INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS

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Boletim - 126 - Maio / 2003





 

Coordenador chefe:

Celso Eduardo Faria Coracini

Coordenadores adjuntos:

Carlos Alberto Pires Mendes, Fernanda Emy Matsuda, Fernanda Velloso Teixeira e Luis Fernando

Conselho Editorial

Editorial

A (in)segurança. Carta ao Ministro

Ranulfo de Melo Freire

Desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de São Paulo

Anos atrás, uma mulher jovem, bonita, imagem da meiguice foi assassinada de forma a mais cruel. E porque era atriz de novela e a mãe, autora do texto, o País viveu dias de comoção nacional.

Há poucos dias, foi assassinado um juiz de Direito. De sua importância, fala a relevância do papel que exercia: juiz das Execuções da Pena, a quem cumpria decidir do destino dos encarcerados da região de Presidente Prudente, onde se acham os presos de maior periculosidade. O ter morrido em função do trabalho fez de sua morte uma morte diferenciada.

Os dois fatos são dessemelhantes, mas um serve para esboçar o outro. No primeiro, desengavetaram-se projetos de reforma dos Código Penal e de Processo penal; "âncoras" de programas de televisão, jornais, rádios a apelarem por aumento de penas (falava-se em prisão perpétua, sugeria-se pena de morte), dando, como resultado, desastradas alterações na forma de conceber a pena. Ilustra-o a mídia ter dado como impunidade o período em que os moços assassinos saíram do cárcere para, nos termos da lei, cumprirem o restante da pena. No que concerne à morte do magistrado, as "soluções" alvitradas não são menos afrontosas ao Direito. Convém traduzir este asserto, em novo período gramatical.

Reedita-se a rica nomenclatura dos que advogam a segurança pública a qualquer preço; preço, por social, pago em juros de agiota pelos que, na ótica da "sociedade sã", têm cara de "BO". É o rico jargão dos que apostam em efeitos mágicos da prisão; em benéficos resultados da pena rigorosa (máxima, é claro); na supressão das garantias processuais ("o mal são esses advogados dos direitos humanos"); no castigo à americana (v. afegões tratados como bichos em Guantánamo, sob os auspícios da Suprema Corte, Suprema Corte que já foi de um Holmes!).

A grita ganhou espaço no espaço do Poder.

Em face à rebelião de organizações criminosas, a Secretaria da Administração Penitenciária de São Paulo baixou a Resolução nº 26, de 04.05.2001, cognominada Regime Disciplinar Diferenciado (RDD), destinada aos líderes de facções criminosas ou a delinqüentes que justifiquem um tratamento prisional específico. A característica principal do regime é o isolamento em cela individual durante 180 dias, podendo, em alguma hipótese, estender o isolamento a 360 dias, um e outro limite a aberragem do disposto no art. 58 da Lei de Execução Penal, que fixou em 30 dias o prazo máximo da sanção. Anote-se que o RDD não define, preciso, os destinatários do castigo, deixando isso ao alvedrio do agente policial, transmudado em juízo da execução da pena (v. Arruda Campos, em A Justiça a Serviço do Crime).

Mas a apreensão não se contém nos desregramentos da Resolução nº 26.

Há notícia (queira Deus seja boato) de que se pretende, na esfera do Judiciário, abolir a "visita íntima", retornando à política carcerária anterior ao Governo Montoro (secretário da Justiça, José Carlos Dias), quando, então, se privava ao preso e à mulher de um direito que, supresso, acarreta variadas anomalias sexuais. Ademais, tal proibição implicaria um inominável castigo a grande maioria de encarcerados, avolumando, bem por isso, o rol de rebeliões.

Entidade que não poderia ficar alheia ao debate, o IBCCRIM divulgou parte de suas discussões a esse respeito (v. Boletim nº 123, fevereiro de 2003: "A Execução Penal e a Ideologia da Disciplina"; "Meia Legalidade", Alberto Silva Franco; "Bentham e o Eldorado", Beatriz Rizzo, Carmen Silvia de Moraes Barros e Inês Tomaz; "Política Penitenciária", Nilzardo Carneiro Leão; "O RDD e a Lei", Carlos Weiss), havendo, seu presidente, o juiz do Tribunal de Alçada Criminal, Marco Antonio Rodrigues Nahum, reclamado a "apuração de fatos extremamente graves atribuídos às autoridades judiciárias, policiais civis e policiais militares do Estado de São Paulo, tais como os que envolveram a chamada 'Operação Castelinho', patrocinados por grupo especial da Secretaria da Segurança Pública de São Paulo (Gradi), e a atuação de grupos de extermínio, também envolvendo policiais civis e militares, como os que teriam ocorrido nas cidades de Ribeirão Preto e de Guarulhos e que culminaram com o afastamento do delegado-corregedor da Polícia Civil" (Folha de S.Paulo, de 24.02.2003).

Senhor ministro:

Seria ensinar o Padre Nosso ao vigário dizer que isso chegou aonde chegou (há notícia desse símil de "esquadrão da morte" em vários pontos do País) não só por obra e graça de uma autoridade autoritária embora no governo, em qualquer governo, uns achem que é demais e, outros, que ainda é pouco...

Oriundo de causa sociais diversas desemprego, inchaço da periferia das grandes cidades (pessoas de bem e outras não de bem forçadas a morar nas favelas ou a dormir na rua) a criminalidade violenta tomou o lugar da paz, nos grandes centros. O homem do trabalho rico ou pobre, analfabeto ou doutor sai de casa com medo e volta para casa com medo. É natural, assim, pense que a insegurança decorre só do mau funcionamento da polícia, da Justiça.

Não é hora, portanto, de termos o otimismo do dr. Pangloss, mas dá para misturar os sonhos de D. Quixote com o pragmatismo de Sancho Pança.

A vida vai mal, o Brasil vai mal, mas hoje é melhor do que ontem. Se existem famílias sem teto, homens do campo sem terra, muita gente comendo nos latões de lixo o comportamento da sociedade é animador. O setor desenvolvido do palácio ao casebre (ser desenvolvido não é ser rico) está consciente de que tem de cooperar com o governo em que confia. Não é a postura de quem bate palmas: é o povo se organizando, ascendendo da categoria de massa inerme à cidadania atuante.

Há uma perspectiva de confiança; há uma expectativa de mudança: Márcio Tomaz Bastos, na Justiça. É advogado dos mais acatados do País, com a circunstância, relevante, de ser política (ex-presidente da OAB, membro fundador do Partido dos Trabalhadores). Advogado com aquela consciência do operário do Vinícius: que sabe exercer a profissão. Advogado de ricos, de pobres, de gente honesta, de outras pessoas; advogado de quem buscava o patrocínio. E para pôr cobro aos arreganhos dos intolerantes, criou uma ONG de Defesa do Direito de Defesa. É da história do mundo, os reacionários, os atrasados, malquererem os advogados.

Senhor ministro da Justiça: é usual falar em fogo cruzado. É o que ocorre hoje, no seu Ministério: duas pressões antípodas. De um lado talvez seja a maioria são os que carregam à Polícia, à Justiça, o papel, solitário, de porem termo ao crime violento. Foi a visão, simplória, esposada na última eleição, por políticos da direita e da esquerda; do outro lado, os que, também, querem penas rigorosas para o criminoso que ascendeu ao último patamar da barbárie, mas não abrem mão dos postulados da penalogia humanista.

Os que atribuem à Justiça, à Polícia, solucionarem, insultados, a violência encartada no crime (da outra violência eles não curam, até porque não atinem com ela) vão querer, com o sufrágio de conhecidos corifeus da mídia, que o ministro da Justiça seja o que ele não é; a outra parte, a minoria (trabalhadores politizados da cidade e do campo, a gente da escola, empresários modernos e a ampla rede que se alberga sob o pálio dos Direitos Humanos), essa conta com a história de vida de Márcio Tomaz Bastos, confiante em que a legislação dura, que vier, não se desapartará das normas constitucionais: "ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante", "é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral", "não haverá penas cruéis".

O homem não sabe julgar o seu tempo. Por viver-lhe as emoções, será impossível avaliar as outras idades. Mas não há negar, que vivemos, no Brasil, um período marcado pelo temor: o temor da morte, porque ela nos espreita na face do crime; perigo do sofrimento, porque rareiam as oportunidades de uma vida digna.

Não é um aspecto novo, mas mudou a intensidade: o assassínio de um soldado, de um policial civil por serem militares e o assassínio de juízes, por serem juízes. Se, até agora, a morte do militar passa como um homicídio qualquer (é, na verdade, um crime contra o Estado), a morte do juiz, por ser juiz, ganhou o justo relevo de um crime contra o Estado.

É crime bárbaro? É; crime de pena alta? É. Quem mata o jornalista, por ser jornalista (em serviço); quem mata policial (não "em confronto", mas, por ser policial); quem mata o juiz a que o está a julgar réu desses tipos de homicídios tem de saber que vai topar com pena rigorosa. Mas há de ser pena que se comprara com a Constituição da República, Constituição do Estado Democrático de Direito.

Pode, a pessoa, ficar 360 dias sem conversar com ninguém? O boi, o cavalo, o cachorro, não. A vaca berra, as outras berram; o cavalo rincha, o outro responde; os cães, esses latem ao mesmo tempo. Carnelutti fala de seres "fechados nas jaulas como os animais de jardim zoológico e que parecem homens de mentira" (v. As Misérias do Processo Penal).

E a pena (o castigo), não pode ser exasperada: por razão de ordem ética (o pensamento humanista expungiu o rol de torturas que enxameavam os códigos) e por política criminal: não há cadeia que resista a réus desesperançados.

E não se escuse o Brasil com invocar similitude de tratamento a presos em outros países. Nesse aspecto, Estados Unidos, Cuba, China, não têm o mais mínimo compromisso, com os Direitos Humanos, com a Democracia.

As entidades de Direitos Humanos têm o dever de denunciar as violações desses direitos em qualquer país. É o que o Human Right Watch faz com relação ao Brasil. Somos merecidos réus; principalmente, quanto à tortura em nossas prisões. Mas, já não seria hora de o Human Right Watch revelar ao mundo como são as prisões dos Estados Unidos? Como estão, hoje, as garantias do due process of law? Por que o Human Right Watch não vai a Guantánamo e divulga ao mundo, de forma ampla, clara, como foram e como são tratados os presos do Afeganistão que o governo dos Estados Unidos mantém naquela ilha?

É preciso, também, desmitificar o bandido. Houve um moço "herói" de algumas fugas que parecia "mocinho" do cinema hollywoodiano; outro, que estuprou e assassinou várias moças, em São Paulo, tinha sua foto (retocada) ao lado das fotos das chamadas peças íntimas (hoje, não-íntimas) de mulher; e a mídia ocupa, hoje, o melhor espaço de tempo com um traficante! O País lhe segue as pegadas, nos espetáculos pirotécnicos da mudança de presídios.

É não ter o que fazer.

Ranulfo de Melo Freire
Desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de São Paulo



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