André Gustavo I. Fonseca
Andréa Cristina D'Angelo, Carlos Alberto Pires Mendes, Celso Eduardo Faria Coracini, Daniela
Sob o pretexto de maior eficácia na luta contra a criminalidade organizada e visando melhor comodidade no exercício da atividade jurisdicional, inventa-se, mediando o aplauso de alguns poucos, a transmigração do contato pessoal entre juízes e acusados, transformando-se os interrogatórios e alguns outros atos processuais em comunicação, via computadores, do magistrado com os denunciados.
O esquema funcionaria mais ou menos assim: o juiz, o técnico em vídeo, o representante ad processum do acusado e o Ministério Público ficariam no espaço físico atinente à sede jurisdicional. O acusado, remanescendo no presídio, seria colocado em frente ao olho mágico de uma câmera. Aliás, duas seriam as câmeras filmadoras: uma focalizando o denunciado, outra os encarregados dos atos jurisdicionais. Daí, o juiz faria as perguntas concernentes ao fato e circunstâncias afins, respondendo o denunciado enquanto um estivesse a mirar os olhos do outro.
A proposta é interessante, mas é tragicômica. De um lado, a lei processual penal inadmite tal artifício. De outra parte, embora não podendo interferir, é direito do advogado estar presente ao ato. Perguntar-se-ia, logo, a qual parte do ato o defensor poderia estar presente: no presídio, ao lado do acusado, aprontando-se, antes, para fotografar bem, ou ao lado do juiz, no fórum, longe do patrocinado portanto, impedindo-o da proteção que a simples presença física pode outorgar ao sujeito passivo da ação penal. Independentemente disso, haverá ocasião em que o defensor precisará intervir, seja para protestar contra desvios de autenticidade na inquirição, seja na função de curador (hipóteses de menoridade ou insanidade total ou parcial).
Por outro lado — e aqui vai consideração importantíssima —, o acusado, o advogado e quejandos têm direito à própria imagem e à intimidade, não se sabendo o que aconteceria aos filmes captados pelo grande irmão. No entretempo, é bom lembrar que o advogado tem o iniludível direito de ficar no recinto, sair, voltar ou abandonar as salas de audiência, não se podendo obrigá-lo a posar para os tripés colocados nas salas de audiências.
Por fim, relembre-se que o interrogatório, embora constituindo ato privativo ligando o juiz e o acusado, constitui ato jurisdicional estrito e, paradoxalmente, aberto ao público, a menos que, por razão ou por outra, haja decretação de sigilo. No meio disso tudo, ou o interrogatório será digitalizado (neologismo aceitável) ou gravado, mas devendo ser adaptado, de qualquer forma, aos requisitos postos na lei processual penal. São problemas intransponíveis no atual estágio das garantias asseguradas à plenitude da defesa. Para finalizar, pense-se em eventual debate mais agressivo concretizado, via internet, entre magistrado e advogado (ou entre o último e eminente promotor público). Desacato cometido ao longe? Qual a pena? O desligamento do vídeo? Autuação televisiva em flagrante?
Melhor será, frente a tais pretensões hilárias, que o Estado-Administração assuma realmente suas obrigações basilares referentes aos cuidados indispensáveis ao tratamento das hipóteses de infrações penais. Em primeiro lugar, o exercício da jurisdição é tarefa incômoda. Deve ser exercitada com todos os riscos inerentes ao ministério. Em seqüência, falta à verdade quem disser que a justiça penal faliu. Não se tem exemplo, no passado, de porcentagem igual de condenações impostas por juízes criminais. Se todos os mandados de prisão fossem cumpridos, muitos cidadãos prestantes precisariam ceder cômodos de suas casas para o aprisionamento dos apenados. Não se fale do rigor das condenações.
Há pouco, um entrevistador profissional indagou do ex-ministro da Justiça (um ex-ministro é sempre ministro) Miguel Reale Junior se a lei de execução penal não estaria sendo afrouxada. Miguel não riu. É um homem elegante e estava na casa do outro. Disse que o problema maior da criminalidade brasileira seria encontrado, com maior densidade, na juventude pobre e deseducada, ou no favelado desempregado. O meio social, sim, era o caldo de cultura da delinqüência. Portanto, não se pretenda inventar novidades em prejuízo da atividade defensiva. Já se chegou, nesse ponto, quase ao extremo do insulto ao contraditório.
Acusados pobres são tratados com enorme desdém, magistrados impacientes se irritam com resistência oposta por advogados, restrições preventivas à liberdade se prolongam ilegalmente no tempo, prisões imundas fingem obedecer aos requisitos mínimos de higiene, leis draconianas exacerbam desnecessariamente as sanções, intimam-se os advogados por meio de secos e às vezes ininteligíveis despachos perdidos em centenas de páginas de diários oficiais que ninguém lê e assim por diante.
Entenda-se bem: o Estado não pode transformar-se em incentivador da delinqüência de seus prepostos. Precisa cumprir sua parte com imenso respeito à Constituição. Não o faz. Ofendem, os agentes, a estrutura fundamental das garantias outorgadas ao povo. Este, engodado, não percebe que seu pedaço de liberdade tem sido reduzido a limites mínimos. Aplaude quando o esbirro mata o bandido, alegra-se quando marginais são mortos em grupo, vota maciçamente no arauto da violência policial e não percebe que a bala perdida no meio da refrega pode ter um distintivo na ponta, assassinando a dona de casa ou uma criança colhida no meio dos folguedos. Não se faz assim. A internet não servirá ao reequilíbrio social. Será apenas um fator a mais concretizando a incúria, a negligência, a preguiça, até, devotada pelo Estado à apuração dos crimes e à justa retribuição estatal.
A maior dificuldade do país democrático é a obediência à lei enquanto reprime aquele que a ofende. O risco, hoje transformado em quase verdade, é transmudar-se o agente da autoridade em criminoso também.
Paulo Sérgio Leite Fernandes
Presidente, no Conselho Federal da OAB, da Comissão Nacional de Defesa das Prerrogativas do Advogado
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