INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS

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Boletim - 56 Julho Esp. / 1997





 

Coordenador chefe:

Tatiana Viggiani Bicudo, Carlos Alberto Pires Mendes e Sérgio Rosenthal

Coordenadores adjuntos:

Conselho Editorial

Editorial

Alvino Augusto de Sá

Alvino Augusto de Sá

Professor de criminologia na Faculdade de Direito da USP, membro da Coespe e membro do Conselho Penitenciário de São Paulo

A execução penal tem sido objeto de muitos discursos ideológicos, sejam eles dentro de uma linha de pensamento tradicional, retrógrado, sejam eles dentro de uma linha de pensamento crítico, assim dito progressista. Desses discursos todos, muita gente está tirando proveito; os presos, que são exatamente o objeto último de toda discussão, eles mesmos não estão tirando proveito algum. Continuam à margem dos discursos, purgando suas penas de prisão e, o que é pior, sem auferir os benefícios e vantagens que a lei lhes facultaria, se fosse levada a sério. São discursos muitas vezes inúteis, quando não até mesmo prejudiciais. Inúteis porque nada trazem de novo, de vez que são estereotipados, repetitivos, nada propõem de concreto (exceto ilusões) e a verdade que contêm já é de todos sobejamente conhecida. Prejudiciais porque, em seu ímpeto de só criticar, oferecem o risco de semear e alimentar a decepção e descrença.

O discurso tradicional e retrógrado emana do pensamento vinculado à escola positiva. Esta criminologia estabelece uma linha divisória entre o preso e a sociedade, vê nos presos condições pessoais de anormalidade, diferencia-os quanto ao grau de "periculosidade". Daí surge um discurso "popularesco", demagógico, que atende às paixões das massas pregando slogans, tais como: criminoso tem mais é que pagar pelo que fez, preso não pode ter mais regalias que trabalhador, prisão tem que ser cumprida de ponta a ponta, etc.

O discurso crítico, assim dito progressista, emana da Criminologia Crítica, que desloca o foco de análise sobre o fenômeno crime do indivíduo para a complexa rede de relações sociais, seja no que diz respeito às causas da conduta desviada, seja no que diz respeito à sua prevenção. Neste referencial de análise existem pensadores e críticos realmente sérios e profundos, que trazem para reflexão não só questionamentos e críticas, mas propostas concretas, dentro de um prisma de realidade. No entanto, emanando desse referencial, vêem-se não raras vezes discursos em linguagem estereotipada, cansativamente repetitiva, trazendo em seu bojo slogans que não só se tornaram vazios e verdadeiras sucatas, mas, pior que isso, correm o risco de por a perder aquilo que de bom se tenta implantar, o risco de alimentar o desânimo e decepção. Temos assim slogans que, embora tenham a vantagem de continuar causando impacto na platéia, tornaram-se verdadeiros lugares comuns, tais como: "o sistema penitenciário está falido"; "a pena de prisão está falida"; "o tratamento penitenciário é uma falácia, ou, é um mito"; "a proposta de tratamento penitenciário nada mais é que uma tentativa de legitimar a pena de prisão"; "no lugar de construir presídios, temos que construir escolas". Esse tipo de discurso tem, isto sim, a grande vantagem de justificar o descompromisso com a prática, com a busca de soluções para os graves problemas que afligem os encarcerados. Esse tipo de discurso vem, isto sim, legitimar (para usar uma linguagem bem ao gosto dos que o professam) o descompromisso, seja dos responsáveis pela gestão da coisa pública, seja dos que preferem unicamente assentar-se na confortável cadeira dos que somente criticam e destroem, mas jamais se comprometem com encaminhamentos de soluções, sujeitando-se inevitavelmente a cometer falhas e a receber críticas.

Nossos presos de hoje, indivíduos vivos, concretos, não estão tirando proveito algum desses discursos todos, sobretudo dessa fala crítica e demolidora de tudo, que nenhuma proposta traz de concreto, dentro de um prisma de realidade. A grande falta de respeito aos direitos humanos dos presos é torná-los meros objetos de discursos vazios. Vazios, porque o que tinham de dar já deram, servindo hoje unicamente como recurso para causar impacto e evitar contestações. O preso é um indivíduo concreto, vivo, que está sofrendo hoje, agora, os terríveis problemas da vida carcerária, que está sujeito hoje, agora, à execução da pena de prisão.

Portanto, respeitar os direitos humanos dos presos, dentro de um prisma de realidade, que lhes traga benefícios concretos hoje, agora, é pensar corretamente sobre a melhor forma de se planejar e administrar a execução de sua pena. Ora, um discurso oficial que vem oferecer encaminhamentos para se enfrentarem os problemas da vida carcerária, que vem trazer propostas concretas (embora nem sempre facilmente realizáveis nos diferentes rincões do País), é o discurso da Lei de Execução Penal, ao qual se acrescenta o da Parte Geral do Código Penal. E aí vem o discurso dos demolidores: a LEP é utópica e impraticável. Dizer simplesmente que ela é utópica e impraticável é justificar, reforçar e legitimar a inércia e descompromisso dos que não querem responsabilizar-se por sua aplicação, feitas as correções necessárias. Ser impraticável é uma coisa, não estar sendo praticada é outra coisa. Podemos reconhecer, sim, a LEP como impraticável, mas não em função de alguma irracionalidade ou irrealismo a ela inerentes, e sim em função da absoluta falta de interesse político dos grandes responsáveis pela gestão das questões carcerárias, pela administração e priorização dos recursos, bem como em função da própria alienação da sociedade, que comodamente se coloca na posição de quem somente cobra, como se o criminoso dela não fizesse parte e como se o crime não nascesse de suas próprias entranhas. E a LEP se torna impraticável também por influência dos discursos ideológicos vazios, oportunistas, que sob o pretexto de se mostrarem revisionistas e progressistas, acabam, isto sim, colaborando para que tudo permaneça como está, camuflando-se a falta de interesse político e falta de seriedade na condução das coisas públicas, sob falso e falacioso pretexto de que tudo é utópico, é mito, é impraticável. A LEP está se tornando, de fato, uma grande falácia nacional, da mesma forma, porém, como se tornou uma falácia o sursis, a prisão albergue, o albergue domiciliar, o livramento condicional, e oxalá, sempre pela mesma razão, não acabem caindo nessa vala comum a Lei nº 9.099, as penas de prestação de serviço à comunidade e outras felizes inovações que vêm por aí.

É princípio elementar de respeito aos direitos humanos dos presos perseguir o cumprimento da Lei de Execução, naquela abertura e naquelas vantagens que ela lhes oferece, além, evidentemente, de se procurar aprimorar essa mesma lei. Quero aqui destacar três pontos, dos quais os dois primeiros são diretamente afetos aos serviços técnicos.

Primeiramente, cumpre ressaltar que a LEP não comporta em seu texto e em seu espírito o estigma de periculosidade. Isto em consonância com as tendências atuais da moderna criminologia, que não mais aceita falar-se em propensão ao crime. Entendo que mais correto seria não mais se falar em prognóstico de reincidência, e sim em prognóstico de adaptação social. O mais correto é compreender-se a conduta criminal como conseqüência das dificuldades de adaptação social e não estas como resultantes daquela. Nota-se no espírito da LEP abertura para este tipo de compreensão (ver o segundo ponto de destaque a seguir). Respeitar os direitos humanos dos presos é perseguir e exigir a exploração desta compreensão na LEP e seu aprofundamento na sociedade, em todas as suas implicações.

O segundo ponto que quero destacar está intimamente dependente do primeiro. Refere-se à mudança de ênfase, de enfoque na análise, compreensão e avaliação do apenado. O enfoque não é mais só criminal como era antes, mas passa a ser sobretudo pessoal. A LEP determina a realização do exame criminológico somente no início do cumprimento da pena. Prevê, para os momentos seguintes, a realização do exame de personalidade, que é um exame da pessoa do preso "para além das grades". Prevê a intervenção da Comissão Técnica de Classificação (CTC) que, após fazer o exame de personalidade, deveria empenhar-se em planejar a execução da pena de forma adequada ao perfil da pessoa do preso, acompanhar essa execução, bem como a resposta que o preso vai dando à mesma. Só assim as CTCs terão condição de elaborar um parecer circunstanciado, convincente, que seja de fato um parecer, e não um exame criminológico camuflado. Só assim ela dará subsídios efetivos e valiosos para o juiz tomar decisões importantes sobre concessão de benefícios. Respeitar os direitos humanos dos presos é perseguir a individualização da execução de sua pena, adequando-a o melhor possível ao seu perfil pessoal, conforme previsto na LEP.

Finalmente, o terceiro ponto que quero destacar refere-se ao rápido avanço que a Lei de Execução permite nos estágios progressivos de cumprimento de pena. De fato, veja-se por exemplo: um preso condenado a 18 anos de reclusão poderá passar para o regime semi-aberto dentro de três anos e, quem sabe, logo a seguir, passar a exercer o serviço externo, além de obter os benefícios de redução de penas contemplados pelos decretos natalinos. Só que, por certo, não é fácil um juiz conceder o semi-aberto para alguém que ainda tem 15 anos por cumprir. E isto por falta de informes convincentes nos autos. O problema todo está na intervenção efetiva das CTCs na dinâmica da vida prisional, com o que elas conheceriam o perfil de cada preso, acompanhariam seu dia a dia e estariam em melhores condições de, com argumentos consistentes e confiáveis, propor as progressões de regime. Respeitar os direitos humanos dos presos é dar-lhes condições de usufruir dos benefícios previstos em lei.

Ora, nenhum desses pontos acima destacados está sendo atendido. Seria muito louvável se muitos teóricos que vivem discursando por aí, no lugar de adotarem discursos que já se tornaram vazios (justamente porque óbvios e cansativamente repetitivos), somassem esforços no sentido de se perseguirem e se exigirem as condições necessárias ao cumprimento da Lei de Execução Penal, com as adequações e atualizações que se fizerem necessárias. Isto sim, seria uma medida concreta de respeito aos direitos humanos dos presos.

Alvino Augusto de Sá
Professor de criminologia na Faculdade de Direito da USP, membro da Coespe e membro do Conselho Penitenciário de São Paulo.



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