INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS

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Boletim - 128 - Julho / 2003





 

Coordenador chefe:

Celso Eduardo Faria Coracini

Coordenadores adjuntos:

Carlos Alberto Pires Mendes, Fernanda Emy Matsuda, Fernanda Velloso Teixeira e Luis Fernando

Conselho Editorial

Editorial

A neocriminalização da corrupção

Celso Eduardo Faria Coracini

Mestrando em Direito Penal pela USP e membro da Comissão de Estudos e Debates

E o povo já pergunta com maldade: Onde está a honestidade? Onde está a honestidade?
(Noel Rosa)

Os que estiveram presentes ao IBCCRIM na manhã do dia 13 de maio p.p., participaram de discussão sobre a corrupção, já comparada por Rui Barbosa a um cancro, que corrói as instituições, detrás da fachada da legalidade(1). Como debatedores, pudemos assistir às intervenções da socióloga Flávia Schilling, professora da Faculdade de Educação da USP, e do jurista Renato de Mello Jorge Silveira, professor da Faculdade de Direito da mesma Universidade(2), que trouxeram, sob os diferentes focos de suas especialidades, a moderna visão do fenômeno.

A partir da percepção de um campo de ilegalidades toleradas (3), no qual se insere a corrupção, e que se define como o conjunto de situações que envolvem normas e preceitos jurídicos que escapam à censura social, Schilling identifica uma progressiva redução da tolerância com relação a essas práticas, próprias de determinadas classes socioeconômicas que tiveram acesso ao poder político e econômico. Silveira ressaltou a importância dessa abordagem para o Direito Penal, que tradicionalmente ignora os aspectos sociológicos e de política criminal, focando a corrupção de modo estático e pouco fecundo.

Lembraram os expositores que a corrupção não é característica exclusivamente nacional, nem se vincula especialmente ao subdesenvolvimento social: a história registrou escândalos na Inglaterra, França, Itália, Alemanha, Japão, Espanha (para ficarmos em exemplos claros e recentes), seguidos de vivos e contundentes discursos moralizantes. A memória brasileira, que esperamos cada vez mais revigorada, ainda guarda os episódios que desembocaram no impeachment de Fernando Collor de Mello; os milagres lotéricos dos anões do Orçamento; as denúncias de esquemas de corrupção na Prefeitura de São Paulo, relacionadas a serviços de fiscalização e ao sistema de saúde então em funcionamento. Repercutiu sobremaneira a descoberta de contas bancárias em bancos suíços, em nome de fiscais fazendários do Estado do Rio de Janeiro, recheadas com dinheiro público(4).

Schilling desenvolveu a idéia de que o conceito sociológico de corrupção é, antes que questão moral ou individual, um instrumento de gestão e de partilha de poder, sendo uma das possíveis formas de preservação do statu quo. Daí, a redução nos graus de tolerância à corrupção pode denotar uma tensão que caracteriza o processo de construção da cidadania, em uma sociedade complexa, dinâmica e, por isso mesmo, em muitas ocasiões contraditória(5).

O primeiro passo para enfrentar a corrupção, propõe Schilling, é sua construção como problema, já que esse conjunto heterogêneo de práticas já foi considerado como prerrogativa de determinados estratos da sociedade (e.g. classe de políticos, de fiscais): a conscientização de que enfrentar a corrupção pode ser benéfico a todos é fundamental para a ocupação do espaço público pelos cidadãos.

Nesse ponto, forçoso inserir a corrupção no âmbito da criminalidade supra-individual, em contraponto à tradicional preocupação individualista do Direito Penal clássico, no ensinamento de Silveira. Sobretudo após a 2ª Guerra Mundial, a sociedade conheceu inovações responsáveis pela proliferação de riscos, antes decerto existentes, mas jamais em igual escala(6). O desenho de um Direito Penal mais atento aos perigos e à segurança social significa a tendência ao deslocamento do eixo de proteção, do indivíduo, para o coletivo.

Ora, constatando acentuado déficit de eficácia em questões de corrupção, Silveira expôs brevemente a tentativa de construção de uma nova teoria de imputação penal (pelo jurista alemão Claus Roxin), introduzindo a noção de risco no conceito de tipo objetivo. Ponderou que a teoria da imputação objetiva ainda não é aceita com alardeado entusiasmo, pois não atua apenas como fator de descriminalização, mas também potencialmente como criminalizante, pelo incremento de situações de risco. Reconheceu-se, contudo, que o Direito Penal clássico não pune adequadamente a corrupção, e Schilling frisou que a prisão tampouco responde ao como punir. Ao contrário, para Silveira, o Direito Penal somente elege determinadas situações exemplares, para intervir de modo simbólico, na previsão e na punição das condutas determináveis como de corrupção.

A preocupação do Estado, segundo Silveira, está, como em outros tempos, no fazer normas, no aplicar normas e no aplicar sanções. A diferença reside em que se passou a exigir transparência dessas prestações estatais. Há necessidade, lembrou Schilling, de modificar a reiterada cultura da política como algo sujo e, por isso, lugar do outro, e do povo como imaculado, mas vítima de políticos sem caráter. Essa cultura constitui perigo para a democracia, que exige a máxima participação dos cidadãos nas instâncias de decisão.

Criticou-se, ainda, a difundida idéia de que reina a impunidade no Brasil. Silveira recordou que nunca tantos casos foram levados ao Judiciário, nem houve tantas condenações. Isso não infirma, contudo, a observação de que o Direito Penal carece desenvolver instrumentos mais adequados para intervir na criminalidade supra-individual. Schilling, por sua vez, ressaltou o papel da mídia na repercussão dos fatos ligados à corrupção e, também, à violência: esses temas são construídos pelos meios de comunicação sob a forma de casos, ou seja, com começo (denúncia, normalmente sem respeito à intimidade dos acusados), muitas vezes meio (desenvolvimento da investigação), e invariavelmente sem fazer-se acompanhar do desfecho. Essa estrutura, comum nos veículos noticiosos, distorce e exacerba o sentimento de impunidade.

Os argumentos dos dois expositores convergiram, a partir de focos diversos, no fato de que vivenciamos, desde os últimos dez anos, ao que Schilling designou a criminalização do crime de corrupção. Ou seja, as várias condutas albergadas no conceito amplo de corrupção deixaram de ser ignoradas ou consideradas como de menor relevância (em movimento inverso ao da descriminalização de fato, ou em branco(7)).

Para a dogmática do Direito Penal, muitas perguntas ainda campeiam sem resposta, e os esforços por redimensionar sua estrutura e modus puniendi de acordo com valores menos individualistas apenas se iniciam. Porém, o aprendizado parece mais amplo, na lição de Flávia Schilling, considerando que o fenômeno mencionado, que denominamos neocriminalização da corrupção, representa o marco da apoderação e preservação da coisa pública pelos particulares, em processo de aperfeiçoamento: nós somos os fundadores da República em nosso cotidiano, há mais de um século.

Notas

(1) A corrupção gravemente perniciosa é a que assume o caráter subagudo, crônico, impalpável, poupando cuidadosamente a legalidade, mas sentindo-se em toda a parte por uma espécie de impressão olfativa, e insinuando-se penetrantemente por ação fisiológica no organismo, onde vai determinar diáteses irremediáveis (Escritos e Discursos Seletos. [1960] Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997, p. 982).

(2) Recomendamos, para aprofundamento das idéias aqui apenas relatadas, os livros: SCHILLING, Flávia. Corrupção: ilegalidade intolerável?: comissões parlamentares de inquérito e a luta contra a corrupção no Brasil (1980-1992), São Paulo: IBCCRIM, 1999; SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Direito Penal Supraindividual, São Paulo: RT, 2003.

(3) Extraído de um conceito marginal na obra de Michel Foucault: Vigiar e Punir, 3ª ed., Petrópolis: Vozes, 1984, pp. 78 e segs.

(4) Típico modo de evitar a incidência de multas ou outros procedimentos administrativos ou judiciais é o pagamento de propina, suborno ou peita, seja por estar o particular em situação irregular, seja para evitar os constrangimentos dos excessos na fiscalização, a fim de evitar os meios formais de regularização. Uma série de fatores colabora para esse quadro, e muitos deles podem ser atribuídos à (in)ação do Estado.

(5) A forma como algumas denúncias de corrupção vieram à tona no Brasil (por pessoas próximas aos acusados) traz dúvida sobre o estágio em que a construção de cidadania e de uma sociedade civil ativa se encontra, pois sugere que o conflito está na disputa pelo poder por grupos que já o detêm, e não em sua redistribuição igualitária.

(6) O sociólogo Ulrich BECK cunhou a expressão sociedade de risco, desenvolvendo seus contornos teóricos na obra: La Sociedad del Riesgo. Hacia una Nueva Modernidad (trad. de J. Navarro, D. Jiménez e M. R. Borrás), Barcelona: Paidós, 1998.

(7) CERVINI, Raúl. Os Processos de Descriminalização (trad. de Eliana Granja et al.), São Paulo: RT, 1995, p. 74.

Celso Eduardo Faria Coracini
Mestrando em Direito Penal pela USP e membro da Comissão de Estudos e Debates



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