INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS

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Boletim - 121 - Dezembro / 2002





 

Coordenador chefe:

André Gustavo I. Fonseca

Coordenadores adjuntos:

Andréa Cristina D'Angelo, Carlos Alberto Pires Mendes, Celso Eduardo Faria Coracini, Daniela

Conselho Editorial

Editorial

A Defensoria Pública no Rio Grande do Sul

Carlos Frederico Barcellos Guazzellio

Defensor público-geral do Estado do Rio Grande do Sul.

O Rio Grande é um dos poucos Estados brasileiros que obedece ao comando constitucional, tendo criado e implantado Defensoria Pública nos moldes estabelecidos na Carta de 88 - como instituição autônoma, reunindo os advogados públicos, selecionados por concurso público, organizados em carreira e dedicados exclusivamente à tarefa de proporcionar orientação jurídica e assistência judiciária aos cidadãos pobres, em todos os níveis de jurisdição. Prevista na Constituição Estadual de 1989, foi inicialmente criada por Lei Complementar de 1991, mas só foi implantada efetivamente por nova Lei Complementar, em maio de 1994, após a edição, em fevereiro do mesmo ano, da Lei Orgânica Nacional (Lei Complementar nº 80/94). A partir daí, o novo órgão incorporou os membros da Unidade de Assistência Judiciária da Procuradoria-Geral do Estado, que prestavam o serviço desde a década de 70, passando a adotar o modelo estabelecido no art. 134 da Constituição Federal.

A melhoria experimentada pelo serviço desde então é notável, e esta experiência certamente deve ser levada em conta no momento em que São Paulo discute finalmente a criação da instituição - já que, a exemplo do que hoje ainda ali ocorre, ele era prestado até 1994 dentro da estrutura da Procuradoria-Geral, instituição cujas finalidades e organização não se compatibilizam com a necessidade de ampliação do acesso à jurisdição da cidadania empobrecida, em nível adequado ao extraordinário aumento desta demanda nos últimos anos. Não por outra razão, desde que o Sindicato dos Procuradores do Estado de São Paulo em boa hora iniciou o movimento pela criação da instituição, a Defensoria Pública gaúcha esteve solidária, levando a experiência de sua criação e progressiva implantação - processo em pleno curso e com êxito - primeiro, aos colegas da Procuradoria de Assistência Judiciária, no ano de 2001, e já no corrente ano, a dezenas de entidades da sociedade civil organizada, em seminário especialmente organizado para este fim pela Assembléia Legislativa paulista, no mês de junho passado. E tendo em vista a oportuna associação do IBCCRIM àquele movimento, parece mais do que conveniente reproduzí-la, mesmo sucintamente, em seu Boletim.

Deve-se ressaltar desde logo que, embora seja recente em sua configuração atual, o serviço de assistência judiciária oficial no Rio Grande é antigo, datando da década de 50, sendo prestado durante décadas de forma inicialmente assistencialista e precária, por advogados da antiga Consultoria-Geral do Estado - que chegou, inclusive, a contar com quadro de advogados de ofício. Posteriormente, no final da década de 60, com a criação em seu lugar da Procuradoria-Geral do Estado, ao lado do quadro de procuradores do Estado (encarregados da defesa judicial do Estado e das atividades de consultoria e assessoria jurídica aos órgãos da Administração Estadual), foi criada a carreira de assistentes judiciários, recrutados por concurso público e lotados em unidade própria - e dedicados a prestar assistência judiciária aos necessitados perante as instâncias da Justiça do Estado. Infelizmente, e ao contrário do que ocorreu com a carreira de procuradores do Estado, apenas um concurso público foi realizado, e diante do considerável aumento da demanda pelo serviço ocorrida durante as duas décadas seguintes, a política adotada então resumiu-se a alocar naquela unidade, em desvio de função, servidores estaduais de outros órgãos, bacharéis em Direito. O regime de trabalho não exigia dedicação exclusiva e o quadro então vivido, similar ao de quase todos os Estados brasileiros, era evidentemente precário. Chegou-se ao cúmulo, no início da década de 80, de extinguir a carreira, nela permanecendo apenas os assistentes judiciários que por ela optassem.

Esta primeira fase do serviço caracterizou-se, pois, pela semi-profissionalização de seus integrantes, divididos entre sua prestação e a Advocacia particular (permitida com os impedimentos da legislação), que além da remuneração baixa, não contavam com carreira própria. Mesmo assim, suas atividades abrangiam a capital, a região metropolitana e inúmeras comarcas do interior, providas ao sabor das demandas representadas aos governos da época por prefeitos e deputados. Este, o quadro encontrado quando da edição das Constituições Federal e Estadual, e no início da década de 90, das Leis Orgânicas Federal e Estadual, prevendo a criação de Defensoria Pública, como instituição autônoma.

Assim, ao ser criada e efetivamente implementada em 1994, a Defensoria gaúcha sucedeu a extinta Unidade de Assistência Judiciária e incorporou, por disposição legal, os antigos assistentes judiciários - transpostos ao novo cargo. O número de agentes era notoriamente insuficiente, mas nos primeiros anos de vida da instituição não foi possível ampliá-lo, pela via do concurso público: é que os servidores colocados em desvio de função no órgão embrionário foram a juízo, com base no art. 22 do Ato das Disposições Constitucionais Provisórias, visando o reconhecimento do direito à opção pela nova carreira. Até a definição da disputa judicial pelo Supremo, em 1996, o serviço continuou sendo prestado, ainda de forma precária, em aproximadamente 100 das 160 comarcas gaúchas. Em maio daquele ano, o órgão chegou a contar com o maior efetivo - 266 agentes, a maioria dos quais servidores que ganharam em juízo o direito de ingresso na carreira.

A esta fase inicial de vida, caracterizada pela instabilidade decorrente da indefinição quanto a seu efetivo, sucedeu-se período de progressiva retração do serviço (já precário, como visto), devido à notória falta de vontade política do governo de então para a efetiva ampliação institucional da Defensoria Pública. Com efeito, fiel à sua política geral de inspiração neoliberal - responsável por venda de ativos públicos, privatizações, terceirizações e desativação generalizada de serviços públicos - o titular do Executivo mal e mal tolerou a permanência da instituição, a isso forçado pelas decisões judiciais que obrigaram o Estado a nela integrar os antigos advogados da Unidade de Assistência Judiciária. Recusou-se sistematicamente a autorizar a realização de concurso público para o novo órgão, que passou a sofrer, nos três anos seguintes, as aposentadorias de quase uma centena de agentes - a isso estimulados pelas desastrosas reformas administrativa e previdenciária desencadeadas pelo Governo Federal.

Assim, ao assumir em 1999, o novo governo, fiel ao compromisso assumido em campanha, autorizou a realização do concurso público, há muito reclamado, destinado inicialmente à reposição das vagas abertas pelas 95 aposentadorias ocorridas.

Mercê desta providência, já a partir de outubro de 2000 foram nomeados, empossados e estão em efetivo exercício mais 86 novos defensores públicos. Com isso, o efetivo atual conta com 262 agentes em plena atividade, ampliando o serviço para 37 comarcas onde ele fora desativado, por falta de pessoal, ou onde nunca antes fora prestado; além disso, foi ele reforçado em outras 38 comarcas, nas quais a aposentadoria dos antigos profissionais o debilitara consideravelmente. Hoje, seus órgãos de atuação trabalham em 105 comarcas do Estado, e com a renovação ocorrida em julho passado do prazo de validade do concurso, as próximas nomeações elevarão sua atividade a 120 comarcas, aproximadamente ¾ do total.

O importante a anotar a respeito foi o extraordinário incremento, quantitativo e sobretudo qualitativo, do serviço prestado à população pobre do Estado, com o ingresso de quase uma centena de jovens advogados, altamente qualificados, recrutados em certame disputadíssimo, com quase 5000 inscritos inicialmente: de um total de 215.000 atendimentos prestados no ano de 2000 (já contando com o trabalho do primeiro terço de nomeados), ao final do ano seguinte foram prestados mais de 275.000 atendimentos. Neste ano, a partir dos dados computados relativamente aos primeiros seis meses, chegar-se-á à meta de 300.000 atendimentos. Considerando-se que, na maioria dos casos, os atendimentos beneficiam mais de uma pessoa (é o caso, por exemplo, do trabalho prestado junto às Varas de Família, de Infância e Juventude e mesmo Criminais), pode-se estimar que hoje, mais de meio milhão de gaúchos são beneficiários das atividades de sua Defensoria Pública.

Trata-se de um resultado significativo, mas ainda insuficiente, diante da demanda reprimida durante anos por este importante serviço público, já que os estudos mais recentes indicam que pelo menos dois milhões de habitantes do Estado encontram-se em situação de pobreza ou miserabilidade - integrando, pois, o público-alvo das ações dos Defensores Públicos, em todas as suas áreas de atuação perante a Justiça Estadual.

Para a recuperação deste déficit social, no entanto, a intervenção já realizada - o concurso público e as nomeações em função dele efetuadas e por efetuar até o final deste ano - foi a providência fundamental e imprescindível, cabendo à próxima administracão dar-lhe a necessária continuidade, com a criação de mais vagas e realização de novo certame, visando atingir a meta legal de atendimento em todas as comarcas gaúchas.

Cabe assinalar aqui que, mercê disso, a Defensoria Pública riograndense finalmente atingiu o estágio profissional e institucional exigido, mais do que pela Constituição, pelas necessidades da população a que ela deve servir. Com efeito, como anotado no excelente artigo do procurador do Estado da Procuradoria de Assistência Judiciária de São Paulo no Boletim nº 115 do IBCCRIM, a efetiva implantação da Defensoria Pública, como ocorre hoje no Rio Grande, implica na passagem da ...idéia de assistência judiciária para a de acesso à justiça: de assistencialismo público para serviço público essencial: de extensão da Advocacia privada aos financeiramente carentes à promoção dos direitos humanos: de mera promoção judicial de demandas privadas à identificação dos direitos fundamentais da população e sua instrumentalização eventualmente pela via judicial....

Exemplos notáveis desta transcendência institucional experimentada e em pleno curso no Estado, são algumas ações que merecem registro: o atendimento, rotineiro e sistemático ao contingente encarcerado em mais de metade dos presídios e penitenciárias estaduais, e periódico aos demais, através de deslocamento de equipe itinerante às demais comarcas; curso de capacitação na área de infância e juventude, disponibilizado através de convênio com o Departamento da Criança e do Adolescente do Ministério da Justiça; convênio com o Tribunal de Justiça do Estado e a Universidade Federal do Rio Grande do Sul, permitindo a realização, a preço de custo, de exames de DNA em ações de investigação de paternidade promovidas em até 130 casos/mês; ajuizamento de ações em favor de coletividades organizadas de cidadãos pobres, visando a regularização de posse e propriedade; ações na área da saúde, garantindo o direito de acesso a medicamentos de uso contínuo e internações hospitalares etc.

Todas estas ações somente puderam ser desencadeadas graças à adoção do formato constitucionalmente previsto para a instituição, e pelo conseqüente recrutamento de profissionais dedicados exclusivamente à função, ensejando assim pudesse o serviço experimentar, não apenas o crescimento quantitativo desejável, como sobretudo, qualificar sua intervenção sob o paradigma profissional exigível por demanda tão relevante para a maioria da população. Que pode, destarte, contar com a Defensoria Pública como instrumento, que se não é o único, é certamente o mais eficaz, eficiente e efetivo para garantir-lhe o imprescindível acesso à jurisdição - na busca de solução civilizada de seus conflitos de interesse e afirmação dos direitos mais elementares de cidadania: a saúde, os alimentos, a habitação, a propriedade, a honra e a liberdade.

Carlos Frederico Barcellos Guazzellio
O autor é defensor público-geral do Estado do Rio Grande do Sul.



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