INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS

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Boletim - 122 - Janeiro / 2003





 

Coordenador chefe:

Celso Eduardo Faria Coracini

Coordenadores adjuntos:

Carlos Alberto Pires Mendes, Fernanda Emy Matsuda, Fernanda Velloso Teixeira e Luis Fernando

Conselho Editorial

Editorial

A construção do bem jurídico espiritualizado e suas críticas fundamentais

Renato de Mello Jorge Silveira

Advogado em São Paulo e doutor em Direito Penal pela FDUSP

A complexidade da chamada sociedade pós-moderna firmou, em xeque, diversas instituições. Na particular seara penal, isso não se deu de forma diversa. A consagração das novas tecnologias, bem como as situações de risco com elas advindas, acabaram por dar os novos contornos do que Beck denomina de sociedade de risco. Para a sua devida proteção, não raro, senão freqüente, consagrou-se o uso de previsões penais típicas de perigo, mormente a de perigo abstrato. Mais do que isso. A preocupação com as situações supra-individuais intentou um avançar em diversos outros campos, sempre buscando uma devida legitimação deste novo Direito Penal. É justamente neste novo e nebuloso horizonte, que se verifica a presença dos chamados bens jurídicos espiritualizados. Não obstante sua pretensa tentativa de resposta a indagações constantes, muitas já se fizeram suas críticas.

A observação do avanço evolutivo do conceito de bem jurídico-penal, desde Birnbaum, com seu estudo de 1834 sobre a honra, até as mais contemporâneas teses constitucionais, quer amplas, quer restritas, demonstra o eterno caminhar dogmático.(1) Entretanto, é de se perceber que, de início tratando de questões individuais para, ao depois, coletivas, chega-se, por fim, a um questionamento difuso. Justamente nesse particular, ao se cuidar dos chamados bens de terceira geração, é que vêm à lume as grandes celeumas hodiernas. O próprio entendimento estrutural do moderno Direito Penal passa, pois, por uma nova observação quanto a estes novos bens jurídicos.

A expansão do Direito Penal, causa direta dos novos riscos advindos principalmente a partir da segunda metade do séc. XX, tem causado muitos questionamentos na doutrina. É bem de se ver que o homem, em sua vivência em comum, sempre se viu deparado com inúmeros riscos; mas, por igual, inegável é que, principalmente a partir da segunda metade do séc. XX, com o advento de novas situações de risco, foi ele também submetido a uma inesperada vida mais perigosa. Na Europa, por exemplo, verificaram-se situações paradigmáticas, como o desastre de Chernobyl ou as dramáticas ocorrências relativas ao Contergan, Lederspray ou do Azeite de Colza. Em particular no Brasil, de se notar, além dos inúmeros desastres naturais como os referentes a derramamentos de petróleo, a catástrofe ocorrida na Vila Parisi, São Paulo.(2)

Constante preocupação com tal estado de coisas, veio a propiciar novas criminalizações, estendendo o Direito Penal às áreas econômicas, ambientais e de consumo, entre outras. E pior. Para sua pretensa devida proteção, tem-se lançado mão de tipificações de perigo abstrato. Uma das justificativas para tanto reside no fato de que, sendo bem difuso, sem titular identificado, difícil se tornaria a constatação de dano real, devendo, pois, ocorrer o que se passou a entender por criminalização em âmbito prévio ou antecipação da tutela penal.(3) Ora, em assim sendo, sério questionamento passou a se dar quanto à própria configuração do bem jurídico.

Na realidade, parece claro que enquanto os bens jurídicos individuais e coletivos satisfaziam-se com uma proteção bastante atinente ao eventual efeito danoso, tendo por exceção o perigo potencial de dano, no que se refere aos bens difusos ou supra-individuais isso não se verifica. Meio ambiente, Direito Econômico ou do Consumidor, por exemplo, guardam peculiaridades próprias. Quer pelo fato de não se identificar uma vítima definida, quer por não se ter, em uma dada e concreta conduta, um perigo concreto à inteireza do bem protegido, tem dado, a doutrina, preferência pelo uso, em tais casos, de construção tipológica baseada em situações de perigo abstrato. A questão posta em pauta, no entanto, é se não viriam tais construções a ofender princípios constitucionais e se essas idealizações abstratas não careceriam de legitimidade ou dignidade penal.

Nesse contexto, e com pretensões explicativas-dogmáticas da aplicação de perigo abstrato, Schünemann, em meados da década de 70, expõe a conceituação de bem jurídico intermediário espiritualizado. Para ele, seriam, estes, bens supra-individuais com caráter imaterial, os quais desempenham verdadeira função de representação, reclamando uma autonomia e proteção próprias. Assim, considerando-se a difícil visualização, com uma única ação individual, de lesão ou mesmo de uma concreta colocação em perigo, concebe-se uma proteção abstrata. Em verdade, por tal edificação, somente poder-se-á considerar o bem jurídico protegido como lesionado se ocorrer uma reiteração generalizada de condutas que não respeitem as regras básicas.(4) Com a dificuldade inerente à constatação relativa à qual, dentre diversas condutas, realmente, vem a causar efetiva lesão ao bem protegido, entende-se permitido um socorro às técnicas de crimes de perigo, em especial ao abstrato, por onde procurar-se-á resguardar o interesse de todo e qualquer atentado, e não só àqueles realmente danosos. Também se indaga quais os contornos desse bem, ou mesmo, como identificar a percepção da conduta punível ou mesmo do injusto típico.(5)

Seriam, contudo, estes novos conceitos necessários e suficientes para se responder às críticas postas quanto a não verificação do princípio da ofensividade nos crimes de perigo abstrato? Bastaria um novel gizar do bem jurídico para responder às objeções postas quanto ao indiscriminado uso de figuras de perigo abstrato com o intuito de se proteger os bens difusos? Constatam-se inúmeras críticas ao postulado de Schünemann, e também de Mata y Martín, na Espanha. Por um lado, afirma-se pela dificuldade de determinação do grau de lesividade necessário a cada bem jurídico. Por outro, afirmam os seus opositores, que não se está a tratar de uma antecipação da tutela penal de bens essenciais, mas tão-só de uma proteção de bens que, por sua peculiar natureza, já exige o emprego de técnica abstrata.(6)

A atuação penal em campos difusos ou supra-individuais é, em última análise, o real questionamento a ser feito. Necessitariam estes de uma proteção penal? Se sim, seria o referencial espiritualizado o adequado para justapor a aplicação criminal a determinada conduta perigosa? Caso se venha a aceitar uma obrigatoriedade de construção penal para tais situações (com o que aqui, indiscriminadamente, não se concorda, dando-se preferência a outros postulados(7)), parece fundamental que, ao lado destes bens, quer espiritualizados, como propõe Schünemann, quer outras tantas interpretações mesmo restritivas, como sugere Roxin,(8) sejam, por igual, utilizados critérios de imputação objetiva caso a caso. Com tal instrumentalização, e a conseqüente avaliação do risco criado ou incrementado com determinadas condutas, poder-se-ia excluir do perigo abstrato unicamente sua preocupação ex ante, para, também, passar-se a ter uma consideração ex post.(9) Talvez, dessa forma, melhor solução possa ser dada a um dos grandes paradoxos penais da atualidade. De todo modo, obrigatória é a análise destas questões, deixadas, muitas vezes, de lado, por preferência a uma técnica legislativa casuística.(10) Muitas vezes, ao se analisar o Direito Penal difuso, acaba por se passar ao longo de tais entendimentos. Entrementes, quer para se defender a atuação criminal nessas novas searas, quer para se criticá-la, urgente é, também no Brasil, a ponderação quanto ao bem jurídico espiritualizado. Quem sabe assim, talvez passo maior possa ser dado pela dogmática nacional, a fim de melhor construir um pensamento sistêmico-organizado e em sintonia com o Direito Penal moderno, o qual prega, em última análise, ser sua missão a de proteção a bens jurídicos.

Notas

(1) Cf., entre outros, HORMAZABAL MALAREE, Hernán. "Bien Jurídico y Estado Social y Democrático de Derecho (el objeto protegido por la norma penal)", Barcelona: PPU, 1991; POLAINO NAVARRETE, Miguel. "El Bien Jurídico en el Derecho Penal", Sevilla: Universidade de Sevilla, 1974; PRADO, Luiz Regis. "Bem Jurídico-Penal e Constituição", São Paulo: RT, 1996.

(2) Cf. as ponderações feitas por Beck quanto a pluralidade de definições atinentes a cada vez mais riscos presentes na sociedade atual em BECK, Ulrich. "La Sociedad del Riesgo. Hacia una nueva modernidad". Tradução de Jorge Navarro, Daniel Jiménez, Maria Rosa Borrás, Barcelona: Paidós, 1998, p. 36 e segs. Cf. Também CARO CORIA, Dino Carlos. “Sociedades de Riesgo, bienes jurídicos colectivos y reglas concursales para la determinación de la pena en los delitos de peligro con verificación de resultado lesivo”. Revista Peruana de Ciencias Penales nº 9, 1999, pp. 177 e segs.

(3) SÁNCHEZ GARCÍA DE PAZ, Maria Isabel. "El Moderno Derecho Penal y la Antecipación de la Tutela Penal", Valladolid: Universidad de Valladolid, 1999, p. 12; MENDOZA BUERGO, Blanca. "El Derecho Penal en la Sociedad del Riesgo", Madrid: Civitas, 2001, pp. 51 e ss.

(4) Cf. SCHÜNEMANN, Bernd. “Moderne Tendenzen in der Dogmatik der Fahrlässigkeits – und Gefährdungsdelikte”, apud CORCOY BIDASOLO, Mirentxu. "Delitos de Peligro y Protección de Bienes Jurídicos-Penales Supraindividuales", Valencia: Tirant lo Blanch, 1999, p. 260. Em Espanha, similar pensamento é defendido por Mata y Martín, ao traçar a idéia de bem intermediário. Cf. MATA Y MARTÍN, Ricardo M. "Bienes Jurídicos Intermedios y Delitos de Peligro", Granada: Comares, 1997, pp. 23 e segs. Quanto a este último, interessante é a análise procedida por CARO CORIA, Dino Carlos. "Derecho Penal del Ambiente. Delitos y Técnicas de Tipificación", Lima: Horizonte, 1999, pp. 513 e segs.

(5) Cf. GIUSINO, Manfredi Parodi. "I Reati di Pericolo tra Dogmatica e Politica Criminale", Milano: Giuffrè, 1990, pp. 296 e segs.

(6) Cf. MENDONZA BUERGO, Blanca. "Límites Dogmáticos y Político-Criminales de los Delitos de Peligro Abstrato", Granada: Comares, 2001, pp. 53 e segs. Outros tantos problemas também são mencionados, tais como o da freqüente confusão relativa ao elemento subjetivo da conduta atentatória a bens jurídicos espiritualizados. Cf. CORCOY BIDASOLO, Mirentxu. Op. cit., pp. 292 e segs.

(7) De se ver que bem distinta é separação conceitual elaborada por autores da Escola de Frankfurt e outros, como o próprio Schünemann. Os primeiros entendem que a própria noção intermediária espiritualizada de tais bens, por não refletir lesão individual definida, acaba por deslegitimar a aplicação penal em tais casos. Já os segundos, pretendendo uma reorientação técnica, têm para si que a noção intermediária reflete, a seu tempo, também uma preocupação individual. Carlos Martínez-Buján Pérez, por sua vez, em tratando do Direito Penal Econômico, traça outro caminho, desenhando uma diferenciação dicotômica entre bem jurídico mediato, caracterizado como um bem coletivo imaterial ou institucionalizado, e bem jurídico imediato, que seria o interesse diretamente tutelado em sentido técnico. Ambos, pois, seriam vislumbrados nos bens difusos. Cf. MARTÍNEZ-BUJÁN PÉREZ, Carlos. "Derecho Penal Económico – Parte General", Valencia. Tirant lo Blanch, 1998, pp. 98 e segs.

(8) ROXIN, Claus. "Derecho Penal. Parte General", tradução e notas: Diego-Manuel Luzón Peña; Miguel Díaz y García Conlledo; Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 1997, tomo 1, p. 411.
(9) Compreendendo-se, aqui, um passo além do pregado por Schröder quanto ao perigo abstrato-concreto. Cf. ANGIONI, Francesco. "Il Pericolo Concreto come Elemento della Fattispecie Penale – la struttura oggettiva", Milano: Giuffrè, 1994, pp. 59 e segs; FIANDACA, Giovanni. “La tipizzazione del pericolo”. Dei Delitti e delle Pene, anno II, nº 3, 1984, pp. 441 e segs.
(10) Cf. as interessantes ponderações conclusivas em CORCOY BIDASOLO, Mirentxu. Op. cit., pp. 373 e segs.

Renato De Mello Jorge Silveira
Advogado em São Paulo e doutor em Direito Penal pela FDUSP



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