INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS

     OK
alterar meus dados         
ASSOCIE-SE


Boletim - 124 - Março / 2003





 

Coordenador chefe:

Celso Eduardo Faria Coracini

Coordenadores adjuntos:

Carlos Alberto Pires Mendes, Fernanda Emy Matsuda, Fernanda Velloso Teixeira e Luis Fernando

Conselho Editorial

Editorial

A decisão de pronúncia - Um juízo de probabilidade

Maurides de Melo Ribeiro

Advogado criminalista, ex-presidente do Conselho Estadual de Entorpecentes, ex- 2º secretário do IBCCRIM e diretor adjunto da Revista Brasileira de Ciências Criminais.

"Quanto mais abominável é o crime, tanto mais imperiosa, para os guardas da ordem social, a obrigação de não aventurar
inferências, de não revelar prevenções, de não extraviar em conjecturas, de seguir passo a passo as circunstâncias, deixando a elas a palavra, abstendo-se rigorosamente de impressões subjetivas e não antecipando nada."
.
(Rui Barbosa, Novos Discursos e Conferências, Saraiva, 1933, p. 75)

Temos atualmente como amplamente majoritário o entendimento jurisprudencial no sentido de que, na fase da pronúncia, a dúvida implica na decisão pro societate. Contudo, além da questionável constitucionalidade deste entendimento frente à dimensão garantística que recondicionou nossa processualística após a Constituição de 1988, é certo que tal exegese vem sendo aplicada, às vezes até por comodismo nosso, sem um critério balizador, o que acaba por induzir o cometimento de graves injustiças. Há que se ter como certo que, se a dúvida milita em favor da acusação na amplitude por muitos preconizada, não poderia jamais o magistrado impronunciar um acusado por carência de indícios de autoria, bastaria leve prova indireta e estaríamos diante da pronúncia obrigatória. Com a devida vênia, mesmo a orientação mais ortodoxa não tem nem essa extensão e tampouco esse significado.

Sobre o tema, em obra específica(1), o eminente professor Vicente Greco Filho manifestou seu inonformismo e rememorou princípios tantas vezes esquecidos : "Qual a razão de haver uma decisão de admissibilidade da acusação no procedimento do júri?

A razão é simples, mas pode surpreender nos seus desdobramentos: a soberania e o julgamento por íntima convicção.

Em sendo o veredicto do júri qualificado pela soberania, que se consubstancia em sua irreformabilidade em determinadas circunstâncias, e tendo em tinta a ausência de fundamentação da decisão, a função, às vezes esquecida, da pronúncia é a de impedir que um inocente seja submetido aos riscos do julgamento social irrestrito e incensurável.

É comum dizer-se que a função da pronúncia é a de remeter o réu a júri. Mas rejeitamos, terminantemente, essa impostação. A função da fase de pronúncia é exatamente a contrária.

Em outras palavras, a função do juiz togado na fase da pronúncia é a de evitar que alguém que não mereça ser condenado possa sê-lo em virtude do julgamento soberano, em decisão quiçá, de vingança pessoal ou social. Ou seja, cabe ao juiz na fase de pronúncia excluir do julgamento popular aquele que não deva sofrer a repressão penal.

Usando expressões populares, pode-se dizer que compete ao juiz evitar que um inocente seja jogado 'às feras', correndo o risco de ser condenado, ou que o júri pode fazer uma injustiça absolvendo, não podendo fazer uma injustiça ao condenar.

A pronúncia, portanto, atua como uma garantia da liberdade, evitando que alguém seja condenado e não o mereça. No procedimento dos crimes de competência do juiz singular, a garantia da liberdade encontra-se na exigência da fundamentação da sentença e na possibilidade de recurso a um tribunal revisor. No procedimento do júri, em virtude da soberania e do julgamento por convicção íntima sem fundamentação, a garantia da liberdade somente pode estar na decisão de pronúncia.

O raciocínio do juiz da pronúncia, então, deve ser o seguinte: segundo minha convicção, se este réu for condenado haverá uma injustiça? Se sim, a decisão deverá ser de impronúncia ou de absolvição sumária.

Daí decorrem duas conseqüências muito importantes.

A primeira é a da não taxatividade dos casos de impronúncia ou absolvição sumária e a segunda é a de que é inadmissível, apesar de pacífica, a orientação jurisprudencial no sentido de que a absolvição sumária somente pode ocorrer estando induvidosamente demonstrada uma excludente ou de que, na dúvida, deve o réu ser remetido a júri.

Não se nega que o júri seja o juiz natural dos crimes dolosos contra a vida, mas o é somente para os casos em que a garantia da liberdade esteja preservada pela triagem feita pelo juiz togado da primeira fase, que deverá impronunciar ou absolver sumariamente em todos os casos em que a condenação possa significar uma injustiça, ainda que não prevista expressamente a hipótese no Código de Processo Penal" .

O ilustre professor Greco Filho, cuja doutrina é insuspeita pois ministrada por quem já honrou os quadros do Ministério Público Paulista, encontra-se em minoria, porém em magnífica companhia, pois ninguém menos que o eminente ministro Evandro Lins e Silva, o pranteado criminalista do século, ensinou em recente artigo denominado "Sentença de Pronúncia"(2): "Quando a dúvida envolve a autoria ou participação no crime impera o princípio in dubio pro reo; se a dúvida é quanto a qualquer excludente ou justificativa a solução é pro societate".

E, adiante, analisa e remata o já saudoso penalista:

"Veja-se que o Código de Processo Penal só autoriza a pronúncia quando há indícios suficientes: o adjetivo não está aí colocado por mero capricho ou por enfeite de redação do legislador. Suficiente, segundo o Aurélio, é aquilo que satisfaz, que é bastante, apto ou capaz, no caso, de condenar. Em primoroso trabalho sobre o tema, José Roberto Antonini mostra, com clareza meridiana, que o 'in dubio pro societate' não passa de uma 'frase de efeito sem laços de parentesco com o nosso sistema jurídico positivo' " (Rev. Trib., p. 465).

O grande juiz Magarinos Torres - defensor maior da instituição do Júri, quando esteve ameaçado de extinção, com a Carta de 1937, e autor de uma excelente monografia: "Processo Penal do Júri no Brasil" - já lembrava a inteligente observação de Pimenta Bueno: "...cumpre, de um lado, que o juiz da pronúncia não incomode por motivos ligeiros a liberdade e paz do cidadão, pois que, embora ela não seja mais do que um processo preparatório da acusação, todavia, por si só, já é um mal grave, que afeta muito a pessoa, interesses e família do indivíduo pronunciado" ("Apontamentos Proc.Crim. Bras.", nº 10, p. 182).

Argumenta o Dr. José Roberto Antonini que a atual Constituição privilegia o interesse individual, que deve ser cuidadosamente protegido, "contra a mera possibilidade de condenação injusta pelo Júri, o qual não declara as suas razões, os seus motivos, ao condenar ou absolver".

Reconheça-se que a posição do eminente penalista embora mais consentânea com as garantias constitucionais vigentes é, ainda, minoritária, porém nem é necessário chegar-se a tanto. E isto se depreende das precisas lições do sempre lembrado processualista pátrio, o eminente professor José Frederico Marques, que em obra que é referência no tema (3) lecionou:

"Para a pronúncia, tem de ser certa a existência do crime e provável a autoria imputada ao réu. Se apenas provável a existência do crime, não pode haver pronúncia; e o mesmo se verifica quando tão-só possível a autoria que ao denunciado se atribui.

Se os elementos de convicção constantes dos autos não demonstrarem, suficientemente, ser o réu suspeito da prática do crime, a possibilidade de futura prova nesse sentido obriga a que se decrete a impronúncia. A prova levior será, então, insuficiente para demonstrar a probabilidade da autoria, embora indique ser ela possível".

Desta forma já se delineia que é necessário que se estabeleça o que se entende por probabilidade e, para tanto, socorremo-nos de Malatesta (4):

"Em que consiste subjetivamente a probabilidade? Na percepção dos motivos convergentes e divergentes, julgados todos dignos, na medida de seus diversos valores, de serem levados em conta.

Eis como fica fácil estabelecer a diferença entre a probabilidade de um lado e certeza com motivos divergentes de outro. A probabilidade percebe os motivos convergentes e divergentes e os julga todos dignos de serem levados em conta, se bem que mais os primeiros e menos os segundos. A certeza acha, ao contrário, que os motivos divergentes da afirmação não merecem racionalmente consideração e, por isso, afirma. Esta afirmação surge para o espírito humano como correspondente à verdade, e a certeza que dela provém, como qualquer outra certeza, não é senão a consciência da verdade. Como se pode confundir este estado de alma com o precedente? É necessário este repúdio dos motivos divergentes, para se ter certeza; necessário para que se possa pronunciar condenação com justiça: não bastaria a simples probabilidade. Desde que se encontre um motivo para não crer, digno de ser levado em consideração, falta a certeza e não se pode condenar".

A necessária ponderação dos motivos decorre da própria legislação processual penal, pois é o que se extrai da dicção do art. 409 que determina que o juiz julgue improcedente a denúncia, se não houver "indício suficiente de que seja o réu o seu autor" e, como já visto, com a imposição da necessidade de indício suficiente o legislador pretendeu que a decisão se paute num juízo de probabilidade. Por outro lado o conceito de indício também deve ser extraído do próprio Código de Processo Penal que em seu art. 239 estabelece que "considera-se indício a circunstância conhecida e provada, que, tendo relação com o fato, autorize, por indução, concluir-se a existência de outra ou outras circunstâncias" .

Reside aqui outro risco que deve ser desde logo afastado. É que não se pode confundir o indício com a presunção nem com a mera suspeita. Com relação ao tema, a melhor lição vem de Maria Thereza Rocha de Assis Moura (5), que ensina que a presunção é algo subjetivo, genérico e abstrato, e o indício é concreto, objetivo e específico, vale dizer, provado, e com relação à suspeita remata:

"Em suma: o mero juízo da suspeita de alguém, fundado em opinião subjetiva, mostra-se insuficiente para apontar a autoria de um delito, razão pela qual não pode ensejar acusação e, muito menos, condenação.

É que o suspeito emerge, possivelmente, como autor de um crime, mas é possível que não o seja. Esse juízo possível, sem fortes razões, não revela a autoria, sendo, portanto, inaproveitável para uma acusação.

Para que uma pessoa seja acusada da prática de um crime, é preciso mais do que a simples suspeita: faz-se imprescindível, no tocante à autoria, a existência de indícios bastantes para a imputação" .

Resta assim claro que, embora não seja necessária a certeza para a decisão de pronúncia, ela não poderá se embasar na simples possibilidade, mas sim deverá ser demonstrado que a hipótese versada é provável, caso contrário deverá o acusado ser impronunciado. E como será possível aferirmos se nos encontramos realizando um juízo de probabilidade na ponderação dos indícios? O eminente desembargador Adalberto José Q. T. de Camargo Aranha, tratando da lógica das provas em obra(6) que é referência sobre o tema, orienta sobre caminho seguro:

"Como afirmado por Malatesta, há dúvida sempre que uma assertiva se apresente com motivos afirmativos e negativos.

Na hipótese dos motivos afirmativos e negativos se igualarem, surge a credibilidade; se os afirmativos prevalecerem sobre os negativos temos a probabilidade; e, por fim, se prevalecerem os negativos, resulta a improbabilidade.

Logo, a dúvida pode gerar três estados de espírito diversos: credibilidade, probabilidade e improbabilidade.

Arrematando: surge a dúvida e com ela a credibilidade, a probabilidade ou a improbabilidade, quando a consciência, analisando as provas, se encontre frente a motivos iguais e de mesmo valor para a afirmação ou a negação. Tais motivos conflitantes devem ser idôneos, legítimos e de igual valor".

Podemos então concluir que, mesmo aceitando que nesta fase processual a dúvida haverá de militar em favor da acusação, não se pode admitir que a pronúncia seja embasada num juízo de credibilidade ou improbabilidade mas, tão-somente, num juízo de probabilidade. Desta forma, a dúvida que se admite será aquela resultante da prevalência dos motivos afirmativos da assertiva, que se pretende provar, sobre os motivos negativos, a essa modalidade de dúvida denominamos probabilidade.

Mesmo a jurisprudência, que é remansosa no sentido de afastar o princípio do in dubio pro reo nesta fase processual, não nega que a dúvida na qual se pode assentar uma sentença de pronúncia é aquela fundada em indícios suficientes, vale dizer, que apontem para o provável, valendo ser reproduzidas apenas a título exemplificativo as ementas a seguir transcritas(7):

"Para a pronúncia, não são suficientes indícios duvidosos, vagos ou incertos sem conexão com o fato e sua autoria" (TJPR, Rec., Rel. Acyr Loyola, RT 543/416);

A pronúncia exige uma suposição fundada na responsabilidade criminal do acusado. A lei fala em indícios da autoria, os quais não se confundem com a mera conjectura, porque indícios são elementos sensíveis, reais, ao passo que a conjectura, muitas vezes, funda-se em criações da imaginação ou de possíveis antipatias, não provadas. O indício, bem ao contrário, deve ser necessariamente provado" (TJSP, Rec., Rel. Fernando Prado, RT 546/334).

São, portanto, esses os parâmetros que devem nortear a decisão judicial nesta fase processual e o melhor arremate é a recordação da grave advertência do eminente Evandro Lins e Silva, que mesmo na ausência não nos falta:

"Concluímos: é alógico o procedimento penal contra quem tem em seu favor o benefício da dúvida. Quanto mais depressa se resolva essa situação melhor para a própria sociedade de que o réu faz parte. O juízo de acusação posto diante do Júri há de ter como pressuposto absoluto a prova da existência de um crime contra a vida e indícios suficientes de autoria ou participação de alguém. Ninguém é culpado mais ou menos, ou quase, ou duvidosamente. É ou não é. Não há grau intermediário. Nessa dúvida, a lei indica o caminho: reabre-se o processo" .

Notas

(1) Tribunal do Júri - Estudo sobre a mais democrática instituição jurídica brasileira, coordenação: Rogério Lauria Tucci, São Paulo: Ed. Rev. dos Tribunais, 1999, pp. 118/120.

(2) Encarte do Grupo Brasileiro da Associação Internacional de Direito Penal - AIDP- Boletim IBCCRIM ano 8, nº 100 - março/2001.

(3) A Instituição do Júri, Campinas: Bookseller, 1997, p. 368.

(4) MALATESTA, Nicola Framarino Dei. A Lógica das Provas em Matéria Criminal, vol. I, Conan Editora, Campinas, 1995, p. 61.

(5) A Prova por Indícios no Processo Penal, São Paulo: Saraiva, 1994, p. 53.

(6) Da Prova no Processo Penal, 3ª ed. atual. e ampl. , São Paulo: Saraiva, 1994, p. 63.

(7) Código de Processo Penal e sua Interpretação Jurisprudencial, coord.: Alberto Silva Franco e Rui Stoco, São Paulo: Ed. Rev. dos Tribunais, 1999, p. 2.475.

Maurides de Melo Ribeiro
Advogado criminalista, ex-presidente do Conselho Estadual de Entorpecentes, ex- 2º secretário do IBCCRIM e diretor adjunto da Revista Brasileira de Ciências Criminais.