reale ,Jr. et alii, in ]uizados Especiais Criminais -Interpretação e Crítica, SP, Malheiros, 1997) expõe seríssimos problemas de afrontamento da mencionada !ei em relação aos preceitos do devido processo legal, como a imposição dê uma pena sem processo, a colisão com o princípio da presunção de Inocência, etc.
"Navegar é preciso" mas, para onde? A responsabilidade dos intelectuais
As observações a seguir são basicamente lastreadas na instigante obra de Bobbio (Norberto, Os Intelectuais e o Poder Dúvidas e Opções dos Homens de Cultura na Sociedade Coiltemporânea, SP, Unesp, 1996, sobretudo no capítulo "Da presença da cultura e da responsabilidade dos intelectuais"), acredito que de leitura obrigatória para aqueles que, dentro de uma formação cultural minimamente diferenciada num País com as nossas características históricas, políticas e culturais, têm o dever de se pronunciar a respeito do tema.
Apresentada a situação em algumas de suas faces, cumpre indagar qual o caminho a ser seguido e, ainda, quem o definirá. É um problema de responsabilidade (quem) e de meios (como). Se a resposta deve partir de algum lugar, quer-me parecer que a comunidade científica, intelectual mesmo, tem a palavra, contanto que tenha algo a dizer.
Na distinção (complementar) bobbiana, é a hora,mais dos ideólogos do que dos experts. E hora de chamar-se à responsabilidade aqueles que detêm, sobretudo, o conhecimento dos "princípios-guias" e não dos "conhecimentos-meios". Embora se complementem, os ideólogos nesse momento hão de ter a primazia da palavra porque se trata da construção de um modelo a partir de princípios reitores, cabendo a estes a formação de uma geração de operadores culturalmente preparada para lidar com uma nova consciência de processo e democracia.
Venia concessa àqueles que se limitam a acreditar na impossibilidade de uma reforma global por motivos os mais diversos, a influência que a comunidade intelectual possui na formação de reformas fragmentadas pode - e só basta vontade política para tal - ser direcionada para a formação de um quadro onde se torne insustentável a existência da proliferação legislativa nos moldes e com os transtornos já expostos.
Este não é um trabalho para políticos. É um trabalho de política a ser realizado por intelectuais. Os compromissos de uns e outros são diferentes nos planos ético e histórico. O intelectual compromissado (engajado, se assim preferir-se) pensa na estrutura de uma sociedade como tecido permanente de convivência humana e sem a qual o destino do homem não teria propósito. O político não tem esse compromisso e, talvez, nem mesmo o político intelectual o tenha. Com a palavra a comunidade acadêmica, assumindo, inclusive, o risco de seu silêncio ou de sua equivocada opção se a História assim lhe cobrar.
Fauzi Hassan Choukr
Promotor de justiça em São Paulo.
IBCCRIM - Instituto Brasileiro de Ciências Criminais - Rua Onze de Agosto, 52 - 2º Andar - Centro - São Paulo - SP - 01018-010 - (11) 3111-1040